O imenso céu de chumbo verte cinzentos sobre a alma.
A alma afoga-se em vermelhos absurdos enquanto tudo arde.
Tudo o que arde tem um fim. O fogo eterno é uma mentira.
A mentira faz parte do cenário.
O cenário revela a mentira ao contrário.
O contrário procura o seu oposto numa ânsia de equilíbrio.
O equilíbrio desloca-se impulsionado por razões numéricas.
As razões numéricas são aleatórias, dependentes de múltiplos factores incontroláveis.
Os factores incontroláveis vertem-se perversos no imenso céu de chumbo.
A alma afoga-se.
Pergunta:
Qual a cor da chuva que cai num dia cinzento
Resposta:
Cinzenta
E o mar que a liberta evaporou-a da cor do céu, dias antes, quando tudo era azul e o sol brilhava.
Nesse dia a alma negrava-se e os amantes amavam-se.
Amantes novos penetravam-se,
Amantes experientes tocavam-se,
Amantes velhos pensavam no seu amor,
E enquanto se amavam, choravam por saber que o amor nunca é eterno.
Pergunta:
Qual a cor do amor com que se ama num dia cinzento?
Resposta:
Cinzento
As almas que o criaram beberam da luz branca e transmutaram-se em prisma.
As almas que o criaram verteram-no em infinitas cores quando tudo era azul e o sol brilhava.
A alma arde.
Pergunta:
É fogo que se vê
Resposta:
É fogo que arde
Há dias em que se vê
Outros há em que se oculta enquanto tudo arde à sua volta.
Não é fogo de apagar e não é eterno.
É um fogo que morrerá quando tiver consumido toda a alma, combustível da sua existência.
A eternidade é uma mentira piedosa
Pergunta:
Porque é a eternidade uma mentira
Resposta:
É uma invenção do racionalismo humano
É uma invenção do nosso medo
Uma defesa, um segredo,
Um antivírus da idade,
Uma segunda oportunidade.
O espaçotempo é sempre tão pouco
Falta sempre qualquer coisa,
Falta cumprir o que fomos inventando.
Quando deixamos de inventar morremos precocemente.
A eternidade é a mão que sustem os sonhos.
É a verdade oculta na mentira da nossa existência.
Pergunta:
Quem criou o cenário
Resposta:
Quem criou o Homem foi o homem
Antes o homem era bicho
Consubstanciou-se com a sua criação e tornou-se Deus
Juntou todos os poderes num só
A mentira e a verdade são as faces de uma única moeda
Ao mesmo tempo objecto de culto e pagamento
Vivemos num cenário onde a moeda única se desmultiplica
Em versões credíveis de pagamento.
Pergunta:
Se eu despir a mentira que tenho em mim, fico com a mentira ao contrário
Resposta:
Se tu vestires a verdade ao contrário ficas com a mentira que tens em ti
Tu nunca poderás despir a tua pele
Somos o que somos e o nosso oposto
Somos o que somos nos momentos que escolhemos para ser.
Escolhemos o que somos porque escolher é viver
E viver pode ser uma mentira cheia de verdades
Ou uma verdade cheia de mentiras
Pergunta:
E o equilíbrio
Resposta:
É um balanço controlado
Uma tentativa de anular a gravidade
Anular a existência quase não existindo
E nessa não-existência passar sem visto
O equilíbrio é uma não acção.
Quando atinges o equilíbrio a não-acção é a totalidade do teu ser.
As acções que tendem para o equilíbrio têm como objectivo a não-acção
O paraíso eterno é um equilíbrio total
A morte, até ver, também poderá ser uma forma superlativa de equilíbrio.
Convém manter algum desequilíbrio para nos sentirmos vivos.
Pergunta:
Quais as razões numéricas para a nossa existência
Resposta:
As razões numéricas provam a nossa extinção muito mais que a nossa existência
A razão é simples
A compreensão do nosso mundo assenta na utilização de números para se poder provar
A ciência que prova, primeiro escreve a hipótese, depois cria a fórmula e no fim cria o postulado.
Depois, uma mão de mãe cuidadosa mói tudo num creme de fácil digestão e faz-nos digerir a mistela ao som de coisas alegres e bonitas.
Uns comem melhor que outros, outros não comem.
Uns habituam-se à papa e não querem outra coisa, outros querem saber como se faz a papa.
Todas as razões numéricas dizem que não somos viáveis. O expoente da nossa existência é incompatível com o nosso mundoconjuntofechado.
Os factores incontroláveis vertem-se num rigor profético
Pergunta:
Porque são incontroláveis os factores
Resposta:
Porque são as ferramentas do nosso Deus consubstanciado
São arma e defesa, justificação e promessa
Salvam a alma que se afoga e no mesmo processo deixam-na afogar-se
E a alma afoga-se em cinzentos sob um céu de chumbo.
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