2019-11-22

Verbalização Pictórica

 Abro a janela do meu quarto e respiro fundo. A tela está em branco e a paleta repleta de palavras. Começo pelo céu. Um céu nublado de nuvens gordas em camadas sucessivas, cinzentos que do claro ao escuro lhe conferem dimensão. É um céu que não oprime, antes liberta e seduz. O céu terá um ponto de referência, local onde os olhos procuram sem que tenham sido convocados. O sol nasce mas não se vê. Apercebemo-nos do seu parto. Captamos tonalidades sépias em gradientes radiais enquanto aguardamos o seu corpo, o seu calor, a sua indefinição luminosa que nos induz a noção de esfera apenas porque o desenhamos em círculo. Na contraluz matinal as formas surgem e eu coloco pequenas casas brancas, isoladas, térreas, pequenos sinais de vida adormecidos. Os últimos galos pigarreiam ladainhas de arrogância para galinhas ensonadas. Alguns animais invisíveis deixam nervosos os cães de guarda. Quem sabe se uma raposa atrasada ou uma família de javalis que ainda revolve a terra. Nada disto ficará registado, a invisibilidade e o som apenas poderão ser adivinhados. Depois das casas surge uma fileira de canas. Exército de lanças ao alto, perfilado ao longo de um curso de água. Logo depois um campo lavrado de castanhos escuros e sombras negras. Envolve-o um fino véu de pequenas gotas de água. Irei chamar-lhe névoa para que fique perceptível embora a mim me pareça a transpiração vaporosa de um corpo quente e húmido. Jogo as palavras na tela e de repente surge-me a transparência de uma camisa de dormir. Será aquela terra toda uma mulher adormecida. Sendo assim irei cobri-la com outra fileira de lanças, estas mais perto e porque mais perto, ondulantes. a seu pés percebe-se o correr da água. Tudo isto se passa num plano primeiro onde irei colocar um pássaro negro. Para lhe retirar a pose agressiva verbalizo-o no cimo de uma das lançascanas...oscilante. O pássaro negro, de asas abertas, procura o equilíbrio e com esse gesto perde a inquietante negatividade transformando-se num elemento ao mesmo tempo frágil e cómico. Dou as últimas pinceladas. Procuro corrigir algum erro de gramática, disfarçar alguma tonalidade verbal dissonante, dar coerência ao aleatório da tela. Não sei se consegui...