2015-06-09

A felicidade

Procura-se, constrói-se, adquire-se por procuração ou numa loja perto de nós? Qual o estado de ser feliz, quais os fluidos orgânicos que nos levam a esse êxtase? Posso eu acordar e bastar-me vivo para ser bafejado pelo seu toque, serei considerado minimalista ou pouco exigente? Conseguirei eu vinte e quatro horas ininterruptas de superior comiseração egoísta, de consolo permanente? Dependerá a minha felicidade de mim, apenas e só de mim, ou terão os outros uma palavra a dizer? E o tempo, consideração meteorológica, o sol, a chuva, o céu nebulado, o céu azul, serão eles apenas adereços prontos a ser desfrutados, lápis de cores, serão eles capazes de provocar felicidade, facilitar-lhe a vida? E o tempo, o outro tempo, que juntamente com o espaço nos confere dimensão, referência, ancora, nos situa e nos faz situar, foi antes, é agora, será depois ou nunca será, será esse tempo regenerador ou fator de erosão? Conseguirá a felicidade resistir a tantas questões, será ela racional, emocional, uma mistura em partes iguais ou uma formula secreta que se adapta e multiplica?
Porque não deixá-la aparecer e desaparecer, chegar e partir ao sabor de marés, limitarmo-nos marinheiros, aprender a navegá-la, saborear-lhe as nuances, os bons e os maus humores que lhe advêm da inconstância, do seu estado de constante volatilidade, permanência intermitente, que salpica as nossas vidas de sal doce.
Já assisti à sua procura, homens e mulheres dispostos a tudo nessa viagem alucinada. Vi homens e mulheres passarem-lhe ao lado por centímetros, outros chocarem com ela e nem a verem. Vi homens e mulheres que se decidiram pela sua construção e trabalharam todos os dias com ela ali ao lado, ajudando-os, fazendo-lhes a massa com que se unem os seus tijolos, vi esses homens e mulheres desesperarem por nunca ter a construção acabada, vi homens e mulheres chorarem, porque depois de acabada a construção, sentiram medo, o medo de a perder, o medo de ver a erosão destruir a sua obra. Vi homens e mulheres sonhá-la, desenhá-la, pintá-la, esculpi-la com mil cuidados, todos eles com medo de acordar. Vi homens e mulheres tentarem comprá-la, conquistá-la á força, sem nunca saber quando parar, sem nunca saber se realmente a tinham atingido, consumidos pela dúvida, esquecidos do que realmente queriam.
A felicidade é um conceito, comporta satisfação, êxito, contentamento, gosto, prazer, alegria, exultação, júbilo, regozijo, consolação, contento, bem-estar, deleite e muitos outros adjetivos.
Porque não aproveitar uma satisfação inesperada, um êxito ocasional, um contentamento genuíno, um gosto aprendido, um prazer antecipado, uma alegria ocasional, uma exultação esperada, um júbilo de conquista, um regozijo merecido, uma consolação pelo esforço, um contento pela vida, um bem-estar físico e natural, enfim, deleitarmo-nos com a vida, deixar sempre as portas abertas para que a felicidade possa entrar, para que a tristeza possa sair.
Ontem, na televisão, ouvi filósofos, escritores, advogados e outros pensadores. Ontem fiquei com uma certeza.
A felicidade não se escreve, não se diz, sente-se!

2015-05-09

Os segredos do Jorge

A noite tem segredos que não são dela, são nossos. Por vezes assusta-nos revelando-os. Será talvez a escuridão que transforma a sua pálida luz em brilho ofuscante, quase insuportável. Nessas ocasiões sentimo-nos expostos, nus. Uma nudeza crua que nos revela o interior ensanguentado. Podemos então chorar mas não é um choro de ocasião, é um carpir de fingimentos acumulados, fragmentos de histórias passadas, histórias às quais não conseguimos escrever um fim. São essas histórias que fazem a noite tão interessante, o sal que tempera a sua voluptuosidade. Quem não se descobriu na noite? A manhã, pelo contrário, é uma esponja de efeito anticéptico, absorve a nossa sujidade interior e elimina-a deixando apenas restos de nós. A cara cheia de rugas, os olhos inchados, a pele pálida e gordurosa, os músculos flácidos, os pulmões ressequidos, a vergonha do que mostrámos sem querer.
O Jorge foi deixando de sair à noite. Já não suportava o fingimento matinal, o voltar a ser o que não era, o que não queria ser. O Jorge desistiu de todos os sonhos. A escrita morreu no casamento, a pintura no primeiro filho, a música no segundo, quando todo o tempo de criar se acabou, finado entre o trabalho na fábrica e o cansaço da alma. A noite assusta-o. Por vezes, confrontado com convites irrecusáveis, cede a contragosto com a certeza do arrependimento, também ele certo. O susto persegue-o sem que ninguém se aperceba. Longe vão os tempos da recriminação. Não sabes beber, bateste outra vez com o carro, não te lembras do que fizeste, a vergonha do desconhecimento, versões múltiplas do seu medo.
Começava sempre da mesma maneira. A promessa de ser diferente estava condenada ao fracasso. Eterno fracasso, antecipado, anunciado, desde logo aceite como inevitável. O primeiro embate junto da mesa onde se acumulavam os pratos e os copos. Os copos que voltariam a encontra-lo, noutras mesas, balcões, superfícies planas que lhes permitissem a verticalidade. Os copos que se encheriam de diversas bebidas, de diversas percentagens, 5%, 14%, 30%, 50%, percentagens que subiriam e desceriam ao sabor da oportunidade, da companhia, da conversa, do desafio. No fim o mesmo medo, o vazio, a sensação vertiginosa do abandono, sozinho ou acompanhado sempre o mesmo abandono, o seu abandono.
Hoje o Jorge saiu á noite. Não fez promessas. O Jorge que desistiu dos sonhos escreve para si, toca para si, pinta para si e sente-se bem consigo. Não lhe apetece sair mas a noite é especial. Alguém que parte, que se despede, um companheiro de lutas, de desilusões. Perante estes termos seria de esperar um receio incontido, um desnorte descontrolado. Mas o Jorge já não tem ilusões. O Jorge morreu por dentro. No interior do seu corpo o sangue já não tem a mesma cor. As histórias inacabadas tiveram o seu fim. Por esse motivo o Jorge saiu descontraído, bebeu descontraído, despediu-se controladamente e foi-se deitar sóbrio.

A noite deixou de ter segredos para o Jorge e as manhãs passaram a ser todas iguais.

Deus queira que o Jorge não se canse de si...

2015-04-29

A lareira permanece acesa...

Dez de Novembro de dois mil e catorze, dezassete horas e dezanove minutos. Cheguei do trabalho. Entro em casa. A sala, fria e escura, recebe-me de braços abertos, num aconchego gelado de coisa morta. Um ligeiro cheiro a humidade paira no ar, lugar-comum para algo que se insinua, estado de presença, existência, não se impondo, fazendo-se notar. Um grito de alerta para o espaço imediato e para aquele logo a seguir, e isto significa ouvir-se em toda a casa. MARIANAA! E enquanto o nome ecoa aprumo o ouvido e sintonizo-me com os ruídos do silêncio, uma fração de segundos, uma fração que durou segundos, que me desesperou o tempo suficiente para nem chegar a ser tempo, tão ao de leve como a resposta, sim pai!
Já estás na cama? Estava com frio, uma pausa enquanto ajeita os lençóis, acomoda o corpo para se debruçar num caderno manuscrito, estavas a estudar? Vais ter algum teste? Sim, o último antes do Natal, de físico-química, o último, o primeiro de muitos, vou lá abaixo acender o aquecedor, porque é que não acendes antes a lareira.
Fui à casa de banho, depois fui à garagem e fumei um cigarro, quanto tempo demorei? Não sei, uns míseros cinco minutos. Peguei em três pequenos toros e numa caixa de acendalhas.
A lareira já está acesa, ouve-se uma guitarra e um baixo, aplausos, obrigado! Dead Combo, Live at Teatro São Luiz, começando com sopa de cavalo cansado, passando por quando a alma não é pequena, acabando num desabafo ai que vida, e o ecrã à minha frente, o ícone do Word insinuando-se, lembrando-me do atalho que criei vai para meses, numa tentativa frustrada de criar hábitos de escrita, um teclar constante e consciente, produtivo e independente de estados de humor, um exercício de construção com objetivo, um projeto acabado.

A lareira permanece acesa, eu entretanto adormeci…

2015-04-25

EU SOU!

EU SOU!

Eu sou a raiva que não posso,
A tristeza que me permito,
O desencanto que me venderam,
Um carrossel sem fim.

Eu sou o combatente sem arma,
O soldado de trincheira,
A latrina mal lavada,
Uma espada de madeira.

Sou a pedra que não fere,
A palavra que não diz,
A história que não se escreve
Os restos deste País.

Eu sou a morte renegada,
Uma flor sem cheiro,
Sou um todo que não é nada,
Quando não tem companheiro.

Sou a tristeza fingida,
Sou a alma inventada,
Sou a grandeza despida,
De liberdade comprada.

Sou um filho de más noites,
E a cova dos futuros.
Em mim morre tudo o que é sonho
Por detrás de imensos muros.


Grito sempre a horas certas,
E luto a horas marcadas.
Eu sou a espera dos outros,
Reflexo de manadas.

Eu sou os primeiros minutos do dia,
A confissão sem perdão.
Sou a vitória que adia
O destino da Nação.

Eu sou o que penso,
Quando me obrigam a pensar.
E de tudo o que me resta,
O que me falta chorar.

AH meu Vinte Cinco,
Meu cravo de florista,
Minha lembrança de livro,
Minha página de História!

O que serei eu amanhã,

Quando este dia passar?

(Após concerto de Sérgio Godinho em Vila Nova de Santo André 24 de Abril de 2015, que me sirva de lembrança...)