2020-09-16

Perguntas e respostas sem nexo

O imenso céu de chumbo verte cinzentos sobre a alma.

A alma afoga-se em vermelhos absurdos enquanto tudo arde.

Tudo o que arde tem um fim. O fogo eterno é uma mentira.

A mentira faz parte do cenário.

O cenário revela a mentira ao contrário.

O contrário procura o seu oposto numa ânsia de equilíbrio.

O equilíbrio desloca-se impulsionado por razões numéricas.

As razões numéricas são aleatórias, dependentes de múltiplos factores incontroláveis.

Os factores incontroláveis vertem-se perversos no imenso céu de chumbo.

A alma afoga-se.


Pergunta:

Qual a cor da chuva que cai num dia cinzento

Resposta:

Cinzenta

E o mar que a liberta evaporou-a da cor do céu, dias antes, quando tudo era azul e o sol brilhava. 

Nesse dia a alma negrava-se e os amantes amavam-se.

Amantes novos penetravam-se,

Amantes experientes tocavam-se,

Amantes velhos pensavam no seu amor,

E enquanto se amavam, choravam por saber que o amor nunca é eterno.


Pergunta:

Qual a cor do amor com que se ama num dia cinzento?

Resposta:

Cinzento

As almas que o criaram beberam da luz branca e transmutaram-se em prisma. 

As almas que o criaram verteram-no em infinitas cores quando tudo era azul e o sol brilhava.


A alma arde.

Pergunta:

É fogo que se vê 

Resposta:

É fogo que arde

Há dias em que se vê 

Outros há em que se oculta enquanto tudo arde à sua volta.

Não é fogo de apagar e não é eterno.

É um fogo que morrerá quando tiver consumido toda a alma, combustível da sua existência.


A eternidade é uma mentira piedosa 

Pergunta:

Porque é  a eternidade uma mentira

Resposta:

É uma invenção do racionalismo humano

É uma invenção do nosso medo

Uma defesa, um segredo,

Um antivírus da idade,

Uma segunda oportunidade.

O espaçotempo é sempre tão pouco

Falta sempre qualquer coisa,

Falta cumprir o que fomos inventando.

Quando deixamos de inventar morremos precocemente.

A eternidade é a mão que sustem os sonhos. 

É a verdade oculta na mentira da nossa existência.


Pergunta:

Quem criou o cenário 

Resposta:

Quem criou o Homem foi o homem

Antes o homem era bicho 

Consubstanciou-se com a sua criação e tornou-se Deus

Juntou todos os poderes num só 

A mentira e a verdade são as faces de uma única moeda

Ao mesmo tempo objecto de culto e pagamento

Vivemos num cenário onde a moeda única se desmultiplica

Em versões credíveis de pagamento.


Pergunta:

Se eu despir a mentira que tenho em mim, fico com a mentira ao contrário 

Resposta:

Se tu vestires a verdade ao contrário ficas com a mentira que tens em ti

Tu nunca poderás despir a tua pele

Somos o que somos e o nosso oposto

Somos o que somos nos momentos que escolhemos para ser.

Escolhemos o que somos porque escolher é viver

E viver pode ser uma mentira cheia de verdades

Ou uma verdade cheia de mentiras


Pergunta:

E o equilíbrio

Resposta:

É um balanço controlado

Uma tentativa de anular a gravidade

Anular a existência quase não existindo

E nessa não-existência passar sem visto

O equilíbrio é uma não acção.

Quando atinges o equilíbrio a não-acção é a totalidade do teu ser.

As acções que tendem para o equilíbrio têm como objectivo a não-acção

O paraíso eterno é um equilíbrio total

A morte, até ver, também poderá ser uma forma superlativa de equilíbrio.

Convém manter algum desequilíbrio para nos sentirmos vivos.


Pergunta:

Quais as razões numéricas para a nossa existência 

Resposta:

As razões numéricas provam a nossa extinção muito mais que a nossa existência 

A razão é simples

A compreensão do nosso mundo assenta na utilização de números para se poder provar

A ciência que prova, primeiro escreve a hipótese, depois cria a fórmula e no fim cria o postulado. 

Depois, uma mão de mãe cuidadosa mói tudo num creme de fácil digestão e faz-nos digerir a mistela ao som de coisas alegres e bonitas.

Uns comem melhor que outros, outros não comem.

Uns habituam-se à papa e não querem outra coisa, outros querem saber como se faz a papa.

Todas as razões numéricas dizem que não somos viáveis. O expoente da nossa existência é incompatível  com o nosso mundoconjuntofechado.


Os factores incontroláveis vertem-se num rigor profético

Pergunta:

Porque são incontroláveis os factores

Resposta:

Porque são as ferramentas do nosso Deus consubstanciado

São arma e defesa, justificação e promessa

Salvam a alma que se afoga e no mesmo processo deixam-na afogar-se

E a alma afoga-se em cinzentos sob um céu de chumbo.



2020-06-19

Despedimento


 

Despedimento.

Despem-me da carne a pele,

a alma e o sustento.

O pouco que sobrou de mim

negociado numa mesa e o fim

anunciado no momento.

Quer, não quer, é o que há.

Hoje posso amanhã quem julgará

Não pense que eu sou o que sou,

Considere-me a voz do desengano,

nova oportunidade ou alento.

Sou porta voz de um jumento

em fim de ciclo ou novo ano.

 

 

 

Noites houve,

que a semana não contou,

em que a minha vida desfilou

pelos meus olhos cerrados.

O meu número num cartão,

e o meu nome num borrão,

são prova do que passei,

fragmentos do que fui e do que sou,

restos do que sonhei

pedaços de mim espalhados.

 

Hoje entrei,

tingindo de rosa o pudor.

Trespassei o corredor

Lembrando como cheguei.

Sinto a mão que me empurra

mas não lhe tenho rancor.

Trago um alívio de dor,

por tudo aquilo que eu dei.


2020-02-01

O Rio




O canal de águas barrentas transmuta-se em visão onírica.
Dissimula-se cobrindo o seu leito com um véu negro onde se perdem, infindas, as luzes da cidade.
Criaturas apaixonadas perdem-se e apertam-se no encanto da sua cinesia.
Águas geladas recebem-lhes os gestos e as palavras não ditas, reprofundando dentro de si a confidência de loucas promessas.
As cores que a cidade derramou no rio deixaram de lhe pertencer.
Diluídas, são obra involuntária, produto de casualidade, mesmo que a origem lhe seja indiferente e que a mão sábia do homem as tenha inventado.
Na manhã o inverno devolverá o barro ao rio, a cinza e a sépia às fachadas húmidas, a nudez crua do que é desvendado áquele que acordou.
Vemos então o canal que molda a água escorrer formas.
Quando de negro se transmutar novamente serão elas os amantes e os filhos do seu leito, escravos do seu peito, seus eternos e noctívagos navegantes.