2017-11-27

Carta para o meu irmão desconhecido

O abraço é grande e o tempo que me sobra é incerto. De Novembro a Novembro passou um ano e eu não quero deixar passar outro sem te escrever estas palavras. São o que são e valem o que valem mas acima de tudo são sinceras. Pesam-me incertezas e o medo de ter falhado. Imagino um homem venerável e idoso. De olhar crítico e ao mesmo tempo indiferente. Traz numa mão o somatório do que fui e na outra um rol de dívidas por cobrar. Hoje alguém pagou as suas. Duas semanas de hospital não resolveram um coração cansado. Tanto trabalho para tão pouco descanso.
Tenho dormido melhor, acordo menos vezes durante a noite e já não fumo para adormecer. Não sei porque te conto estas coisas, mas o tempo voa e um dia pode ser tarde demais. Assim ficas a saber que a cama se tornou minha amiga e já não me tortura com aconchegos.
Ontem saí à meia-noite e perguntei-me porque estava a rega automática ligada. Pareceu-me estranho que na cidade deserta apenas nos repuxos aquíferos houvesse vida. A relva está viçosa e agradece este mimo autárquico. Ainda se pode pisar a relva, mas depois de ver gastar tanta água o gosto já não é o mesmo. Lembro-me de um familiar da ex-mulher do meu pai, aqui há uns anos, criticar esta “malta nova” por estar sempre a tomar banho. Segundo ele um banho por semana bastava. Na altura achei ridícula a observação, hoje acho ridículo o que eu achei.
Os dias estão cada vez mais pequenos mas eu tenho cá para mim que não é o Inverno que os anda a encolher. De ano para ano os dias vão ficando menores e o tempo escasseia para tudo. Sempre pensei que a lista de coisas para fazer fosse diminuindo. Pura mentira. A lista aumenta de dia para dia e coisas tão improváveis como a leitura de um livro deixam-me angustiado. Tanto que me falta ler, eu que continuo a comprar mais livros do que aqueles que consigo consumir. Hoje demorei uma hora a decidir-me por um. Cheguei à conclusão que perdi uma hora de leitura. Depois cheguei a outra conclusão, perco demasiado tempo a decidir-me.
Deixo-te esta confissão com a certeza de que te rirás de mim.
Faço votos para que esse sorriso te traga alguma alegria.
Abraço grande meu irmão desconhecido.

26 de Novembro de 2017


P. Guerreiro 

2017-11-25

Carta para ninguèm

Escrevo-te como se de uma carta se tratasse. Posso tratar-te por tu porque não te conheço, posso revelar-me porque nunca me dirás que me compreendes.
Lembras-te da última vez que cruzamos textos; eu escrevia e tu lias, tal como hoje o teu silêncio era meu companheiro e ajudava-me a passar o tempo. Passaram alguns anos e o sabor que trago nos dedos já não deixa impressões. Confesso que tenho saudades tuas, confesso que tenho saudades minhas. Na verdade já há algum tempo que não me vejo. Os anos passam e tudo o que eu deixei por fazer continua exatamente por fazer. Partiram mais alguns e o meu pai entrou num lar. Confessou-me a sua impotência e chorou e eu abracei-o sem o olhar, com medo que as suas lagrimas se juntassem às minhas e se transformassem num mar impossível de navegar. Já passaram quase dois anos e eu sei que não voltei a ser o mesmo. Nunca se volta ser o mesmo. Fiz cinquenta anos e não te disse nada, também não comemorei. Nesse dia chorava-se a morte de um primo, 36 anos de álcool e 48horas de hospital bastaram-lhe para a despedida. No dia que fiz cinquenta anos fui a dois funerais. Na altura não te disse porque não havia nada para dizer. As parcas palavras transformaram-se em gestos para consolar quem me era próximo.
Continuo destemido de garrafa na mão e troquei o álcool escocês pelo medronho caseiro e pelo tinto de 14 e meio. Enquanto o fígado resistir e não inventarem uma hepatite d por cá ficarei mais alguns anos. Espero que te encontres de boa saúde quando leres estas linhas. Dá cumprimentos meus a quem tu muito bem entenderes e se porventura, ou outra qualquer razão, te ajoelhares para rezar não te esqueças de interceder por mim que eu farei o mesmo por ti.
Não te quero incomodar mais.

Abraço grande e até qualquer linha.

24 de Novembro de 2017

P. Guerreiro