2023-12-17

Continuo à espera de uma cadeira eléctrica

Que caminho, aquele que eu percorri desde a última vez que me atrevi a teclar algumas palavras para aqui deixar uma mensagem. Acontece tudo tão depressa, tudo desaparece tão depressa. 

Fui convidado para um casamento no dia quatro deste mês. Foi um convite irrecusável. Ainda bem que assim foi, ainda bem que não pude recusar, ainda bem. 

Pego a partir daqui. Estamos em dezembro. Para ser mais exato estamos a dia dezassete de dezembro de dois mil e vinte e três. São vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos. O relógio irá avançar enquanto eu luto com os meus dedos para digitar estas palavras. Novembro passou, veio o frio, e o meu corpo ressentiu-se. 

A D. apanhou Covid e eu fui atrás. Durante alguns dias não fui capaz de dormir. Primeiro porque me custava respirar e tossia muito, depois porque ganhei uma aversão paranóica à cama. Assim que me deitava entrava em pânico e tentava levantar-me rapidamente, algo que eu não sou capaz de fazer sem algum esforço e alguns minutos. Lutava com os lençóis, com os pés que escorregavam, com as pernas que não se mexiam, com anca que não se dobrava nem segurava, com a minha cabeça que, em estado de alarme compulsivo, me enviava mensagens de desespero; "Levanta-te! Despe-te e vai para a janela apanhar ar! Vai à casa de banho urinar, vai rápido que a bexiga já abriu as comportas e as cuecas já estão molhadas!". 

Deixei de ir para o quarto da cama. Sentava-me no cadeirão da sala e adormecia, com uma manta por cima das pernas, por períodos não superiores a uma hora. Agora que penso bem no assunto nem sei bem se adormeci. A partir de uma certa altura tudo se torna confuso e a realidade que eu apreendo pode não ser mais que uma vontade moldada pelo desespero, uma recriação em modo de sobrevivência. 

Durante cerca de quinze dias a noite tornou-se algo insuportável. Tantas vezes que eu me lembrei do hospital e da convalescença após aquela operação de urgência. Sim, também não dormia de noite, só me rendia com luz do sol, talvez assim a morte não me levasse. Mas na altura eu combatia uma infeção generalizada e tinha esperança que, terminado o combate, tudo voltaria à normalidade possível. Certo é que realmente tudo voltou, mais ou menos, ao que era, até a minha arrogância e impaciência.

Aproxima-se o Natal e a cama já não tem picos. Fiz a experiência no fim de semana passado, quando a minha filha veio a casa. Juro que tremia quando me rendi à tentativa. Consegui deitar-me mas não dormi. Com uns auscultadores nos ouvidos e o telemóvel em modo Spotify, fechava os olhos e mergulhava numa longa audição de êxitos com quarenta anos de idade (um dia explicarei porquê este retorno ao passado).

Sim, também matámos javalis. O carro ficou a andar e do acontecimento resta-me a memória do porque bravo deitado no chão a espernear na noite escura. Podia ter sido pior, passaram-nos uns sete à frente e só acertámos em dois. Isto tornou-se banal na nossa região e, aparentemente, não se quer encontrar uma solução. Fica o estrago e a despesa, a certeza de haverá mais dinheiro a sair da conta para que o   Natal fique mais em conta.

Fui a Santa Maria. Que tragédia esse dia, quase quarenta minutos para estacionar a quilómetro e meio do edifício pretendido. Passeios sem rampa, seguranças mal educados e agressivos, e as respostas de sempre, a puta da doença continua paulatinamente a avançar. Os testes cognitivos não indiciam a presença de outras complicações, nomeadamente Alzheimer. Sim, isto pode sempre ser pior.

Em abono da verdade fui ajudado por um dos seguranças do hospital que se condoeu com a visão de um deficiente esquelético agarrado a um poste de transito enquanto a D. tentava descer o passeio para trazer a cadeira de rodas para a estrada, único local onde a circulação era minimamente praticável. Não me perguntem pelos lugares para deficientes que eu recuso-me a responder. Mais tarde, ainda nesse dia, a D. haveria de perder as estribeiras no Fórum Almada por causa de um elevador.

Tanta coisa a acontecer. Aproxima-se o Natal e a minha preocupação é o aniversário da D.. Tanto que ela merecia um aniversário em condições. Isso e as condições de mobilidade onde decorrerão todos estes eventos. Queria tanto não ser um empecilho.

Domingo à noite. Segunda ainda continua a ser um dia de trabalho. Só eu sei porque este facto é tão importante para mim. Gostava de ir só a a D. mas ELA não me larga.

P.S. Continuo à espera de uma cadeira eléctrica. Pode ser que chegue a tempo...