2006-12-27

Urbe III

Acordou sem rebanho, não seguia nenhuma caravana e do deserto só o calor das mantas com que se cobrira. Levantou-se depressa enxotando ideias e profecias. Foi uma manhã normal, de sentido único, na direcção da urbe que o esperava sem especial necessidade. Levou um livro debaixo do braço e ele lá ficou, inerte, sem forças para se abrir. Chegou a horas aonde tinha de chegar e só nesse momento recordou a voz feminina que lhe marcara a noite anterior. Procurou abstrair-se ligando-se à informática bancária, despachou serviço, autómato numa linha de montagem, sem ver, utilizando a rotina memorizada, encharcou-se em números, percentagens, planos disto e daquilo, contas para os outros e de outros que não ele. O relógio de pulso marcava passo, nove e trinta, nove e trinta e cinco, nove e quarenta, nove e quarenta e um, assim não vou longe… A máquina de café tão longe, ele tão longe, tudo tão longe e os números a precisarem da sua atenção, a solicitá-lo exigindo-lhe cálculos de destreza automática…”Osvaldo, queres um café?”, “Não…Sim…Quero sim!”, a voz da Carmem trazendo-o pela mão à rotina da agência, a voz doce da Carmem. Por segundos fecha os olhos e imagina-se longe, com aquela voz. Os segundos são o que são e não são o mesmo para todos, ele viajou, ela não e já lhe trazia um copo de plástico, branco e fumegante. Pegou-lhe com três dedos e deixou que este os aquecesse…Como a areia do deserto, do deserto que ele era, sem areia. Porque será a pele dela tão branca, deliciosamente branca, “Bebe o café senão fica frio!”, “Sim…”, ela já não ouviu o sim, o sim que se diluiu no seu perfume, como nos anúncios de televisão, ele o figurante perdido, a personagem fugaz, o relance humano de sentimentos banais e no entanto profundos. Nove e cinquenta, nove e cinquenta e um, o chefe que o chama e ele sem ouvir, sem ver, olhando sem ver, “Vou já!”. “Preciso que me faças o relatório…” e o relatório que ele aponta distraído num bloco de notas com o logótipo da instituição, lembra-te de quem te paga, lembra-te…E ele lembra-se da voz feminina do outro lado da linha, dez e trinta, dez e…Hoje vou almoçar mais cedo, a quem dirigiu ele esta declaração de intenção, ao chefe, à Carmem que espera pelo namorado, à dona Esmeralda que hoje o estranhou mas não teve coragem para lho dizer, ao irritante Ricardo que tudo faz para agradar, “Queres que te ajude nalguma coisa?”, “Não!”, seco como o deserto que ele deixou, no sofá…Ao longe uma septuagenária discute com o caixa…O senhor André precisa de um empréstimo, crédito fácil…Ao longe a velha mulher tenta fazer entender-se…No ecrã alguém que precisa de um carro novo, o senhor André? Não esse já tem carro novo!
Onze horas e quatro minutos, “Não falte, ficaria bastante desiludida.”, não faltarei, eu quase nunca faltei…Ou faltei?...Onze e quinze…Tira o relógio do pulso e volta a colocá-lo…No pulso…Hoje vou almoçar mais cedo, está decidido, já estava decidido. Lá fora o ruído dos automóveis é apelativo, quase metafórico, liberdade que rola e desaparece…Talvez para o deserto…Merda mais o deserto!
Meio-dia, tanto que demorou o meio-dia, minuto a minuto o meio-dia é muito mais que meio-dia…O trabalho avança sem erros, ele espera que sim, ele precisa que assim seja, as coisas não estão fáceis e ele não deve falhar…O ponto da situação, mais de três horas sem se levantar e o ruído lá fora, por detrás da enorme vitrina que o deixa ver…O ruído lá fora e o relógio a dizer-lhe, meio-dia e trinta…”Acabei o relatório!”, eis a comunicação, eis a chave libertadora, “Hoje preciso de ir mais cedo…Tenho de tratar de uns assuntos…Pessoais…”, como quem diz , não me chateiem, deixem-me em paz e não me peçam explicações…Pega no casaco e sai…São doze horas e quarenta e cinco minutos.
(cont.)

2006-12-16

Urbe II

Olhou-o com desprezo, incomodado com o apelo incógnito. Deixou-se cair no sofá procurando abstrair-se, pausa, toque, pausa, toque, pausa, toque, merda, nunca mais se cala. Estava quase a desistir quando o outro se rendeu. Agradeceu o silêncio e fechou os olhos, adormeceu sem dar por isso. Já era noite quando acordou, o corpo entorpecido, os músculos com cãibras, o estômago faminto, a boca seca e um arrepio que lhe fez pensar na morte. Não foi desta que me levou. Deixou que os olhos se habituassem à penumbra, apenas cortada pelos reflexos néon que vinham de fora pela janela da sala, intrusos luminosos lembrando que do outro lado ainda existia vida. Os objectos ganhavam dimensões e ele foi-os observando com dormência. Procurou pelo comando da televisão afagando o espaço vazio ao seu lado. Sentiu-o na mão, familiar, botões conhecidos dos seus dedos. O ecrã iluminou-se com um estalido seco e retirou de imediato o som. Desfilou canais e imagens numa cadência que parecia programada, para a frente, depois para trás e novamente para a frente. Largou o comando saturado de tanta inércia e dirigiu-se para a cozinha. Estava arrumada, tudo parecia em ordem e isso espantou-o por momentos até reparar num bilhete em cima da mesa. A mulher que lhe fazia a limpeza da casa tinha estado lá e recordava-lhe o número de horas de trabalho que ele tinha de pagar. Abriu o frigorífico e descobriu desalentado que não fora ao supermercado. Restavam-lhe duas fatias de queijo, alguns iogurtes, meio pacote de manteiga e seis cervejas de lata. Tirou o queijo e uma cerveja, na caixa do pão três fatias com mau aspecto seriam o revestimento de uma refeição improvisada. Não chegou a sentar-se e a segunda cerveja acompanhou-o à sala. Tirou o casaco mas sentiu frio e foi buscar uma manta. Deitou-se no sofá e cobriu-se com ela. Assim ficou até o telefone tocar outra vez. Olhou para o relógio de pulso, duas da manhã, quem seria a esta hora? Levantou-se com esforço e pegou no aparelho, “Está? Quem fala?”, “Estou a falar com o sr. Osvaldo Garcia?”, “Sim é o próprio!”, a voz feminina era de uma mulher madura, educada, que pausava as palavras e as proferia de um modo correcto, como a sua professora de português no primeiro ano do liceu por quem teve uma paixão avassaladora, adorava a sua voz. “Eu sei que você não me conhece, mas tenho um assunto para tratar consigo que decerto o vai interessar.”, “Sim…”, “Seria possível encontrarmo-nos amanhã à hora de almoço? Suponho que tenha hora de almoço na agência bancária?”, “Como é que sabe onde trabalho?”, “Da mesma maneira que sei outras coisas sobre si. Encontre-se comigo e verá que não se arrepende.”, “E onde será esse encontro?”, “Decida você!”, “Eu costumo almoçar num café ao fundo da rua…”, “Pode ser! Estarei lá à uma em ponto. Não falte, ficaria bastante desiludida.”, “Esteja descansada que lá estarei…”. A chamada acabou tão repentinamente como tinha começado. Ela pode ter ficado descansada, o mesmo não se passou com ele. Porque raio aceitou encontrar-se com aquela mulher, uma desconhecida. Experimentou várias sensações, teria sido o sono, o cansaço ou simples curiosidade? Agora não interessava, a decisão estava do seu lado, pelo menos assim o pensava, esquecido que estava do facto daquela mulher saber tanto sobre ele e poder controlar os seus movimentos. Procurou distrair-se lendo um livro sobre religiões. Quedou-se sobre a vida do profeta Maomé, Maomé, filho de Abd-Alá, nasceu em Meca no ano de 570. Fazia parte dos Haqmitas, ramo dos Coraixitas. A sua família parece que não foi das mais importantes da cidade. Sua mãe, Amina, Já viúva quando ele nasceu, vivia em condições bastante precárias. Conheciam muito pouco dos seus primeiros anos, visto que a lenda, encarregando-se aqui, como em toda a parte, de preencher lacunas da história, bordou numerosas narrativas sobre o tema da infância do Profeta, de sabor mais ou menos poético. O que entretanto parece estabelecido é que a criança foi entregue a uma ama beduína, de seu nome Halima. Era costume dos ricos mercadores de Meca confiarem os filhos, nos seus primeiros anos, a árabes do deserto. Embora com poucos recursos a família de Maomé não quebrou a tradição.
Pouco depois sua mãe morreu; durante algum tempo o pequeno órfão viveu junto de seu avô, já octogenário; depois foi recolhido pelo seu tio Abu-Talib. Este último, segundo parece, não devia ser rico, porque se conta que Maomé precisou de tomar a profissão, pouco considerada, de pastor, tendo um modesto lugar no pessoal menor das caravanas de comércio.
Também ele era órfão desde tenra idade. Adormeceu imaginando-se no deserto, pastor como o profeta.

(cont.)

2006-12-12

Urbe

Seis da manhã, ele acordou, o sol não. No escuro do quarto os números digitais iluminam-lhe a hora. A boca está seca, os olhos também. Torpor que se desvanece, consciência que retorna ao corpo cansado. Foram duas as horas dormidas, porquê o despertar, o despropósito matinal de quem não descansou o suficiente. A roupa que despiu encontra-se arrumada, anormalmente arrumada. Na mesa um copo meio de água. Estende a mão ao interruptor, acaricia-o e hesita, espera pela reacção ocular, desiste do interruptor. Sabe mover-se no escuro, sabe da casa de banho no escuro e encontra-a. A sanita, a banheira, o chuveiro e a água quente…Que bem que lhe sabe a água quente, sangue de lagarto aquecido, fluido interno que lhe lembra a vida. Todos os dias são dias de trabalho, dias de viagem, peregrinação à cidade. Hoje o comboio? O carro? Melhor o comboio. As ruas enchem-se de pessoas, sentidos únicos, cada um com o seu. Estações, paragens de autocarro, ruas e estradas, o mecanismo recomeça. Sem dar conta hoje é ontem e ontem será amanhã e a gravata está desalinhada, o casaco que cobre a camisa pede lavandaria. Lisboa chega sem ele pedir e ele não pede para entrar. Mais estações, mais ruas e prédios e a agência do banco. Sabe de si pelo olhar dos colegas…Isto está mal, nem a barba que lhe custou a fazer o safa, o comprimido que tomou para acordar ainda não se mostrou no seu efeito milagroso.
Está sentado por detrás de uma secretária, tenta organizá-la, organizar-se, mentira que mantém durante cinco minutos, tudo está estabelecido, as ordens são claras e o gerente já lhe disse o que pretendia. Rende-se, abre a gaveta e tira um molho de processos, empréstimos de todos os tipos que precisam ser avaliados antes de chegar ao chefe. De longe a dona Esmeralda procura-o com o olhar tentando captar a sua atenção, consegue-o e ele rende-se. Também ela precisa de ajuda, a idade não ajuda e espera paulatinamente pela reforma. “Ajudas-me nisto? Não percebo nada desta porcaria”, aponta para o monitor, para uma janela de erro, teimosa, que não se deixou intimidar pelas sucessivas escapadelas. “Dá-me só um minuto.”, buscou uma cadeira de uma secretária vazia onde já tinha trabalhado alguém, agora é de todos, à vez, redução de custos que a tanto obrigas, maldita produtividade. O problema não era complicado, um conflito manhoso de um programa mal dimensionado, fecha-se a aplicação e reinicia-se o computador, “Tinhas salvo o trabalho?”, “Estava agora a começá-lo.”, “Um beijo Esmeraldinha.”, “Obrigado meu filho, és um anjo.”, voltou para o seu lugar, desperto, bem consigo próprio pela ajuda prestada aquela velha senhora que tanto o considerava.
Sente falta de um café, a nicotina está domada e já só precisa dela depois das refeições, há quem o inveje por isso. A máquina encontra-se ao fundo da ampla sala, não muito longe de uma máquina de fotocópias de última geração cheia de ruídos suaves e estalidos discretos. A Carmem tira fotocópias com um olhar atento ao visor. Sem se voltar murmura, “Vais tirar um café?”, “Vou!”, “Tira dois.”. Sim a Carmen é uma bela rapariga, a mais nova, ele tenta agradar-lhe sempre que pode. Tem a pele bonita, branca, de um branco que lhe lembra as figuras gregas dos livros de história, lisa, sem nódoas ou marcas que lhe estraguem a matriz. Tem uns olhos sinceros, tão sinceros que não foi preciso tentar para saber que não tinha hipóteses, que pena. A diferença de vinte anos não perdoa a quem não é rico e tem de competir com o belo rapaz que a costuma ir buscar por volta das cinco. “Toma! Se não estiver bom eu tiro-te outro.”, “Está óptimo! Obrigado!”. Finalmente começa o seu trabalho. Por volta da uma da tarde tem metade dos processos revistos. Não vão almoçar todos ao mesmo tempo, revezam-se e ele dá uma mãozinha à Carmem para ela ir comer com o Ricardo, o namorado. Ficou na caixa até às duas e só depois foi para o café onde esperavam por ele uma sopa e dois rissóis. Ainda teve tempo para um bolo, um café e um cigarro. Não admira que as análises estejam uma porcaria, o médico já o avisou, você tem de se alimentar como deve ser.
A vida de solteiro também não ajuda e os jantares são uma mistura de álcool com gorduras em quantidades desaconselháveis, “Olhe o coração! Os acidentes cardiovasculares são cada vez mais frequentes em pessoas na casa dos quarenta!”, “Eu sei doutor!”, “Se sabe não parece…”, conversa repetida nestes últimos dois anos.
Na parte da tarde foi falar com o chefe, tinha noção de ter avançado bem mas não tinha a certeza de ter sido o suficiente para não ficar até mais tarde. Entregou os papéis, explicou os casos mais complicados, os que precisariam de uma segunda avaliação, dos outros, os mais simples, garantiu serem rentáveis à instituição. Esperou numa ansiedade contida, algo que os anos lhe ensinaram, “Está tudo bem. Amanhã logo vemos o resto.”, isto significava que depois de fechar o balcão só teria de ficar mais uma hora. O trajecto para casa pareceu-lhe uma eternidade, a porta de casa o paraíso. Ainda não se tinha sentado quando o telefone tocou.

(cont.)

2006-12-07

I

Nasci pequeno
Do tamanho que se quer a quem nasce
Pela barriga com o cordão ao pescoço
Moniz contemporâneo entregando a ponta ao destino

Da árvore do nascimento
Até ao chão do pomar
Sente-se o calor da fermentação
Fruto de sabor alcoólico

Maçã negra de Inverno
O Inverno existe em pensamento
Pensamos em chuva e chove
O que nos faz pensar em tanta água?

Rebelde cinzento, como se existisse o cinzento
Como se cor fosse cor
O olho detecta o câmbio
O passar de um estado a outro
E a outro

De um lado o passado
Todo ele coisas internas
Sensações
Partidas
Travessuras de uma memória devassa

Escorre em mim essa água interior
Enxurrada que desagua em rios menores
Capilares que se perdem em extremidades de vida

Os quatro elementos
O Ar
A Terra
O Fogo
E o Éter que justifica o desconhecido
Meu caro Mendeliev que os atirou prá tabela
Cento e tal coisas que aprendi com medo de não entender

Do fogo tenho noções
Aquecimentos que me fazem companhia
De dia
De noite o calor é outro
Desassossego
Aperto o lençol da cama como se fosse minha mãe
Mas não sou
Sou eu



Nem a cama é cama
É a ideia que dela ficou
Da cama e de tudo o resto
Do berço que não me lembro mas sei que existiu

Fada madrinha
Anjo da guarda que eu guardo debaixo do colchão
E a mão que lá o colocou
Era eu menino
Talvez nem isso

Dorme bebé vem fazer ó ó
Dorme, dorme meu menino
Agora que já és homem

2006-12-03

Um cão, uma rua e mais qualquer coisa…

Sou um cão, chamam-me “Benfica” e dou-me pelo nome. Nas ruas onde nasci, vi crescer crias humanas, pequenos rebentos que dos braços das mães passaram para carrinhos de bebé e dai para o chão. São eles que eu sigo para todo o lado, conheço-lhes as portas, as portas para onde os sigo no fim do dia, as portas onde espero por eles nas manhãs. O Paulo Jorge, o Dado, o João, o Carlos do “lugar”, o Zé Alberto, o Mário Rui, o Rui “Gordo”, duma ponta à outra da Alexandre Salles. Houve uma altura em que andavam sempre na rua, agora só quando o sol começa a descer. Falam da escola, falam de clubes e grupos e eu sento-me e ouço, gosto de os ter por perto, gosto deles, dos seus risos, das suas festas, das suas brincadeiras. Sei que estou ficando velho, por algum motivo que desconheço eu vou perdendo as forças e eles vão ficando cada vez maiores. Gosto de duas cadelas, não preciso ir muito longe quando me sinto inquieto, a “Flecha” e a “Vaidosa”. Disputo-as com outros cães que vêm de longe, alguns de muito longe. Sempre lutei pelo que precisava, sou orgulhoso e defendo o meu território. Sei que muito do meu esforço foi morto ou perdeu-se nas ruas sem eu saber porquê, no entanto um dos últimos esforços foi premiado. Soube pelo Paulo Jorge que o grupo queria fazer um clube, fui atrás deles quando escolheram o sítio, as traseiras dos prédios, via-se o comboio passar a ponte e ouvia-se melhor a sirene que todos os dias tocava quando o sol estava a pino. Desprezaram uma árvore e dois outros lugares que alagavam durante o Inverno. Meteram mãos à obra roubando materiais das obras que iam sendo feitas no imenso descampado que separava a rua do caminho de ferro. Mais tarde soube que pertenciam à futura escola preparatória. Vi o Paulo furar o pé num prego e trazerem as tábuas de arrasto com ele, passei tardes a ouvir cavar e martelar, vi a casa…”O Clube” tornar-se abrigo, com telhado, com janela e com porta de senha para entrar. Nasceram por essa altura quatro filhos meus do ventre da “vaidosa”. O “Nero”, parecido com a mãe era gordo e com pelo louro que se adivinhava longo, o “Lorde”, magro e de pelo curto de um castanho indeciso, destinado a substituir-me e mais dois que nunca vi. A “Vaidosa” tinha dono, tinha donos, moravam numas barracas junto aos prédios novos onde os meus amigos costumavam ir para comer pevides, amendoins e tremoços em troca de algum trabalho, trabalho ligeiro a ensacar essas coisas que me ofereciam e de das quais eu nunca gostei. Também eles não gostaram desses quatro cachorros, os primeiros duma cadela que sempre protegeram. Ao “Nero” arranjaram logo dono, era bonito e prometia ser um belo animal. Ao “Lorde” foram os meus amigos que o salvaram, comprando-o por doze e quinhentos, dinheiro tirado às suas economias a bem do clube que haviam formado, ouvi falar do clube dos sete mas nunca percebi bem porquê…Dos outros dois adivinhei-lhes a morte…Não havia lugar para bocas a mais.
Um dia fiquei doente, talvez velhice, ou coisa que comi, os olhos envidraçaram-se e as moscas seguiam-me para todo o lado. Deixei de comer e os miúdos percebiam-me moribundo…Alguns chegaram a chorar…Abalei para morrer sozinho…longe…Para os lados da Damaia…Numa casa abandonada…Tive uma vida de cão, cão completo, com filhos e amigos que recordo. Tenho pena de não os ter visto crescer, mas sei que fui feliz por ter partilhado com eles tantos momentos…Momentos que me ajudaram a partir…

Nota: A história é verdadeira, os nomes também…O pensamento do animal é da minha imaginação....

2006-11-29

Branco...




Branco…Eis o meu testemunho em branco…
A minha parede roubada.
Escrevam nela a revolta, a vontade de viver.
Um abraço muito grande a todos os que lutam para ficar entre nós!

2006-11-27

Por vezes estamos sem fazer nada...

Por vezes estamos sem fazer nada, preguiçosos da vida, preguiçosos de tudo. Levantei-me tarde, quase uma, e liguei o computador. Quase embalado no ruído do arranque da máquina, olhava para o ecrã. O ambiente de trabalho, os atalhos, os ícones…E eu adormecido, olhando as palmeiras de uma viagem às Caraíbas, quase sentindo o calor e a humidade daquele entardecer. Passaram alguns segundos, ou terão sido minutos? Não sei! Passou um pouco daquilo a que chamamos tempo…Quando não está a chover…Se estiver a chover o tempo é mau…Que merda de tempo…Chuva e vento e…Não estou a falar desse tempo…Desculpa…Onde é que eu ia?...Estive por momentos distraído de tudo, sim eu sei que liguei a máquina, mas liguei-a sem objectivo definido, talvez só para a ouvir trabalhar, agora que penso nisso até me parece um bom motivo, para de me interromper! Está bem…Levei a mão ao rato…Ao quê?...Já te disse para não me interromperes! Podes ficar ai, dentro de mim, mas sossegado, está bem?....OK!
Liguei-me à net, Homepage, favoritos, alguns blogs e a minha irmã a recordar-se e eu a recordar-me, não com as suas recordações, com outras, minhas, de outras pessoas, de mim, de mim em casa com vinte e tal a ouvir música, sempre a ouvir música, já vos contei que tive um baixo assinado para me expulsarem do prédio…E isso interessa…Cala-te!...Sim a ouvir música e um dia toca-me à porta o João Paulo, era visita da casa, assim como muitos outros, amigos, amigas, eu vivia sozinho mas tinha a casa cheia, morava ao pé de locais de encontro e quando esse não acontecia a campainha tocava. “Quem é?”, “Sou eu!”, a voz familiar, hoje alegre e satisfeita, satisfeita por voltar a Portugal depois de umas vindimas no sul de França que não correram muito bem. “Entra, estava a fazer uma.”, “Tens mil paus?”, “Para que queres os mil paus?”, “Tens ou não tens?”, “Tenho!...”, “Dá-me lá os mil paus e não me faças perguntas…Eu venho já!”. Tinha confiança no João Paulo, havia respeito na nossa relação, identificávamo-nos nas revoltas, ânsias, ambos sem mãe…O que é que isso interessa?...Na altura interessava e ajuda a compreender a história. O João Paulo não tinha mãe, o pai era tenente coronel ou coronel e tinha uma irmã mais nova. Não gostava de estar em casa, vivia para o dia, se possível pedrado…Mas era o que todos faziam, ou quase…Porra cala-te! Deixa-me acabar que depois falo contigo.”. Adiante! Demorou uns vinte minutos até que voltei a ouvir a campainha, um dling-dlong fraco porque precisava de pilhas novas. Entrou radiante com um disco debaixo do braço, “Agora sim podes fazer-me uma!”. Dirigiu-se para o gira-discos sem me deixar ver a capa, escolheu uma música, levantou o som e inundou-me a casa de “Blues”, aquele blues do Texas, branco e acelerado, “Isto é Gary Moore, um gajo que foi guitarrista nos Thin Lizzy, agora toca Blues, conheci isto em França.”. “Texas Strut” era o nome da faixa…E ainda é…Estou mesmo lixado contigo…
Ouvimos o álbum todo e repetimos alguns temas, lembro-me de mim…Novo…A sentir-me velho ao ouvir “As the Years Go Passing By”.
O João Paulo Morreu já há alguns anos, de overdose, vivia com uma moça bonita, as cores de Timor na pele, na Venda Nova, às portas de Benfica.
Viu-o a última vez na estação dos comboios da Amadora, eu já trabalhava cá em baixo, tinha partido o carro e tinha de ir de camioneta. Bebemos umas cervejas e demos um abraço, gostava de lhe ter dado um abraço maior, “Vê lá se apareces.”, “Quando tiver carro é mais fácil, eu prometo.”, promessa que não cumpri, que nunca pensei cumprir, eu que fugi de Lisboa para fugir do Mundo e de mim, por isso está calado!
Isto saiu-me mesmo assim e agora que estou acabando não sei se o deva postar…Não foi para isso que o começaste?...Foi, mas descambou e também por tua culpa!...Deixa-te de merdas, posta isso e vai almoçar…Desta vez tens razão…

2006-11-22

Manias

mania (Lat. mania, proveniente do Grego mania, loucura), substantivo feminino.

Espécie de perturbação ou excitação caracterizada por aferro a uma ideia fixa;

(fig.) Mau costume; excentricidade; esquisitice; extravagância; desejo imoderado, excessivo.

Agora que estou de posse de todos os dados posso responder de forma honesta ao desafio que me foi lançado…

Primeira – Tenho a mania que sou de esquerda (Espécie de perturbação ou excitação caracterizada por aferro a uma ideia fixa).

Segunda – Ainda fumo, ainda bebo, ainda… (Mau costume).

Terceira – Gosto de me isolar e andar ou então fechar-me e não falar com ninguém. São fases, manias (Esquisitice).

Quarta – Tenho um desejo imoderado, excessivo por música.

Quinta – Imagino-me várias pessoas (Excentricidade).

Foi o que me ocorreu perante a definição de “mania” encontrada no Dicionário Universal da língua Portuguesa (Texto Editora).
Muito mais ficou por dizer como seria de esperar perante a abrangência da palavra.
Possivelmente todas as outras manias têm dias, umas vezes são, outras não.

Um abraço à Isabel

2006-11-20

Caminheiro (O adeus)

Durante seis meses e até a obra acabar arranjaram sempre maneira de se encontrar a sós. A princípio momentos breves, o desejo era mais forte, depois as confissões, os passeios junto à ribeira, o risco que aumentava.
“Sabes que fui violada quando estudava em Lisboa?”, cabeça baixa, cabeça alta, “Percebes? Tudo me correu mal.”. E ele escutou a história daquela noite, “Ele e os amigos…Os cabrões…Chorei tanto…”, a humilhação, os olhos negros, as escoriações no corpo, “Nunca mais fui a mesma…Tive de abortar, na altura era difícil e fiquei muito mal…Mas mesmo assim sobrevivi e consegui ter um filho do Pedro.”, “Gostas dele?”, “Gostei…Precisava de alguém…”, “Serei eu uma repetição?...”, “Não! Actualmente não estou tão frágil.”, “Talvez estejas mais amargurada…”, “Que sabes tu disso?”, “Estive preso quinze anos…Matei um homem…Por amor ou despeito ou outra coisa qualquer que me tirou o sono até eu lhe acabar com a vida.”, “Mataste um homem por amor?...”, “Por amor a uma mulher…Á minha mulher.”, “Foste…Traído?...Desculpa…”. Neste momento choravam os dois, em silêncio, com a água guardada nos olhos. “Perdi-os quando estava na prisão, primeiro o divórcio, depois o acidente…”, “Não vamos falar mais nisso…Vem cá…”, ele foi e tiveram-se como nunca se tinham tido.
A vida não é feita de felicidade ou infelicidade, a vida é feita de acontecimentos, eventos que nos colocam perante decisões, escolhas, das quais dependem outras que podem ou não interagir com futuros acontecimentos.
Foi este o caso. A principio o Pedro desconfiou, aquela súbita leveza e abnegação, mesmo quando lhe batia e violava, ele que tirava prazer do facto dela sofrer via com surpresa a cara sem expressão da mulher, quase um sorriso, um alheamento insuportável para ele. Mas o ciúme não o deixou dormir, uma dúvida de dentro, uma vontade de saber o que desconfiava e quase tinha a certeza, ele que conheceu tantas mulheres, algumas de outros. Seguiu-a num sábado depois de sair com um grupo de amigos e ter avisado que não vinha jantar. Nesse dia também o filho levou um beijo, não chegou a perceber porquê. Deixou os amigos por volta da hora do jantar, rondou a casa e viu-a partir, leve, ligeiramente apressada, quase saltitante…Apanhou-os, mas não teve coragem de aparecer, o outro era homem de trabalho, com o corpo treinado no desconforto da vida, seco, músculos fortes nas pernas e nos braços, sem serem grandes ou aberrantes intimidaram-no, a ele que tinha muita coragem quando estava bêbado ou acompanhado. Saiu humilhado daquela janela, daquele pequeno monte de uns amigos da Inês, do qual lhe haviam deixado a chave, “Para ver se está tudo bem, nunca se sabe!”. Chegou tarde a casa, depois de ter corrido todos os bares da região. Esteve com mulheres mas não conseguiu ir com nenhuma.
Inês ficou muito mal tratada, chegou a ir ao hospital onde ficou um dia antes de regressar a casa com um braço ao peito e um sem número de negras e vermelhões.
Não saiu durante um mês. Foi lá que soube de tudo o que havia para saber. A obra tinha acabado e aquele moço simpático que estava em casa da Dona Lúcilia tinha partido, o marido morreu uma semana depois, vítima de um acidente automóvel, o carro em que seguia capotou numa ribanceira e pegou fogo deixando irreconhecível o corpo do seu ocupante. Não foi ao funeral para ver os dentes que o identificaram…Deixou-se estar gozando do sossego, da paz e da saudade daquele homem. Centrou-se no filho, tinha finalmente hipótese de corrigir alguns erros…Desta vez não queria falhar…Que pena ele ter-se ido embora…Sem um beijo que fosse…
O nosso homem despediu-se dos comerciantes, aceitou farto farnel e partiu para sul, todo ele horizonte…Por fora…Por dentro a raiva e a determinação do que tinha para fazer. Esperou uma semana antes de agir. Dormiu em valados e terrenos ocultos, o farnel tinha que durar cinco dias pelo menos. Matou-o no parque de estacionamento de um bar. Tudo o resto veio dos anos de prisão, aprende-se muito, aprende-se também a ter paciência e alguns truques de honrosa marginalidade. Não se virou para trás quando deixou o carro a arder…Ainda ouviu a sirene dos bombeiros…
Inês recebeu a carta passados seis meses. Sem remetente exterior lá dentro dizia tudo…”Sou eu, amo-te…Espero que sejas muito feliz! Levo de ti um pouco do teu cheiro…O que um caminheiro pode levar…”.
Meteu a carta no correio no dia em que embarcou numa traineira em direcção à Mauritânia.

FIM!

2006-11-17

Caminheiro (A paixão)

Enquanto fazia massa trocaram olhares furtivos. Sentia-se curioso e atraído. Baixa, talvez não chegasse ao metro e sessenta, magra, cabelo castanho escuro, roçando o preto, solto e liso tocando-lhe nos ombros. As calças eram de ganga e ajustavam-lhe as formas, a T-shirt de número certo dizia qualquer coisa. As feições, meio menina, meio mulher, eram incertas. Ao longe e enquanto passava iam cambiando, alternando entre angustias e esperanças. Não teve tempo para ver mais, o trabalho tinha de ser feito e já alguém pedia tijolo. Ele e outro davam serventia a três pedreiros que erguiam paredes num primeiro andar. A meio da manhã pararam para uma cerveja e uma bucha, por volta da uma estavam a almoçar. Todos comiam na obra e quando ele disse que ia a casa não o deixaram abalar obrigando-o a sentar-se e a comer com eles. O mais velho sabia cozinhar e o pequeno estaleiro tinha fogão a gás, rudimentar mas eficaz. Nenhum deles era da terra, três das redondezas, ele e o outro servente de longe. O seu parceiro era novo e entroncado, alto e louro, eslavo por excelência, russo de passaporte tinha vindo de Estalinegrado, também lá tinha nascido. Dos outros três, dois rondavam os cinquenta e um parecia não ter idade, talvez tivesse parado por volta dos quarenta mas não era um número certo nem de confiança. Despegaram às seis, o encarregado veio buscar três com a carrinha, o russo dormia no estaleiro e ele em casa dos comerciantes.
Durante a primeira semana pouco mais fez do que dormir e trabalhar, mesmo quando chegava a casa e antes de jantar, ocupava-se a restaurar uma velha vedação de madeira que cercava o quintal. O banho depois da refeição era o acto final, a cama o descanso e a janela de céu negro e estrelado uma bênção, uma carícia. Antes de dormir deixava os olhos nas traves de madeira que escondiam aranhiços na penumbra.
Durante a segunda semana saiu duas vezes, à noite, com o russo e por convite deste. Fizeram a pé cinco quilómetros antes de encontrar um bar onde uma brasileira e três portuguesas faziam o que podiam para que um grupo de velhos agricultores mais abastados gastasse o seu dinheiro. O russo pagou e pelo que percebeu da segunda vez, havia qualquer coisa entre ele e a brasileira, mulata clara, jovem bonita de sorriso branco e aberto.
Pelo meio ficara-lhe a memória daquela mulher com o filho, memória revisitada todos os dias visto que o par atravessava regularmente aquela praceta. Um dia perdeu a vergonha e perguntou à Dona Lúcilia quem era aquela senhora que tanto passeava pelas ruas da aldeia. Menina fina, fora estudar para Lisboa mas nunca acabou nada, filha de um ricalhaço da terra, casou-se com um oportunista que lhe batia e a enganava nos negócios estourando-lhe o dinheiro que os pais lhes davam. Quem o queria ver à noite teria de procurar nas lanternas vermelhas da região. Sentiu pena daquela mulher, seria só pena? Talvez uma cumplicidade de sofrimento…Ou apenas ternura, paixão, calor… Num fim-de-semana de festa na aldeia arranjou maneira de se aproximar. A coragem não foi suficiente para meter conversa, mas os olhares que trocou com ela foram reveladores de um interesse muito maior que a simples atracção física. Ela percebeu isso e ficou perturbada mas de maneira nenhuma mostrou desagrado pelo facto, antes pelo contrário. Encontrava-se com outras mulheres, só a mais velha do grupo sentiu a inquietação na cabeça da amiga. Não seria hoje o dia indicado, talvez no café quando ela fosse à mercearia à tardinha.
Terça feira, seis e vinte, não trabalhou na cerca que só faltava pintar. Estava sentado no café e lia o jornal com uma cerveja na frente. Ela entrou como se esperasse encontrá-lo e sorriu quando o viu, “Boa tarde! Viu a dona Lúcilia?”, “Deve estar quase a vir, se quiser eu vou chamá-la…”, “Não é preciso…Eu espero…”. Esta espera que levou à conversa aberta, à apresentação formal, a um convite fora de horas…lá em casa…Paixão sem limite de carências contidas, desabafos, o retornar infindável dos corpos unidos pela ternura e pelo desejo.
(Só falta um...)

2006-11-13

Caminheiro (Decisões)

Sete e meia, talvez um pouco mais, um ou dois minutos. A indicação é fornecida por dois ponteiros num relógio de propaganda. A voz é amável, um pouco rouca, “Boa tarde!”, “Boa tarde!”, não sabe o que pedir, espera um pouco, o homem de avental espera também, “Vai beber alguma coisa?”, “…Sim…Uma cerveja.”. Não escolheu a marca, nem o outro o quis incomodar. Por detrás do balcão, como num passo de magia, aparece uma garrafa gelada, de caminho pega num copo. Faz a entrega e deixa o caminheiro em paz. Fez estes últimos quilómetros numa ânsia conhecida, paro, não paro, fico, não fico, distraiu-se com os pássaros, com o céu azul paraíso, azul imenso, sem fim, vai ser difícil decidir…Bebe a cerveja e ainda não sabe o que fazer. Junto à porta o dono do estabelecimento aprecia o entardecer. Na mercearia a mulher atende duas vizinhas. A mais nova observou com atenção aquele estranho. Ele apercebeu-se e sorriu sem direcção. Ela corou, acabou bruscamente a conversa, pagou e abalou apressada num aceno de urgência. Antes de sair olhou-o mais uma vez. Desta vez ele fingiu que não viu. Lembrou-se da mulher que amou, do filho que teria vinte anos se fosse vivo, mortes trágicas. Estava preso ia para cinco anos quando o padre o mandou chamar e lhe deu a notícia. Acidente brutal, corpos desfeitos, a fotografia veio no jornal, bombeiros, polícia. O jornalista falava de excessos, de velocidade, de álcool, “Segundo testemunhas a viatura em que seguiam as quatro vítimas mortais deu várias cambalhotas antes de se imobilizar e pegar fogo…”. Tinha-o deixado logo no primeiro ano de cativeiro…Desde ai nunca mais os viu…A sua família…
Quase oito, “Que fome…”. Pediu uma sopa, pediu carne e pão, meteu conversa e perguntou por trabalho, um quarto barato onde ficar um mês. Teve sorte com a comida e com o quarto, quanto a trabalho amanhã logo se veria. O casal, embora pouco falador, era simpático e deixava espaço para respirar, não o atropelou com questões profundas libertando-o numas águas furtadas por cima do café. O local tinha sido arranjado para poder ser alugado. Era asseado, simples, cama, mesa de cabeceira, cadeira, armário, um espelho de meio corpo. Pediu que o acordassem cedo, “A gente levanta-se às seis…”, “Pode ser…Obrigado e boa noite”, “Boa noite, durma bem!”, o desejo foi da mulher que o olhou com ternura, uma ternura materna de quem vê um filho cansado. Talvez a fizesse recordar algo.
Dormiu mal, não por culpa do quarto, mas por culpa da cabeça. Falaram-lhe numas obras da câmara, imaginou-se a rebocar, a fazer massa…Só um mês…Só para descansar.
O sol ainda não se via quando a mulher lhe bateu à porta, “Vou fazer o pequeno almoço, se quiser pode comer connosco, tem é de se despachar.”. Para ele a manhã era a melhor parte do dia, aquela em que se sentia melhor, com mais energia, recebia a luz matinal como uma bênção, aliviado da escuridão que o oprimia. Tomou um banho numa casa de banho que ficava no quintal, nas traseiras do edifício. Sentou-se à mesa depois de convidado, esperou que lhe oferecessem uma caneca de café com leite e duas torradas com manteiga caseira, comeram em silêncio. No fim da refeição o homem prontificou-se a levá-lo ao estaleiro. Ele agradeceu e aceitou o convite. A aldeia era pequena, casas brancas e térreas de ambos os lados da estrada principal ao longo de três quilómetros. Uma rua secundária, paralela, desembocava numa praceta onde iria ficar situado o posto da GNR, eram essas as obras. A apresentação foi breve, o capataz era amigo do comerciante e o contracto foi logo celebrado, “Começa hoje, amanhã tratamos dos papéis.”, Aceitou, agradava-lhe trabalhar, suar, parar de pensar. O trabalho não era muito pesado, o ritmo lento não cansava quem estivesse calejado de outros andamentos, talvez por esse motivo não parou de pensar. Recordou a imagem esguia daquela mulher de meia idade que tanto o tinha observado, coincidência ou não ali estava ela passando devagar, do outro lado da rua, com uma criança pela mão.
(cont)

2006-11-07

Caminheiro (A chegada)

As solas batem no cascalho, pequenas pedras que se enterram e empurram, cadência arranhada marcando o andamento. Na orla da seara a silhueta azul do caminhante é um risco harmonioso na imensidão aloirada. Desloca-se lentamente mas com convicção, movimentos decididos dão beleza a este andar. Começou às nove da manhã, como todos os outros dias. Pára por volta do meio-dia, para estudar o terreno e procurar uma sombra. Um sobreiro desnudado convida-o a sentar-se, tem no seu tronco um número pintado, sinal feito por quem o despiu. Ele aceita o convite, pousa a mochila de pano grosso, tem cor de tropa e está atafulhada de coisas, apanha um pouco de pasto e improvisa um assento. Deixa-se levar pela brisa quente do estio e quase que adormece, um ligeiro piscar que teima em ser pausa. De dentro da mochila tira um saco de supermercado, velho amarrotado, letras gastas anunciando uma superfície comercial. No saco um pano enrola duas fatias grandes de pão. Tira uma, corta-a ao meio e guarda o resto com cuidado. Ainda tem um pouco de toucinho, mas também este é dividido pela mesma navalha que cortou o pão. A sua amiga, única companheira de muitas refeições, mas não só. É habilidoso com ela e consegue milagres na madeira, verdadeiros prodígios em miniatura. Homem de mil profissões também passou por carpintarias, embora excelente na arte nunca a considerou como tal. Tem um cantil com meio litro de vinho, presente do taberneiro na última aldeia por onde passou. O trabalho na mesa da cozinha ficou bom e além do vinho e de uma farta refeição ainda ficou com algum dinheiro. Trabalha por onde passa, é assim há cinco anos, desde que…O dia está óptimo e convida a uma sesta, rende-se sem esforço, o trigo esfrega um no outro e embala o seu corpo, a sua cabeça, os seus olhos e por dentro.
Não usa relógio mas nunca adormece mais que duas horas. Desperta com calma, exercita as pálpebras e controla a quantidade de luz na íris, primeiro numa, depois na outra. De uma garrafa de plástico com água retira-lhe dois golos, o último mais demorado. Levanta-se e sacode-se das palhas que lhe serviram de enxerga. Novamente de mochila às costas decide-se por um caminho, um que o leva para o sul. Lembra-se de um comentador de televisão ter afirmado que a maior pobreza se encontrava no hemisfério sul e que o fluxo migratório dos seres humanos teria tendência para ser na direcção oposta. Também se lembra do que comeu, nesse café onde ouviu a notícia. Café familiar, acolhedor, sandes de pão caseiro com presunto, dois copos de vinho e um café. Ainda teve uma longa conversa com os donos antes de partir, chegaram a oferecer-lhe emprego, nada de especial, mas uma coisa limpa e honrada numa loja de ferragens de uns primos.
Vai para três horas de caminho. Há cerca de quinze minutos encontrou uma estrada asfaltada e segue pela sua berma. Pararam duas vezes para lhe oferecer boleia, à segunda aceitou. Chegaram a uma pequena povoação e ele apeou-se agradecendo a gentileza aquele homem do campo que o transportou na carrinha. Abeira-se do único estabelecimento aberto, café, mercearia, mini mercado, tudo junto. Lá dentro a separação é feita por pequenos arcos em alvenaria. Escolheu uma mesa para duas pessoas e sentou-se. Por detrás do balcão está um homem já bem entrado. Pouco cabelo, branco e curto, barriga saliente por debaixo do avental de plástico. Limpa uns copos, tarefa que o ocupa por breves instantes, só depois se dirige ao cliente.
(cont.)

2006-11-02

Dois dias de luta

Passaram vinte dias desde a reunião. As decisões foram tomadas, votadas, testemunhadas em acta assinada. O trabalho, as visitas à fábrica, os serviços mínimos, tudo necessita de discussão. A estratégia é definida com antecedência, os objectivos, onde se pode ceder, o que se pode aceitar. São dois dias de greve, dois dias em que deixamos de ser colegas, no grevista o contracto de trabalho é suspenso, deixa de haver hierarquia, quem manda é o piquete de greve. A greve começou às zero horas do dia dois de Novembro. Quinze e trinta, chove que nem cornos….Foda-se!...Vai entrar às dezasseis, turno da tarde. Na portaria um pequeno grupo discute, trocam-se papeis e opiniões, a fábrica I não parou, a fábrica dois “foi ao chão”, o ponto da situação, não há produto para Aveiras…O Porto parou? Cá em baixo ninguém diz nada.
“Como é que faço? Preciso de picar cartão?”, “Não! Não picas nada. Chegas lá abaixo e avisas a tua chefia.”
Para ele a pergunta é diferente, o costume…Continua a chover, está molhado dos joelhos para baixo, foca-se nas botas molhadas enquanto percorre a alameda encharcada. “Hoje não vou discutir, argumentar, não! Hoje vou entrar, dizer o que tenho a dizer e vir-me embora.”. A água é muita, o céu, escuro de um lado e branco do outro, distribui trovoadas, é impossível ser-lhe indiferente.
Hoje não há beijos nem abraços, apenas apertos de mão, formais, indiferentes. No sector são trinta, na greve ele e mais três…Só amanhã terá a certeza. Comprou o jornal, leu-o no hospital, não viu nada…Bem…Não o leu todo…Seria preciso?...
Não lhe interessa…A greve são dois dias, desta vez só precisa fazer greve, não precisa fazer mais nada…Mas não se sente satisfeito…Continua a chover…
Já saiu, até segunda, “Se precisarem de mim sabem o meu número”, não! Desta vez não estou disponível para horas extras.
Fala-se em oitocentos milhões de euros a serem distribuídos pelos accionistas, dinheiro não contabilizado em lucros nos anos anteriores…Fala-se em investimentos não garantidos, no futuro incerto depois da privatização, fala-se…Nos direitos! Nos deveres!
A estrada adivinha-se por debaixo do manto de água, o tracejado que divide as faixas serve de guia, as bermas não existem, sente o carro deslizar…Hoje não vou ligar a televisão, não preciso das notícias do mundo, hoje preciso descansar…

2006-10-27

Sala de espera

Sala de espera do posto médico, de um posto médico. Está quase vazia, apenas eu e mais duas pessoas, duas senhoras que conversam, de doenças, dos filhos, dos divórcios dos filhos, dos netos, da vida difícil que está destinada aos novos, sim porque para elas o que têm basta e a morte não está longe.
A filha divorciou-se, ela que estava tão bem, só porque o marido bebia um copinho de vinho. Tinha uma vida de rainha, levantava-se tarde e ia para o café o dia todo, “E não faltava nada naquela casa, levava-me a passear e ficávamos em hotéis caros e comíamos em restaurantes finos, nunca teve problemas de dinheiro…Foi uma pena…A separação…Os meus queridos netos.”. Agora vive mal, teve gémeos da segunda relação e o dinheiro anda contado, “Se a sua filha se divorciou lá tinha as suas razões. Não há mulher nenhuma que tome essa decisão sem ter razões fortes…Só quem lá está é que sabe o que se passa.”. Esta sentença, proferida pela outra mulher, deixou um silêncio com significado.
Entretanto chega mais gente, fala-se de cães, de doenças de cães, de hospitais para cães, de médicos para cães…”O meu até chora! É como um filho. Quando ele desaparecer nem sei como será.”.
Dos cães para as vizinhas, para as traições das ditas, para as relações atribuladas entre mulheres desocupadas, “Deus é que sabe e nunca dorme.”.
Eu também não durmo, estou sentado à espera, preciso de uma credencial. Sinto o tempo a passar mesmo sem ter relógio, não preciso dele para o sentir, ao tempo. Pelo estômago sei da hora de almoço. A conversa decorre agora no guichet. Sabes o que aconteceu à Laurinha? Partiu uma perna! Com aquela idade é um problema. Se é!
Lá fora, o céu ferido no seu plástico cinzento, deixa escorrer insolente as águas certas de Outono. Há seis anos atrás também choveu assim.
Ouço o meu nome, é a minha vez? Sim pode entrar!

2006-10-22

Apenas porque sou teimoso...E porque não arrogante?

Máquina profeta, Messias mecânico, o encanto das peças em movimento.
Gira, gira, roda, roda.
O engenho que se revira em voltas elevatórias revela automatismos.
Robóticos gestos cima, baixo, cima, baixo, esquerda, direita, esquerda direita.
Hipnóticas mãos, malabarista eléctrico, dos electrões que lhe servem de corrente.
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz…………….

O cartão permite o acesso, concreto, directo.
De dentro, no seu núcleo o cartão é inútil.
O electrónico que decida da minha entrada, se eu pertenço ou não.
Lá dentro sou eu e a máquina…Ela que gira, ela que roda, para cima, para baixo, esquerda, direita.
A reacção, a fusão das moléculas, os gráficos, os números que nos obrigam a pensar,
Que nunca são claros até os sentirmos por instinto…Cento e cinquenta! Dentro!...Cento e cinquenta e um! Fora! Assim num repente…Toma e já está!

Na região periférica não conhecemos, não nos conhecemos…
Quem sou eu?...Quem és tu?....
Estatística humanóide, estereotipo orgânico, célula dispersa?...
Ramificação errante qual o teu delírio?
No húmus, no estrume, procuro a verdade.
Sou tenso no músculos, mergulho na merda.
Se matei alguém?...Não sei!

Sim , eu sei a tecla do mistério,
Desdobramentos, dezassete polegadas…Ou serão mais?
Cavalgo sem me verem,
Sou sem ser,
A electrónica do meu dedo dispara setas mortíferas.
Eu mato no ecrã!
Se não gosto, odeio….Mas não digo a ninguém….

Já me viram delirar?

Aqui estou eu! Eis a minha carta, a minha mensagem, a minha angústia via mail…
Finge que não me abriste…Não me leste…eu finjo que gostas…e choro….

2006-10-20

Hoje um poema


É chegada a vez de um poema, desacerto, lamento, confissão, vulgar desabafo, encontro no espaço…se ainda estiver livre…
A alma rende-se de novo ao improviso, à divagação. O ser narrativo que sou perde-se no deserto metafórico. Onde está o significado da palavra? Da palavra que me sai, balbucio, resmungo, assobio, grito, degluto…Todo eu sou ouvidos para essas palavras escritas em papel digital, virtual, como nos sonhos.
Todo eu tenso, músculos, cérebro, concentração na leitura, na viagem, nas descrições.
Que dizer dos adjectivos com que vestiram os substantivos?
Os substantivos que sou eu e tu…E todas as coisas…E tantas são elas!
Hoje um poema, daqueles que não rimam, que não concordam no tom, que desafinam no som.
Hoje aquelas palavras que me fazem sentir importante, que me fazem sofrer.
Diz-se da poesia o mesmo que se diz de Deus…Está em toda a parte, é omnipresente. Alguém mal disposto chamar-lhe-ia “Melga!”.
Quem a lê, lê quando lhe apetece, quem a faz segue outros procedimentos. A poesia é feita por loucos, mistura de sons e conceitos.
Chegou a vez de um poema…Eu acredito que sim. Um que conte o infortúnio lusitano, que nos prometa o futuro, nem que seja em castelhano…
…Existem sondagens…
Poderia ser um poema rebelde, sem origem nem destino, Easy Rider…
Letras formando palavras, correndo livres, montadas numa caneta transformada.
Alterei-lhe a capacidade do deposito de tinta, modifiquei-lhe o aparo de modo a diminuir o atrito, prolonguei-lhe o tamanho e dei-lhe cores matizadas, metalizadas, modernas…Isso existe?...Sei lá!
Tenho tudo o que preciso, sou louco, não controlo o que escrevo e deixo-me levar pela mão.

O poema acabou…Acabei de o escrever…O lamento, a confissão, tudo foi dito.
Hoje foi assim!
Amanhã?...


P.S. Um bom fim de semana, um texto e um céu alentejano.

(foto: no quintal...)

2006-10-19

SE SAIR PARA A RUA NÃO BEBA!

José, Maria e Joel vivem num apartamento no centro da cidade. Hoje, ao final do dia e depois do jantar, cada um ocupa o tempo a seu belo prazer. José é casado com Maria e tem cinquenta e quatro anos. Maria tem cinquenta e é mãe de Joel que tem vinte e quatro e ainda vive com os pais. São vinte e duas horas, dez da noite, Maria está sentada no sofá e vê televisão. Tomou dois calmantes, vício que mantém desde que lhe morreu o pai, as pálpebras tombam-lhe reduzindo-lhe a visão. José ficou na cozinha lendo o jornal e bebendo um digestivo. A refeição levou-o a beber uma garrafa de vinho, porque foi ele que a preparou, porque estava mesmo muito boa e porque lhe apeteceu. Aprendeu a receita com a mulher e é das que lhe sai melhor.
Joel hoje não sai. Acabou o curso há um ano e está desempregado. Tem poucos vícios, um deles é o haxe. No quarto, de janela aberta, fuma “um” enquanto o som da aparelhagem passa Red Hot, um dos primeiros álbuns…E porque não o nome da música…”True Men Don’t Kill Coyotes”.
José fecha o jornal e decide ir até à sala. Senta-se ao pé da mulher, rotina que nunca abandonou. Na televisão uma telenovela de um qualquer canal, um homem dirige-se a um pequeno bar de sala e enche um copo com uma substância ambígua cor de tisana. A personagem masculina fala com uma mulher que decide também encher um copo. Ambos bebem da idêntica mistela. José pensa! Estão sempre a beber…Tanto que eles bebem…E dá-lhe sede…Levanta-se e vai encher um copo…Pelo menos isto eu sei o que é. Noutra sala, noutra cena, vários personagens numa festa, bebem! Raio de telenovela…
Maria está quase a dormir mas permanece atenta ao som, às vozes que saem da televisão, às vidas fingidas que lhe trazem as emoções que a sua não tem. Percebe a angustia da separação que decorre no ecrã e torce por ela, pela liberdade que ela está prestes a adquirir. Apercebe-se da tensão dramática quase sem ver.
Joel acabou de fumar e continua a ouvir música, Primus, “Frizzle Fry”. Está sentado defronte a uma consola de jogos e manobra uma personagem especialmente agressiva, mistura em partes iguais de detective e carrasco. O jogo corre-lhe bem e o animal percorre as salas de um prédio abatendo tudo o que lhe aparece à frente, sai por uma vitrina fazendo voar mil estilhaços e entra num carro fugindo a alta velocidade.
Após quatro digestivos José sente-se confortável e olha para Maria que está de olhos fechados, percebe pela respiração que ela ainda não está a dormir.
O assassino continua a matar no vídeo game.
A nova lei impede a circulação na via pública aos indivíduos que tenham consumido substâncias susceptíveis de provocar alterações do comportamento.
Ainda pensou em comprar uma pequena quinta no campo…Mas não tinha dinheiro e ainda lhe faltam muitos anos de trabalho.
A explosão é repentina, ficou-se mais tarde a saber que foi provocada por uma fuga de gás. Apenas o Joel sobreviveu. O seguro recusou-se a pagar devido a uma cláusula que impedia o consumo de substâncias capazes de provocar incapacidade de manutenção do bem segurado….Na carta de resposta vinha a lista dessas substâncias…


P.S. É tão fácil perder direitos numa democracia…Basta que os argumentos venham revestidos das melhores intenções…Com os melhores pretextos vamos cedendo…estamos numa de aborto…E do preço da electricidade…E…Um abraço…

2006-10-15

Fátima... E as pessoas


Não foi a fé que me moveu mas sim a amizade. A amizade por alguém que nos acompanhou a Cuba com uma gravidez de sete meses. Correu tubo bem e eu desconheci a promessa até que há dois meses me foi revelada. "Paulo! A Lénia prometeu, mas queria que fossemos todos.", todos significava os que tinham estado em Cuba, em Outubro do ano passado...Entre furacões.
Eramos sete...Fomos oito...Entretanto a Rita nasceu. Óptimo fim de semana, entre peregrinos e pessoal em descanso. Revi Fátima, Batalha, Alcobaça, Nazaré e Caldas da Rainha, pelo meio ficaram um sem número de pequenas terras que o nosso povo teima em habitar.
Tirei algumas fotos e reparei que em Fátima só as pessoas tinham sido o alvo da minha objectiva. A esses modelos anónimos e involuntários eu agradeço e peço desculpa pela ousadia.


A todos voçês uma boa semana...E o meu olhar sobre as pessoas, em Fátima.

P.S. A última fotografia está cá porque eu não resisti...

2006-10-12

O Castelo


Estranha pedra preciosa,
Nasces para brilhar,
A sede fez-te vir para lugares escuros,
Lugares onde a luz é regateada,
Vendida no mercado negro das trevas

Vésperas de sábado. O dia promete ser brando, não mostra o sol mas não esconde a luz. Nas ruas o movimento é calmo, fluxo preguiçoso e disperso.
Aproxima-se da janela, deixa-se estar, protegido pelas cortinas que permitem a passagem difusa da rotina lá fora. Ao de leve, com dois dedos, afasta-a o suficiente para mostrar um dos olhos, o esquerdo. É essa visão nítida que o convida a sair. Convencido o espírito o corpo obedece, lava-se, alimenta-se, apruma-se e sai. Leva consigo o espírito que decidiu.

O terreno está livre.
Espera pelo ardor da batalha.
Não se vêem exércitos…
Apenas o silêncio.

O Outono deixou a sua marca, a brisa marítima que atravessa a planície e chega à serra vem saturada, água que se prende ao rosto, à roupa, mas que a temperatura não deixa ser desagradável. Caminha pelo empedrado que preenche a parte velha da cidade. Sobe a rua do Algarve, atravessa o Largo Alexandre Herculano e vira à esquerda pela estrada que circunda o castelo num trajecto de três quartos de lua…Três quartos de paisagem que quase chegam a Tróia…

No castelo moram os meus familiares.
Mortos de outras batalhas,
Feridos de outras guerras.
Jazem, juntos, aos pares.

Vai parando entre campas, entre muros, entre saudades eternas. No recatado sossego destas pedras centenárias apenas aquela mulher de preto desconvoca o silêncio, agrada-lhe ouvir-se gemer. Já a conhece, trocam olhares cúmplices de desgosto, hoje não haverá conversa. Junto à lápide conversa com a mãe, conta-lhe da semana e da nova namorada que ela havia de gostar de conhecer. Dá um beijo ao pai e outro ao irmão mais velho. Do que foi a tragédia lembra o acaso que o deixou vivo. Uma lágrima para a tristeza, outra para a saudade e outra pela felicidade de ter sobrevivido.

Caminho ao largo,
e o som vem dos bosques,
e a erva grisalha do Verão,
manchada de sangue amargo,
relembra-me as vozes na rádio,
a notícia fresca de morte,
algo que não pode ser pago.

Que belo dia…Feriado…Vou telefonar à minha Joana!


P.S. A história não é verdadeira, mas o castelo é…E tem lá dentro o cemitério com as gentes da terra. (Santiago do Cacém)

2006-10-07

Romançe Poético

Primeiro o Espaço

Do tamanho das estações a chuva chega,
Amarela-se o ar que nos envolve.
Ocre melancolia.

Na manhã que não dormia tudo é húmido.
A cidade transpira,
Condensa nos seus poros as vidas que nela respiram.

Ruas atrás de ruas.
No meio das rectas os pontos de referência,
As margens dos caminhos,
As direcções memorizadas.

O largo abre-se em recantos familiares.
No café a manhã é deserta,
Como quem faz o pequeno-almoço a um filho.
Ontem o filho não dormiu em casa.
O pai que o espera não é seu pai…
E não sabem…A mãe sabe mas não diz.



Depois as pessoas

As cãs marcam-lhe a idade.
O corpo que foi ágil desiste nos embates confortáveis.
A mulher não é a mesma,
Nunca foi a mesma.
Já não o procura,
Mas também não procura os outros…
…Os cheiros que ela trazia…

Tudo por amor,
Um destino sem dor,
Pelo calor nos lençóis…
…Não dorme sozinho…

Feita de traços perfeitos,
Legou-os no ventre ao seu filho.
Mãe adolescente, mãe carente,
Mãe de sonhos desfeitos.

Filho de mãe conhecida,
Conheceu no pai aquele homem.
Ó mãe porquê?...Tantos homens…
Ó pai porquê?...Tu és mãe…



Interlúdio sentimental

Aquele que lhe chamava pai já não existe.
Rendeu-se à distância, à vergonha.
Sim…Sou eu o pai,
Mas ele não quer que se saiba.



Por fim os factos

O assalto correu mal.
Duas balas prostraram-no no chão.
A ambulância demorou uma hora,
O médico legista, três.

O telefone tocava,
Os sedantes, amorteciam.
A voz do outro lado espera.
A mulher dormente não ouve.

Foi o homem que saiu a correr…
…Veio da cozinha…
Foi o homem que levantou o auscultador…
…Tremendo-lhe o gesto…
Foi ele que primeiro chorou,
Para dentro,
De dentro,
Sem sair.

Saíram atrasando os movimentos,
Num vagar de quem não quer…chegar…
Não havia urgência,
Nem urgência teria de haver.
Quem vai identificar um corpo,
Tão depressa não vai esquecer.

Na corrente sanguínea,
Morre o sedativo,
E a mulher que não sentia, sentiu,
E sofreu,
Pelo filho a quem escondeu…O pai!



Conclusão

Foi a morte,
O desgosto,
A sorte,
O destino,
A sensação de solidão,
O acaso genético,
O impulso eléctrico
O dedo feminino de Deus,
O que a fez finalmente,
Amar aquele homem?
Homem que sem ser pai se fez Pai,
De um filho que fez Filho,
E que chorou como se fosse dele.



P.S. Um Poema urbano...De amor! Bom fim de semana e até daqui a uma pausa...

2006-10-05

Anónimo

(sem nome)

Se atado a uma cadeira,
Alucinando num quarto
Me alugo e me vendo,
A culpa de que me acuse,
A qual sempre julguei minha
Não é mais do que a ressaca,
A secura da manhã
O mau estar constante de quem nunca descansa….

Se amordaçado a um qualquer deus
Nunca me ouviste gritar,
Se vendido te denuncio,
É do pesadelo que falo,
Do inferno e do fogo.

Se privado da palavra
Me fechei em grades,
Se danado com falsas verdades
Matei e não chorei,
Então tudo valeu a pena….

2006-10-01

Noites


Leves os rosas nas maçãs do rosto, o adivinhar do sangue por debaixo da pele branca, o toque trémulo dos dedos sentindo o relevo. Os efeitos da luz matinal projectam-se na parede desafiando as cortinas, brincando com elas…Os corpos ainda se encontram juntos, membros baralhados, dispersos nas sombras. Dormem, adivinha-se o respirar, breves sopros de vida…

Conheceram-se ontem. Souberam o nome para se poderem chamar, confirmaram as músicas que estavam a ouvir e falaram. Confessaram tudo o que o álcool quis e dançaram. Nunca a pista e a multidão os conseguiu separar. Agarrando-se com os olhos largaram-se na frenética corrente misturando suores e contactos.

Ela foi com três amigas. Não levou carro. Tinham jantado num restaurante Italiano, daqueles com bandeiras e alusões despropositadas. Beberam vinho tinto e disseram mal de toda a gente…Bem, não disseram só mal, também fizeram alguns julgamentos. Ela não leva aquela regateirice muito a sério, é só para descomprimir. Ainda foram a um bar, foi ai que se libertou…

Todas as semanas espera por estes dois dias, melhor dizendo, duas noites. São cinco dias a trabalhar e dois para rebentar. Já não é muito novo, por isso adquiriu algumas rotinas de conservação. Só o Daniel sabe desse facto, amigo desde sempre para ele não há segredos. Vai com quem calha, já não são muitos os resistentes….Nem sempre leva carro. Hoje levou, arranjaram-lhe algo branco não precisa beber…Talvez…

De manhã nenhuma memória que leve ao afecto os mantém abraçados, apenas o acaso dos corpos procurando conforto, calor. Nenhum sinal de preservativo, confiança total no acaso.

É ela quem acorda primeiro, estranha o contacto, estranha a boca seca, a garganta colada, mas não se mexe. O corpo cansado recusa movimentos, o relaxamento é total, menos a cabeça. Espera um bocado, não sabe quanto, até a bexiga a obrigar a levantar-se. Não está em casa…É a casa da Luísa. Onde estará a Luísa? Tropeça nas roupas espalhadas pelo chão, entra na casa de banho, senta-se na sanita e fecha os olhos…Sente-se adormecer.

Ele também já está acordado e olha aliviado para um soutien. Leva a mão ao sexo fazendo-a descer lentamente até aos testículos, acto reflexo, como se o mundo todo estivesse ali e agarrá-lo o segurasse eternamente…”Esqueci-me!”


Nunca se tinha preocupado com questões de segurança até ao dia em que acordou com um homem. Desde então, em dias de maior desatino, a primeira coisa que faz ao acordar é confirmar a companhia. Começou a usar preservativo para proteger as amantes. Em relação a ele preferiu não saber, cruz que carrega com dificuldade. Faltou-lhe a coragem para ir fazer o teste, chegou a estar à porta do Hospital mas não entrou.

Ela nunca percebeu porque fugiu aquele homem. Saiu da casa de banho ainda a tempo de ver a porta fechar-se…Não teve reacção…”Será que não aprendo…”.
À noite telefonou à mãe. Não lhe contou nada sobre o assunto mas foi como se tivesse sido purificada…Efeito materno da origem.
Foi deitar-se mais descansada prometendo a si própria que iria ao médico.


P.S. A hora tardia faz-me mal e leva-me por essas noites…

2006-09-29

Gaivotas


Podia dizer que foi inspiração ou qualquer outra fonte de energia, mas estaria a mentir. Foi apenas mais um dia. Levantei-me cedo e fui ver o mar...Sabia que ia estar fechado nas próximas doze horas e decidi aproveitar. Porto Covo está deserto, voltou à pacatez dos seus trezentos e poucos habitantes. Estacionei o carro junto ao tratamento de águas e percorri a pé o restante caminho até á falésia, até ao mar. Bem perto de mim, nas saliências rochosas, as gaivotas espreitam os pescadores. Observam como se não fosse nada com elas...E eu também.
Lembrei-me da máquina que trazia na mochila...Desci, o suficiente para ficar no mesmo plano, olhos nos olhos e fotografei-as...


Uma vez...


E outra...

E ainda outra...


Antes de abalar despedi-me do mar e agradeci ao sol a sua breve aparição.

Foi assim a minha manhã...Do resto não conto, apenas que são quase duas horas e que tenho de me ir deitar...

2006-09-25

Sobro e Azinho



Á beira da estrada três montes lenha. Uma placa tosca com letras pintadas e uma seta leva-nos a percorrer um pequeno caminho de terra que nos retira do asfalto. Uma vedação, um portão aberto e logo a seguir um toldo de plástico onde repousa um velho tractor. Ao seu lado um homem bem entrado nos cinquenta, marcas do trabalho do campo na cara e nas mãos, previsivelmente também no corpo se o mostrasse. Sentado numa cadeira, que me lembra as que existiam nos cafés quando eu era pequeno, entretém-se com uma navalha e um pau. Separa-nos uma mesa de madeira forrada com um plástico transparente, reaproveitado de outros embrulhos. Um lápis, um bloco improvisado e pedaços de madeira, simulam destroços de uma tempestade, emprestando-lhe um ar desarrumado que não destoa.

Todos os anos compro lenha, uma tonelada, meia de sobro e meia de azinho, para o recuperador lá de casa e para os meus sogros. Não tenho especial fascínio pelo fogo mas agrada-me bastante observar o lume manso na lareira durante o Inverno. Os olhos abandonam o corpo e perdem-se na brasa e aquecem-se, aquecendo com eles todo o corpo. Não consigo explicar...É muito bom…

O azinho é melhor, tem uma combustão lenta e produz mais calor que o sobro, também é mais caro. São coisas que se fazem com antecedência, antes das chuvas e do tempo húmido. A madeira molhada pesa mais e custa a pegar fogo.

“Bom dia!”, o homem desvia o olhar das mãos e debruça-o em mim, retribui o cumprimento. O negócio é rápido mas a conversa lenta. Enquanto avalio o tamanho dos cavacos pergunto pelo preço, “Cento e vinte o azinho…O sobro fica a oitenta.”. “Este ano só quero azinho…”, “Você é que sabe…”.

Aproveitei a manhã de folga. A minha sogra deixou o carrinho de mão cá fora. Por debaixo da construção em alvenaria que serve de garagem e aproveitando o desnível do terreno, existe um espaço reservado para a lenha. Fica sempre em casa deles, quando precisamos vamos lá buscar, é perto e eu gosto de lá ir. Também gosto de arrumar os cavacos, escolhê-los pelo tamanho e pelo corte, garantir que não descaem, estacá-los de vez em vez. Enquanto espero vou arranjando espaço. As vespas fazem-me companhia, atraídas por três figos podres num balde, a um canto…Depois logo os deito fora.

Ouço vozes, a minha mulher dá indicações sobre o local de descarga. Quando chego lá acima já os primeiros pedaços de madeira rebolam pelo chão. Falo com um dos homens, o outro pouco percebe do luso verbo, do Leste? Não sei, não perguntei.

Acabaram, “Um bom dia de trabalho!”, “Obrigado! Olhe que você também não está mal servido.”.

Fiz a coisa nas calmas, a Deo ajudou-me e este ano acabei mais cedo. Olhei orgulhoso para a arrumação…Ainda ficou muito espaço livre…O meu sogro vai ficar contente.

Escolhi dois pedaços de lenha para o meu recuperador de calor…Para fazer vista…

É essa a imagem que deixo…

Um abraço a todos e boa semana!

2006-09-22

Explicação

Comecei a trabalhar aos dezassete, oficialmente. Uma das primeiras pessoas que conheci vai-se embora este ano, reformou-se. Tal como eu, veio de Lisboa, uns anos depois de mim, mas não interessa, veio! Companheira, camarada, pouco importa, foi ela que me apresentou os pontenciografos, as muflas, as provetas graduadas com rolha e esmerilado, os espectrófotometros, os bicos de busen e um sem número de objectos que faziam parte do quotidiano…Cabo Ruivo, laboratório, viras à direita…Em frente ao rio…De frente para a outra margem. Essas primeiras imagens, essas primeiras experiências, tão receptivo que eu fui. Como eu gostaria de puder espantar-me…Como da primeira vez…
Ontem? Sim foi ontem!
Ontem organizou-se um jantar de despedida…Aliás, meteram no mesmo saco duas despedidas. Por esse motivo o número de pessoas envolvidas extravasou o laboratório e chegou ao director, alguém que eu vejo uma vez em cada dois anos e com quem tive azedas conversas de falsa cortesia. Bom…Eu não fui ao jantar…Fiquei com a minha filha…Ajudei-a no banho, jantei com ela, deitei-a cedo para a conseguir acordar de manhã.
Que a decisão foi correcta, não tenho dúvidas. Eu não tenho dúvidas porque tenho noção das minhas prioridades neste caso…Também ela percebeu.
Fui coerente comigo mas trago o sabor da derrota na boca…E sabe mal que se farta…
Não tenho de me justificar.
Hoje de manhã ressacava de uma auto flagelação estúpida e sem sentido.
Demorei tempo a perceber que no meio disto tudo não me perdi, continuei a ser quem era. Não preciso que me admirem ou odeiem, apenas que percebam até onde podem ir.
Cheguei a casa…Vim devagar…sessenta quilómetros por hora numa estrada de duas vias totalmente desimpedida…Vidros abertos, para sentir o cheiro dos pinheiros molhados a secar…Pois…Cheguei a casa e lembrei-me do que tinha escrito ontem, desse olhar absorvente pela desgraça…Faltava qualquer coisa para finalizar aquele texto que fui buscar ao baú das recordações (Doces anos oitenta…Mas tantos amigos perdidos…). Faltou explicar que ontem, de alguma forma acabou um ciclo…Para mim.
As prisões existem, são reais, servimo-nos delas para marcar territórios, delimitar consensos, abreviar relações ou extrapolar outras. Muitas vezes nem damos conta desse facto.
Escrevo enquanto vou pensando e isso não é muito bom…
Ainda me arrependi de ter postado aquilo, aquele texto de tempos quase esquecidos…
Fui à casa de banho antes de ir à cozinha buscar um copo que enchi de Whisky…Lembrei-me do que tinha escrito ontem…Li os comentários…E achei que vos devia uma explicação…
Também a mim eu tive que explicar umas tantas coisas…

2006-09-21

Sonho na última noite de um condenado


Vejo-me numa terra estranha, onde nada nasce…Ou morre…Apenas perdura…Estou só…Ao lado…De lado…A um lado…De um lado…O de cá…O meu lado…Que como lado também é isolado…Foi colocado de lado pelos outros lados…Renegado…Exilado…E no seu exílio levou-me…Arrastado…Pendurado…Pelo pescoço…Por uma corda…Presa a muitas correntes…Que eu não sabia serem tão fortes…Tão resistentes…Aonde se pode ir numa terra estranha…Numa terra de estranhos…???? Não sei!...Nem faço a menor ideia!...Estou confusamente fodido…Á minha volta, na paisagem agreste, ondulam prados rasteiros de incolor desprezo…Estou no meu poste…No meio…Preso…Volto-me para o outro lado…Do poste…E tento dormir…Sem ter de adormecer e acordar de novo nesta terra de estranhos…Como se pode estranhar os estranhos?...Faço-o sem consciência de o estar fazendo…É algo institivo…Destrutivo…Extra negativo… Ultra impositivo…E eu vejo-me nesta terra estranha onde permaneço cativo…Quero sair!!! Onde está a porta de saída…Onde está a luz…Sinto o poste nas minhas costas….Ouço os fuzis a carregar…um cheiro a azedo no ar…Porra, não me consigo lembrar do dia em que nasci…

2006-09-19

Alinhamento teológico

No Templo,
Os Deuses esperam a turba.
Oferendas fenecem nos altares,
Desmedidos manjares,
Almas crentes trucidadas.

No Templo,
A mensagem opalina,
Memória milenar,
É origem e conflito.
Razões profundas do ser,
Nas entranhas do que é molécula, átomo,
Na dúvida e no refúgio.
No Templo,
Cumpre-se a existência!

Nas vertentes nervosas,
Novelos de estímulos,
As palavras de oração são eco
Do eco dos oradores.
No Templo,
As paredes transpiram rumores!

Palavras de fé,
Largadas nos séculos profundos,
Teocracias ocidentais, orientais, medievais….Democráticas.
Na amálgama tudo se confunde.
Etéreo, o cordão umbilical materializa-se,
Revela-se omnipresente.
Orgânica,
A mensagem genética lembra-nos do pânico,
Do medo das noites escuras,
Do desabar dos céus.

No Templo sou uno,
Desprovido de identidade.
Tenho um nome e uma vida
Que reconheço nos mestres.

Não justifico!
Sou justificação!

Adeus alguém que já fui!
Cerrado está o portão para quem não acredita!


P.S. Porque este reacender teológico pode reacender outras questões...

2006-09-15

Suicídio

Atento, o olhar ultrapassa a janela indo repousar no candeeiro do outro lado da rua. Já teve uma vida, preservou-a e cuidou dela até à reforma. Sentado num sofá que não é dele mas que ele ajudou a comprar, está na casa da filha, oferta dos pais ainda a mãe era viva. Sente tantas saudades dela, primeiro vem a imagem, depois uma dor, um aperto e saem as lágrimas e revela-se o choro, os soluços, finalmente secam as lágrimas e fica o gemido, continuo, imperceptível até a memória o agarrar outra vez…Sente-se cansado, um peso nos gestos que o fazem desistir. Olha para fora, para lá dos caixilhos de alumínio que ajudou a escolher, para aquela luz que o chama…Levanta-se e vai…
O baque foi surdo, corpo pesado após queda de trinta metros, sem ruído humano, característica que o assinalasse. Assim se deixou estar até ás seis da manhã, hora a que foi descoberto pelo cão da vizinha, rafeiro intrometido que lhe mijou para cima sem nenhum respeito.


Vai para dez anos que recebe da Segurança Social. Agora com Setenta e três anos, este Engenheiro Químico aposentado, mantém a postura que sempre o caracterizou. De uma organização e disciplina a toda a prova continua a levar a vida demasiado a sério.
Ultimamente apareceram-lhe umas dores, tentou ignorá-las, mas o ardor na zona do baixo ventre fazia-o curvar-se, algo a que ele não estava habituado. Foi ao médico numa segunda feira e fez exames de urgência na terça. Dai até saber que tinha um cancro foi um instante. Chegou a estar internado e foi a seu pedido que saiu do hospital. Quimioterapias sem garantias, operações ao intestino e inúmeras consultas seriam a rotina dos seus últimos anos.
Vestiu o seu melhor fato encheu um copo do seu Brandy velho favorito e sentou-se à secretária. Pegou num papel e na sua bonita caligrafia escreveu um “Adeus Eduarda, sempre te amei.”. Assinou, pegou no frasco de comprimidos que lhe tinha dado um médico amigo e despejou-o num trago etílico. Sentiu os olhos fecharem-se…Ainda teve tempo de balbuciar um adeus antes de partir.


Trinta e cinco anos de trabalho pesado numa rotina que o cansou fizeram dele um homem doente. Não foi o corpo que o traiu, esse sempre se portou à altura, para os patrões e para tudo. Foi a cabeça que fraquejou, uma dor de cabeça que veio com ele do Ultramar e nunca mais o largou, assim como a imagem daquele filho preto de que escondeu de todos, até da sua mulher. Durante anos disfarçou com o vinho e uma resistência anormal à bebida todos os seus pesadelos. A mulher está a trabalhar, hoje chega tarde, depois das onze da noite. Onde estás Idalina que a cabeça hoje estoura-me? Se a Idalina soubesse tinha saído mais cedo, mas não saiu. Quando entrou no seu quarto, depois do ter chamado pela casa toda, encontrou-o deitado na cama. Uma enorme poça de sangue e o cheiro a pólvora denunciavam a tragédia. Abandonada no chão a caçadeira tinha feito a última vontade ao seu dono.


Em memória de todos os meus amigos que desistiram. Aos outros...Não desistam por favor...

P.S. Bom fim de semana

2006-09-13

Primária (E não se fala mais no assunto...)

Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 acordei sobressaltado. A minha mãe não estava na cama, ouvia-a ao telefone. Levantei-me devagar e fui-me chegando. Esperei pelo resto da conversa cujo conteúdo não entendi perfeitamente. Pousou o auscultador sem reparar em mim, entrou na sala de estar e ligou o rádio. Atrevi-me a perguntar “Mãe, o meu Pai?”, abraçou-me e as palavras saíram-lhe num turbilhão, “O pai não pode sair…Tropa à porta da refinaria…Golpe de estado… Revolução…Não te preocupes que o pai está bem!”. Estava com sono e preocupado com o meu pai, no entanto mantive-me em silêncio ouvindo as notícias. Não me lembro das palavras, mas a música era diferente, sim disso eu lembro-me. De vez em quando a minha mãe tentava explicar-me qualquer coisa, repetia as frases do locutor e acrescentava outras, mas para mim só existiam três dúvidas, Quando é que o meu pai volta? O que é um “Golpe de Estado”? Amanhã vou à escola?
Andava na terceira classe. Por essa altura, sentados em carteiras para dois, carteiras de madeira com cavidade para o lápis e aparo e buraco para o tinteiro, estávamos sobre observação continua do Presidente do Conselho, Dr Marcelo Caetano, de Deus, pelo seu filho crucificado Jesus Cristo e do Presidente da República, Almirante Américo Tomás. Só na primeira classe fiquei impressionado. O primeiro visitava-nos regularmente na televisão, sentado num sofá do qual eu sempre quis saber a cor, o segundo só de nome o conhecia e tinha pena de Jesus, daquela sua imagem sempre pregada na cruz, o terceiro lembrava-me vagamente o meu avô e por isso achava-lhe piada naquela farda branca imaculada, uma espécie de capitão Iglo da altura.
Durante a quarta classe e depois das aulas ia distribuir manifestos dos pequenos partidos de esquerda, geralmente à porta da estação. Passei, não interessa como, tive quatro professores em quatro anos e uma revolução de permeio. Lembro-me do nome do meu primeiro professor, Barrocas, do segundo também, Barata, todos os outros se apagaram…
Foi a minha primária, cada um tem a sua e decerto com motivos de interesse, mas por ser a minha agrada-me dar-lhe importância, talvez por isso e ainda a propósito da minha filha, volte a falar no assunto.

P.S. O assunto está encerrado…É uma promessa! Boa semana a todos!

2006-09-10

Voltei ao sistema de ensino através da minha filha




O céu e o mar, o sol e a terra. Debaixo do sol que brinca, a terra olha para cima. Os risos são de crianças e os choros também. Uma mãe que se zanga, um pai atarefado com um bebé de colo deixa cair as chaves do carro e resmunga em silêncio, dois pequenos disputam a entrada numa sala e gritam e riem, depois abraçam-se e deixam-se cair no chão, as educadoras circulam apressadas esperançadas em manter a ordem, arrebanham os miúdos numa mistura de nomes, David, Guilherme, Diana, Rute, Filipe, venham cá, estejam sossegados. Os mais velhos já se separam em pequenos grupos, na sua maioria meninas de um lado e meninos do outro, vá-se lá saber porquê. Os mais novos é tudo ao molho, esses ainda não descobriram as diferenças e caminham em filas mistas atrás das técnicas de apoio. O local é agradável, térreo, com um relvado murado onde se fazem as festas e onde os gaiatos podem brincar. Todas as salas dão para esse relvado através de enormes vidraças e de uma porta, todas menos a dos bebés que providos de outros cuidados necessitam de um espaço isolado. Tive sorte, agradeço à Concha, à Bela e à Rosário terem diminuído o meu enorme sentimento de culpa. Ao fim destes cinco anos agradeço-lhes a enorme saudade que vou sentir. Aprendi muito e conseguimos sair como um grupo, um grupo que representou para eles “A Branca de Neve e os Sete Anões”, um grupo que organizou uma viagem à Eurodisney de modo a que só os adultos que quisessem ir é que pagavam, quermesses, bolos semanais, rifas, desfiles de moda…Não! Eu não desfilei, assim como não fiz bolos nem vendi rifas. Era-me pedido outro apoio, tirar bicas, vender bebidas e bilhetes de entrada, carregar com o que fosse necessário. Cada um deu o que pode, uns mais que os outros é certo, mas isso não tinha importância perante os objectivos conseguidos, todas as actividades a que nos propusemos foram realizadas. Mais uma vez digo Não! Não é um elogio à minha pessoa mas sim a quem nos motivou, lembram-se do meu agradecimento?
"Pai vou sentir tantas saudades da Concha, da Bela, da Rosário, dos meus meninos...", Também eu filha... Vou sentir saudade dessa tua alegria e bem estar recordando esses amigos que também eram meus...Ou quase!
Sim tive muita sorte e espero não a perder no futuro…Parece conversa da treta mas não é! Agora sim é que vão ser elas…Fui à escola P1 várias vezes, até porque voto lá. O local é agradável, não é novo mas está arranjado. As professoras reúnem-se numa sala que dá para uma das portas de entrada do edifício, aquela que nos leva à secretaria. Ouvem-se vozes, pressentem-me e uma delas dirige-se a mim solícita, sou bem tratado, informado do que pretendo, da informação que eu julgo necessária, procurei não ser chato, se calhar até fui rápido demais. Não vale a pena pôr a culpa na ministra da educação, o problema está comigo, sinto-me ansioso e cheio de dúvidas. A resolução do problema, também está em mim e tem sido a que sempre tenho utilizado, segue em frente que o tempo não pára. Isto dito assim parece pouco mas é fruto de um complexo mecanismo envolvendo muitas decisões.
Quem teve filhos com esta idade, a entrar para a primária sabe do que falo.
Voltei ao sistema de ensino através da minha filha…Espero não voltar a desiludir-me…

2006-09-08

Pensando em coisas boas

Acordei para mais um dia de trabalho, banal acção que me levou à casa de banho, à mesa do pequeno almoço, ao carro, mas fiquemos por aqui. O gesto é quase automático e as consequências simultâneas. Dou à chave, expressão que não reflecte o verbo, o motor começa a trabalhar e o rádio liga-se. Sete e trinta da manhã, o resumo noticiado, talvez comprado a uma qualquer agência noticiosa com justificações economicistas, fala de bola, mais concretamente do presidente do Benfica, o “Caso Mateus” vem a seguir…Mudo para o CD que lá havia deixado…Ian Anderson, flauta, a solo, algo de fora dos Jethro Tull…Bom hoje vou esquecer as coisas más…Parece que não vamos cumprir com o défice apesar de todos os esforços…O país continua a arder, parece que cada vez que vamos à praia pagamos uma taxa de Verão em madeira queimada…Vão subir o imposto sobre o alcoól, podes sofrer, mas se beberes para esquecer…Pagas!
Faltam dez minutos para chegar, tenho de pensar em coisas boas…Claro…Tão fácil, ainda ontem adormeci na sua cama.

Pediram-me há tempos, na cresce da minha filha, a propósito de uma encenação para uma festa de finalistas em miniatura, que comprasse umas fitas. Diz o costume, e aqui falo sem conhecimento, que as fitas são distribuídas por pessoas amigas e da família.
Assim o fiz passando desenhos para cada uma delas, trabalho executado a meias com a minha mulher. Todos escreveram qualquer coisa, a minha sogra esmerou-se e fez umas quadras, felicidades, concelhos, desejos, de tudo um pouco. Só faltavam duas pessoas, eu e a mãe. “Gostas tanto de escrever vê lá se escreves alguma coisa de jeito!!”, “Em casa de ferreiro espeto de pau, não é o que dizem?”, brincámos com a situação mas aquilo deixou-me pensativo. Sei que no final entreguei, um pouco envergonhado, a minha fita com uma frase “Gosto muito de ti”. Não me lembrei mais do assunto até ontem. A minha filha começou nos tempos livres, dentro de dias vai para a primeira classe e ontem chegou muito cansada. Com a mãe a trabalhar fiquei com ela até a levar para a cama, deitei-a, “Pai!”, “Sim filha!”, “Ficas comigo até eu adormecer?”, abraçou-me. Senti-me protegido, tudo fazia sentido, “Eu gosto mesmo muito de ti.” E adormeci.

Cheguei a pensar nela, abri a porta do carro e sorri…Assim está bem!

P.S. http://www.petitiononline.com/fiminc/petition.html. Leiam, tem a ver com a especulação à volta dos terrenos ardidos. Talvez seja mais um dos variados motivos para pôr isto tudo a arder. Vale a pena, que mais não seja por tentarmos. Não é justo alguém lucrar com a desgraça e a destruição…Bem isto já toda a gente sabe. Um abraço e bom fim de semana a todos os que por cá passam.

2006-09-07

Não me queimem sou a última!




Sim! Com o caminho que isto leva poderemos chegar à ficção do meu desenho...

(Dedicado à Mana!)

2006-09-04

Homem (oração humana)




Homem de barro, Homem pedra,
Granítico evento.
Aqui vou eu,
Peito quilha,
Cinzento, frio.

Simbiose da terra que me viu nascer,
Aqui estou eu para procriar,
Para celebrar o que vem,
Para chorar o que vai.
Superlativo de mim mesmo,
No limite do que posso,
Eis a minha doação!

Ai se tudo isto fosse verdade!
Se pudesse afirmar que tudo fiz…
Contemporânea agonia,
Histórica culpa…
Adão de seringa na mão…
Eva diz que espera…Hoje.
O que seria a maçã,
Afrodisíaco vegetal
Ou premonição fatal?

Homem corda, Homem fútil,
Multiplica-te,
Gera-te em exponenciais numéricos e
faz de ti próprio as amarras que te hão-de matar.
Deixa-te ser para sempre eterno,
Sempre com medo de olhar,
Sempre com os mesmos medos.

Homem sonho, quanto tempo me resta?...
Homem técnica, Homem luz,
Homem caleidoscópio, dono do bem e do mal,
E de todas as outras cores.
Hoje és exército e matas,
Amanhã és médico e curas,
Fazes a paz para fazer guerra.
Homem silêncio que tudo oculta.
Às vezes tenho vergonha de ti…

2006-09-01

Um conto em três páginas (c)

3ª e última página

Somos despertados por pequenos sinais, algo que os filmes de intriga nos revelam. Vemos, vemos e não vemos nada. De repente algo nos chama e tudo o que em nós pensa se focaliza. Leonel descobriu no meio da marginalidade e do crime duas pequenas fotografias de uma mulher desaparecida dias atrás. O antes e o após, de um lado a trabalhadora, do outro o corpo de uma mulher amortalhado num cenário policial. Da primeira imagem fixou a farda e o cabelo. Passara as últimas horas pintando sobre tela uma figura feminina com as mesmas características, mas de ângulos diferentes. Voltaram-lhe à ideia as perguntas que tinha por fazer, quem são, quem as faz, porquê reproduzi-las, essas mulheres, essas fotografias, qual o objectivo?
O desespero dos últimos tempos deixara-o demasiado magoado para preocupações de superficialidade ética. Acabou o que tinha de acabar, marcou novo encontro e aceitou nova fotografia. Descrever esta fotografia seria repetir a simplicidade das restantes, um quarto, um canto, uma luz sem origem visível e uma figura feminina, sem rosto, embrulhada sobre si mesma. O lado sensual era absorvido pela ausência de pormenores e pelo estático da figura, sem roupa que apenas mostrava a zona lombar e a curvatura das pernas torcidas. O trabalho tornou-se mais pausado, mais pensado, três semanas foi o tempo necessário para entregar a terceira tela. Sentia-se a sistematização dos processos, deixara os aditivos químicos e reduzia-se ao álcool nocturno e a haxixe, que pagava a fornecedores amigos com trabalhos de menor intensidade. Um dia, por volta da sexta fotografia, consegui questionar o professor, “Posso fazer-lhe uma pergunta?”, “Sim!?!?..”, “Quem são elas?”, “Quem!?”, “As mulheres?”, “Possivelmente modelos…Não sei…Não me interessa….Porquê?”, “Porque gostava de saber.”, “Explica-te…Não estou a perceber.”, “Desculpa…Paranóia minha, isto passa …”.
A qualidade do seu trabalho melhorava a olhos vistos e o ritmo foi diminuindo de intensidade valorizando a técnica. Já tinha executado quinze telas quando, e novamente por acaso, se fixou numa coincidência criminal noticiada no Correio da Manhã, “As autoridades presumem trata-se do mesmo suspeito. “, “O assassino em série terá morto quinze mulheres, segundo fonte oficial.”. Nessa edição apareciam fotografias das vítimas, em vida e após vida. Em todas elas as datas de desaparecimento coincidiam com as suas reproduções. Mais à frente falava-se do suspeito como alguém que teria cometido os crimes para executar obras de arte. Nunca o seu instinto funcionou tão depressa. Telefonou para uma amiga em Madrid e arranjou maneira de ela o convidar para uma semana de trabalho, ele pagava tudo. Abalou de camioneta, modo seguro para passar despercebido. Foi lá que soube da rusga ao seu quarto, da certeza das autoridades sobre a identidade do assassino, das promessas sobre a sua detenção. Pediu à sua amiga que ajudava emigrantes Marroquinos para lhe arranjar outra identidade. Durante algumas semanas falou-se no caso em Portugal, tendo-se noticiado inclusive, a apreensão dos quadros das vítimas pintados pelo assassino. O valor desses quadros e após variadas especulações subiu para valores inimagináveis. O actual proprietário que os tinha adquirido ao professor do assassino fazia promessa de se desfazer deles o mais depressa possível.
Leonel Marques, agora Abelâmio Rodrigues, prosseguiu uma vida marginal com uma prostituta de Madrid…E nunca mais ninguém soube dele. Adamantino Gomes é actualmente um nome incontornável no comércio de arte em Portugal.


P.S. Um bom fim de semana!

2006-08-30

Um conto em três páginas (b)

2ª página

Não chegou a responder-lhe…Sentia-se contrariado naquele restaurante, todo ele etiquetas e regras, gente de estatuto repousava por entre mesas e cadeiras sem levantar a voz, apenas um murmúrio comum a todos eles. A refeição foi lenta e muitas das perguntas que trazia guardou-as para mais tarde, era óbvio que o professor não estava interessado em falar no assunto. Mas não comeram em silêncio, Adamantino Gomes, assim se chamava o professor, questionou-o sobre o vinho “Um néctar! Do melhor que o Alentejo produz.”, dissertou sobre vinhas e lagares, seguiu em frente tecendo comentários sobre as tendências sexuais de duas mulheres que jantavam numa mesa ao lado e acabou no futebol, altura em que pediu dois cafés e duas aguardentes velhas, “Da especial!”. O nosso pintor, Leonel Marques de seu nome, estava enjoado de tudo, o seu estômago não estava habituado as estas excentricidades gastronómicas…Minto, desculpem…Do vinho ele gostou! Mas dizia eu que ele estava enjoado, farto intoxicado de todos aqueles cheiros. Suspirou de alivio quando Adamantino pediu a conta. A viagem até casa foi curta. Além do quarto o senhorio deixava-o usar as águas furtadas onde ele trabalhava. Só de dia se via bem, pela excelente clarabóia, de noite duas lâmpadas encaixilhadas faziam um serviço muito aquém do desejável. Entraram devagar naquele lugar quente e saturado de diluentes e tintas. Acendeu as luzes e esperou…esperou, até que…”Sim senhor, fizeste um óptimo trabalho.”, “A sério!?”, “Pelo que tenho de mais sagrado, está realmente muito bom, deste-lhe vida., “A quem?”, “…A tudo…O cliente vai ficar muito contente. Quando posso levá-lo?”, “Daqui a uma semana, mais ou menos…Eu depois telefono-te”, “OK! Se te achares capaz posso trazer-te mais uma foto quando cá voltar, queres?”. Enquanto falava o professor ia mexendo na carteira, contando notas, grandes notas, “Pode ser!...”. Respondeu hipnotizado, recebeu o dinheiro e esqueceu tudo o resto, inclusive as perguntas que tencionava fazer. Foi uma semana maravilhosa, pagou as dívidas e conseguia finalmente andar motivado, sem vergonha, sem medos. Até a dona Laura reparou “Só te falta uma boa mocinha.”, “Deixe-se disso dona Laura, agora é tempo de trabalho, de alcançar um sonho, o meu sonho.”, “Olha que nem só de sonhos vive o Homem, ouve a Larinha que já cá anda há um bom par de anos.”, “Tabém mamãaaa!”, “Não gozes comigo!”, “Um beijo?”. Despediram-se a sorrir.
Essa semana passou, o quadro foi entregue ao professor, recebeu uma nova fotografia e mais uma vez as perguntas ficaram por fazer. Desta vez um canto de um quarto com uma janela. Debruçada sobre essa janela uma figura feminina de costas para o observador. Percebe-se o cabelo escuro ligeiramente ondulado sobre um simples vestido azul de abotoar pelas costas, como nas fardas das meninas do supermercado ou das empresas de limpeza. De qualquer forma é um vestido ligeiramente acima dos joelhos deixando ver umas pernas bem feitas, nos pés uns ténis pretos com riscas brancas. A luz cénica vinha do exterior, pela janela e talvez de uma porta aberta por detrás de quem observa. Os pormenores não eram muitos mas sentia-se inspirado e rapidamente surgiram sinais de que a coisa andava. Não o fez numa noite como o primeiro, perdeu mais tempo, misturou técnicas, preocupou-se com detalhes da mulher, com a luz nos seus cabelos, com a sombra na farda. Ao fim de três dias ainda estava a acabá-lo. Mais uma noite em claro, que raio de mania…Trabalhar de noite.
De manhã e pela primeira vez nesses três dia foi tomar o pequeno almoço na dona Lara.
“Bom dia dona Lara.”, “Bom dia menino. Que é feito de ti que não te deixas ver?”,
“A trabalhar dona Lara, a trabalhar.”, “Queres uma tosta só com queijo e um galão bem quentinho?”, “Pode ser dona Lara…Obrigado.”. Pegou no Correio da manhã que jazia aberto numa mesa vazia e começou a folheá-lo até se deter fixamente na página oito.

2006-08-28

Um conto em três páginas

1ª página

Tinha trabalhado a noite toda numa enorme tela, encomenda de gente rica, gente que ele não conhecia. O seu antigo professor tinha tratado de tudo, até do dinheiro para as tintas. Havia um ano que vivia de esmolas, de retratos a lápis de cor à porta das zonas turísticas de Lisboa. O quarto era pago pela namorada que o deixou após um ataque de nervos. Depois disso conseguiu que o senhorio aceitasse como pagamento o seu trabalho na pintura da casa, “Se você é pintor deve conseguir pintar paredes?!”. O prazo estava a esgotar-se quando encontrou por acaso o seu professor de desenho, “Ainda és capaz de fazer alguma coisa? Consegues assumir um compromisso?”, respondeu que sim, de cabeça baixa olhando para as calças que não viam água há muito tempo. O que tinha de fazer era relativamente simples. Mensalmente chegaria às suas mãos uma fotografia que teria de reproduzir com total liberdade de estilo. Única restrição, a composição teria de ser mantida, não poderia trocar ou ignorar objectos, fossem eles inanimados ou não.
A primeira fotografia mostrava uma mulher deitada de bruços numa cama de casal. A cama estava coberta com um lençol que também cobria a mulher adivinhando-lhe as formas. Nada mais se via naquele quarto iluminado de vermelho por duas luzes cuja origem não era visível. Desenhou-a a carvão, com traços ambíguos e dispersos tal qual a sua vida, a sua e a dela que parecia tão desprotegida tão sossegada. Abriu os tubos novos de tinta e aplicou-os directamente na tela. Só depois o ambiente surgiu, estavam lá as paredes, a cama, a mulher e os lençóis, um por baixo a tapar o colchão quanto ao outro já lhe fizemos referência. Como achou o vermelho demasiado agressivo substituiu-o por uma luminosidade branca que projectava sombras distintas num soalho de madeira que ele próprio inventara, algo que não se conseguia distinguir na fotografia. Agora que acabara sentia-se bem, liberto de tenções, de conflitos, conseguiu até sorrir à vizinha que o detestava. Na rua dirigiu-se para o café da dona Lara onde costumava tomar o pequeno almoço e onde mantinha uma conta por pagar. “Bom dia dona Lara. Já chegaram os jornais?”, “Estás muito alegre hoje, não me digas que acordaste cedo para ir trabalhar?”, “Não goze dona Lara. Não tenho tido sorte mas as coisas vão virar, vai ver. Para começar vou poder pagar tudo o que lhe devo assim que entregar o que estive fazendo.”, “Um quadro suponho!?!”, “Sim um quadro…E poderão ser mais!”, “Deus queira que sim meu filho.”. A dona Lara adorava aquele moço franzino de cabelo desgrenhado e barba por fazer, adorava acima de tudo aqueles olhos verdes que lhe davam uma expressão tão parecida à do seu Ricardo morto quatro anos antes por uma overdose de heroína.
Sentou-se ao pé da janela e folheou o Correio da Manhã. Leu os assaltos, aos bancos, às velhinhas, aos jovens namorados junto ao rio. Prendeu-se na notícia do desaparecimento de uma menina de 11 anos na cidade de Bragança. Pais pobres, casa pobre e mais cinco para cuidar, “Tragam-me a minha menina!”, na fotografia a imagem de um pai destroçado e de uma mãe que não consegue olhar a objectiva escondendo a cara entre mãos. Mais à frente noticiava-se o aumento da gasolina, por causa do petróleo, por causa do Irão, por causa da energia nuclear, por causa da bomba, por causa….Ficou-se pelas palavras cruzadas enquanto trincava uma tosta só com queijo.
À tarde telefonou ao professor e combinou com ele um encontro. Este convidou-o para jantar, “…Depois logo vamos ver a encomenda.”, “À noite?”, “Achas que preciso da luz do dia?”