2021-11-07

Democracia a funcionar

Dissolver o parlamento 
Não é nada excecional
Olha quem ficou sentado
Quando acabar o Natal
 
Dissolver o parlamento 
Não é drama para chorar
É o Natal em janeiro 
Democracia a funcionar
 
Passam meses até haver
Um Parlamento e governo. 
E muitos mais até chegar 
Uma espécie de Orçamento.
 
E ainda mais hão-de ser 
Para que os novos ministros
Saibam o que estão a fazer. 
Nada de grave 
Nada de excecional. 
Olha quem ficou sentado 
Quando acabar o Natal
São presentes em janeiro
Democracia a funcionar
 
Perder meses com processos
Prazos, avisos, discursos
Conferências e recursos
Não é nada de novo, 
É hábito em Portugal.
É um regalo pró povo
Democracia a funcionar
 
Divergências entre partidos
A falta de convergência
Pontos de vista sortidos
Portugal em convalescença
Bases sólidas de entendimento
São frequentes em Portugal.
Duram um instante, um lamento 
É a democracia a funcionar
 
A gravidade do momento
E a crise financeira
Nunca serão suficientes
Para mudar de bandeira
Não bastam para que os partidos 
Entendam que devem mudar
Novas soluções: nada de novo,
É a nossa democracia a funcionar
 
Depois de ler…

António Barreto
O grande sarilho (grande angular) Público Edição Lisboa 6 de novembro de 2021
 

2021-04-25

2021/04/25 10H39

 2021/04/25 10H39

 

Dois mil e vinte e um,

Abril, dia vinte cinco,

Domingo.

São dez horas da manhã e devia sentir alguma coisa.

 

Passaram quarenta e sete anos pela data.

Passaram cinquenta e seis por mim.

Algo passou, foi o tempo.

Eu mato esse tempo para poder recordar,

Como se fosse hoje.

 

 

 

 

A criança sentada no sofá da sala.

O olhar silencioso desvendando o silêncio da mãe.

Uma lágrima solitária desce apressada após uma breve hesitação.

A lágrima repousa no canto da boca.

A criança lê os sinais,

Lê a lágrima pura e cristalina da progenitora,

Lê-lhe o canto da boca,

O risco que se eleva,

O quase sorriso.

A aparelhagem sonora que é rádio e gira discos hoje é outra coisa.

 

Não me consigo recordar das palavras,

Do verbo dos homens da rádio,

Da música que saía pelos altifalantes.

Passaram quarenta e sete anos,

E eu era tão novo.

Quero acreditar que a minha mãe me abraçou.

Quero acreditar que abraçada a mim chorou de alegria,

Pelo fim da guerra,

Para poder esquecer aquele dia em 73 quando três homens bem vestidos lhe tiraram o marido.

Três dias durou a ausência.

O desassossego, esse perdurou.

Talvez acabe hoje, naquele dia, há quarenta e sete anos.

 

Era ainda noite quando o telefone tocou.

Não me lembro do telefone mas sei que ele tocou.

Sei que do outro lado o meu pai avisou a minha mãe.

Não posso sair…Um golpe de estado…Tropa à entrada da refinaria…Liga o rádio…

Terão sido essas as palavras?

Não sei…

 

Gostava de lhes perguntar,

De confirmar a veracidade deste passado.

Hoje, juntos onde se encontram, não me podem responder.

Hoje comemoram sozinhos o seu aniversário,

 

E eu, o que comemoro eu?

Sem sombra de dúvida que comemoro a liberdade.

Haverá algo mais a comemorar?

Necessitarei de mais palavras?

Penso que não e mesmos estas poderão ter sido desnecessárias.

 

Aos homens e às mulheres que possibilitaram o 25 de Abril um grande obrigado.

A homenagem possível é uma promessa que não pode ser quebrada.

Preservar a liberdade não é coisa pouca e nem todas as pessoas a entendem da mesma forma.

Poder escrever estas palavras e não ser incomodado é quanto me basta hoje.

 

Amanhã será outro dia…

2021-03-24

Apenas um sonho como tantos outros

 Encontro-me envolto numa substância aquosa. Não me sinto desconfortável. Aparentemente o meu corpo adaptou-se ao meio e com gestos fluídos faz-se deslocar de maneira célere.  Poderia dizer-se que nada, de tal forma a deslocação é eficiente. Tomo agora consciência que a minha deslocação é feita debaixo de água. Forço a apneia e agito pernas e braços de forma harmoniosa. Terei eu um destino pelo qual valha a pena o esforço...penso que sim visto que, apneico, mantenho um rumo direito e objetivo. Sinto-me observado por alguém no exterior. Procuro não me abstrair e foco-me na respiração. Tenho uma respiração controlada, mesmo debaixo de água. Penso, isto não devia acontecer, eu não devia ser capaz de respirar. Os meus pensamentos são abruptamente travados por uma parede, aparentemente, intransponível.

Estou cá fora e o que eu julguei ser um mar não é mais que um grande tanque em cimento no meio de uma seara verde. A seara tem quase a minha altura. Apercebo-me da minha nudez e envergonho-me. Que maçã terei eu mordido...estou só, tudo à minha volta é verde e o tanque desapareceu. Caminho sem destino sentindo nos pés torrões de terra seca e morna. Primeiro devagar, depois cada vez mais depressa. Sinto as espigas fustigarem-me o corpo. Por alguma razão que desconheço tenho uma agradável sensação de calor. Olho para o céu e deslumbro-me com um sol de meio-dia pintado por uma criança de cinco anos, um sol vertical e sem sombras. Descortino ao longe uma casa branca. Imagino-a caiada porque a cal me devolve a mocidade e o meu pai.

Estamos os dois numa clareira de um grande quintal. No centro desse quintal uma figueira distribui os seus ramos repletos de folhas de forma equitativa e uniforme. A sombra que estes projetam assemelha-se à de um alpendre. Junto ao tronco da árvore está um bidon ao qual cortaram o tampo. Lá dentro grandes blocos de cal imitam icebergues num mar branco e revolto. O meu pai segura um bastão de madeira e com ele provoca remoinhos lentos fazendo soltar gases desconhecidos. Sinto o cheiro a figos e a merda de galinha. Já não vejo o meu pai e agora sou eu que seguro o bastão numa pose de imitação disfarçada.

Os meus olhos perdem-se no branco da cal. O branco da cal, a principio difuso, começa a definir  granulados. São granulados familiares, rugosidades conhecidas, que cercam por completo o meu campo de visão. Os granulados revelam-se uma parede, a parede revela-se um quarto e o quarto diz-me que acordei...   

2021-03-22

Lugares sagrados (As Pedras Brancas)

O carro sai da estrada de asfalto e segue por um caminho secundário de terra batida. Afasta-se da via principal envolto numa nuvem de poeira. Dirige-se para uma pequena mata na orla do Grande Pinhal. O Grande Pinhal é um lugar de redenção, simultaneamente adorado e temido como acontece a muito do que é sagrado. O carro imobiliza-se junto a uma clareira na qual jaz uma pedra branca.  A pedra tem a forma de meia esfera com um metro de raio e ocupa o centro da clareira. Do carro saem quatro pessoas que circundam a pedra. As sombras são quase inexistentes o que num dia soalheiro indicia a proximidade  da hora que divide o dia ao meio. As quatro pessoas colocam-se de forma equidistante ao redor da pedra. O grupo não é homogéneo sendo composto por dois homens e duas mulheres de idades e raças distintas. Dos dois homens um é jovem, de raça negra, feições angulosas e cabeça rapada. É muito alto e o fato negro que enverga fica-lhe justo e mal lhe esconde a compleição atlética. O segundo homem é o seu oposto. É branco, baixo, de idade avançada, o cabelo fraco e ralo cai-lhe sobre os ombros e a cabeça revela uma coroa generosa de pele alva ligeiramente corada. Também veste um fato negro que lhe faz sobressair o abdómen proeminente, indicador de uma sedentariedade bem consolidada. As mulheres são ambas elegantes e os seus vestidos, também negros, emprestam-lhes um ar de dignidade aristocrática. Têm mais ou menos a mesma altura e esta é mediana no que toca à estatura feminina. As diferenças revelam-se na sua idade e origem racial. Uma, muito jovem, tem traços vincadamente asiáticos e o aspecto frágil de uma boneca de porcelana, lábios finos, nariz pequeno e ligeiramente arrebitado, orelhas bem desenhadas que os seus cabelos, de um negro profundo e apanhados atrás da cabeça, fazem sobressair revelando uma proporcionalidade quase perfeita. A outra mulher é caucasiana, muito branca, maçãs do rosto salientes e bastante coradas. Os olhos são como o reflexo do mar num dia sem sol. O azul acinzentado que apresentam contrasta de forma peculiar com a suas faces coradas dando ao conjunto uma sensação bizarra que tanto pode ser de afectuosidade como de frieza. O seu cabelo loiro exibe algumas cãs que não se distinguem sem uma observação cuidadosa. 
No seu conjunto e observados à distância todas estas diferenças se diluem e o que sobressai é o contraste negro das suas roupas e a alvura da pedra que eles cercam. O Grande Pinhal por detrás apresenta-se como o toque decorativo num cenário de teatro e só vem realçar a estranheza da situação. Poderia dizer-se que o Grande Pinhal, com toda a sua carga esotérica, estaria a validar os actos deste grupo tão peculiar mas, com um olhar mais atento, percebemos que também ele é testemunha e, tal como nós, não tem poder sobre a acção que se vai desenrolar.
  Durante algum tempo as quatro figuras negras deixam-se ficar estáticas, braços caídos ao longo do corpo, cabeça levantada em direcção à pedra. Num repente e de forma simultânea, aproximam-se da pedra. Primeiro com a mão direita, depois com a mão esquerda, deixam que estas repousem sobre ela. Após breves segundos de contacto a pedra eleva-se, ligeiramente e sem ruído, do solo.
Tão simultâneamente como as colocaram, as quatro figuras negras retiram as mãos e afastam-se até à posição inicial. A pedra mantém-se suspensa durante algum tempo. Depois, silenciosamente, eleva-se até que a sua alvura se confunde com a luz do sol e desaparece no céu. Nenhum dos participantes desviou o olhar para observar o fenómeno. Voltam ao carro fazendo o trajecto contrário até à estrada asfaltada. O carro afasta-se em velocidade moderada até desaparecer no horizonte luminoso que faz de cenário a este dia de verão.

2021-03-18

Despedida I

  Procuro uma resposta como se fosse importante. Procuro uma resposta porque é importante. Se não fosse importante não doía tanto. Dura à cinco anos a minha despedida. Começou numa manhã de Janeiro, uma manhã solarenga e morna, uma manhã fora de época. Começou com um telefonema, um apelo, um grito de socorro sussurrado ao ouvido, Paulo, podes vir cá, Sim Pai, passa-se alguma coisa, Vem cá que depois falamos. Desliguei o telemóvel e fiquei suspenso. Senti urgência em saber, senti angustia sem lhe conhecer a razão. Durante os últimos anos, os anos em que o meu Pai ficara só, fruto do divorcio que o separou da mulher com quem casara após enviuvar da minha Mãe, que eu pressentia desgraças quando o telefone tocava e ele não estava presente. Mas quando atendia e lhe ouvia a voz, a minha alma repousava suavemente nas suas mãos. Nessa manhã de Janeiro isso não aconteceu, nunca mais aconteceu.

  Nessa manhã morna e solarenga saí de casa com o coração nas mãos deixando apenas espaço para segurar no volante. Toquei à porta do prédio e subi as escadas galgando lanços até estancar à porta do 1º E. A porta ainda estava fechada e eu controlando a respiração bati suavemente com os nós dos dedos na madeira, És tu Paulo, Sim, sou eu Pai, podes abrir. O meu Pai ainda estava de pijama e tinha um ar cansado e ao mesmo tempo assustado, Preciso falar contigo. Fechei a porta e segui-o até à mesa da sala de jantar. Paulo eu aceito a tua ideia, corriam-lhe lágrimas pela cara, fiquei desarmado, abracei-o e chorei com ele. O que ele aceitava era a ideia que eu lhe sugerira de ele ir para um lar. A doença avançava rápido e com o meu trabalho não havia muitas soluções disponíveis. Almoçamos juntos, eu, ele e a neta que fui buscar à escola. Um almoço de silêncios que só eu e ele compreendíamos, um almoço que ela estranhou, mas que foi diluído nas preocupações normais de uma adolescente.

Sim, foi assim que começou a minha despedida...  

Manual de lembranças I

 Escoa-se em mim o tempo de ser. Levantei-me todos os dias e todos os dias perguntei porque me levantei. Comecei novo e nunca mais parei. Primeiro na mercearia lá na rua, aproveitando a distração do Zé Monge, perdido nos peitos da vizinha. Uma mão no saco de rebuçados, apanhando o que vinha à mão, um olho no Monge e outro nos mamilos que se empertigavam contra a camisola de lã. Trazia de lá com que adoçar a boca e a noite. Nas férias da escola, quando o Liceu estava fechado, o pequeno vidro partido escondido por detrás de uma badana de cimento, simulacro de uma persiana gigante deitada sob o lado esquerdo. Já com doze anos mas ainda cabia por aquela nesga de dentes afiados. Os chocolates na prateleira e os refrigerantes na grade valiam bem a camisola rasgada e o corte no braço. Na papelaria, onde o cheiro a tinta das revistas me deixava sem folgo. A dona Fernanda preocupada com o jornal do Sr. Doutor, num sorriso branco, ligeiramente rosado por causa do baton vermelho, num contraste de branca de neve com a sua pele. Sabia que não podia chegar aos cromos, demasiado distantes e protegidos pelo corpo robusto de dona Fernanda, mas os livros da coleção RTP ficavam desprotegidos, a capa branca e desengonçada, Albert Camus , "A Queda", nº 39 , ecrã azul num debrum televisivo verde alface e azul gaiato. A dona Fernanda tinha seios enormes, mas a cara desagradável que dedicava aos miúdos do bairro estragava qualquer fantasia. A papelaria Nanda, onde eu comprava religiosamente a revista Tintin. Doze e quinhentos de aventuras em continuação, Blueberry, Corto Maltese, Jonathan, heróis de liberdade infinita, liberdade que eu desejei sem nunca alcançar. Nem todos somos talhados para seguir as pegadas dos nossos heróis. Segui outras liberdades na instabilidade dos finais de setenta. Distribuía panfletos do Movimento de Esquerda Socialista porque a sede ficava ao pé de uma pastelaria e porque a malta que lá parava era simpática para os "putos". Os homens do partido tinham a barba e cabelo grande. As mulheres, lindíssimas, tinham o cabelo escorrido e sem maquilhagem e eram pouco mais velhas que eu, talvez uns cinco ou seis anos, o que para os meus catorze significava uma barreira intransponível. Eram Deusas, as primeiras que adorei...

Comecei novo e nunca mais parei...Mas hoje paro por aqui...