2006-09-29

Gaivotas


Podia dizer que foi inspiração ou qualquer outra fonte de energia, mas estaria a mentir. Foi apenas mais um dia. Levantei-me cedo e fui ver o mar...Sabia que ia estar fechado nas próximas doze horas e decidi aproveitar. Porto Covo está deserto, voltou à pacatez dos seus trezentos e poucos habitantes. Estacionei o carro junto ao tratamento de águas e percorri a pé o restante caminho até á falésia, até ao mar. Bem perto de mim, nas saliências rochosas, as gaivotas espreitam os pescadores. Observam como se não fosse nada com elas...E eu também.
Lembrei-me da máquina que trazia na mochila...Desci, o suficiente para ficar no mesmo plano, olhos nos olhos e fotografei-as...


Uma vez...


E outra...

E ainda outra...


Antes de abalar despedi-me do mar e agradeci ao sol a sua breve aparição.

Foi assim a minha manhã...Do resto não conto, apenas que são quase duas horas e que tenho de me ir deitar...

2006-09-25

Sobro e Azinho



Á beira da estrada três montes lenha. Uma placa tosca com letras pintadas e uma seta leva-nos a percorrer um pequeno caminho de terra que nos retira do asfalto. Uma vedação, um portão aberto e logo a seguir um toldo de plástico onde repousa um velho tractor. Ao seu lado um homem bem entrado nos cinquenta, marcas do trabalho do campo na cara e nas mãos, previsivelmente também no corpo se o mostrasse. Sentado numa cadeira, que me lembra as que existiam nos cafés quando eu era pequeno, entretém-se com uma navalha e um pau. Separa-nos uma mesa de madeira forrada com um plástico transparente, reaproveitado de outros embrulhos. Um lápis, um bloco improvisado e pedaços de madeira, simulam destroços de uma tempestade, emprestando-lhe um ar desarrumado que não destoa.

Todos os anos compro lenha, uma tonelada, meia de sobro e meia de azinho, para o recuperador lá de casa e para os meus sogros. Não tenho especial fascínio pelo fogo mas agrada-me bastante observar o lume manso na lareira durante o Inverno. Os olhos abandonam o corpo e perdem-se na brasa e aquecem-se, aquecendo com eles todo o corpo. Não consigo explicar...É muito bom…

O azinho é melhor, tem uma combustão lenta e produz mais calor que o sobro, também é mais caro. São coisas que se fazem com antecedência, antes das chuvas e do tempo húmido. A madeira molhada pesa mais e custa a pegar fogo.

“Bom dia!”, o homem desvia o olhar das mãos e debruça-o em mim, retribui o cumprimento. O negócio é rápido mas a conversa lenta. Enquanto avalio o tamanho dos cavacos pergunto pelo preço, “Cento e vinte o azinho…O sobro fica a oitenta.”. “Este ano só quero azinho…”, “Você é que sabe…”.

Aproveitei a manhã de folga. A minha sogra deixou o carrinho de mão cá fora. Por debaixo da construção em alvenaria que serve de garagem e aproveitando o desnível do terreno, existe um espaço reservado para a lenha. Fica sempre em casa deles, quando precisamos vamos lá buscar, é perto e eu gosto de lá ir. Também gosto de arrumar os cavacos, escolhê-los pelo tamanho e pelo corte, garantir que não descaem, estacá-los de vez em vez. Enquanto espero vou arranjando espaço. As vespas fazem-me companhia, atraídas por três figos podres num balde, a um canto…Depois logo os deito fora.

Ouço vozes, a minha mulher dá indicações sobre o local de descarga. Quando chego lá acima já os primeiros pedaços de madeira rebolam pelo chão. Falo com um dos homens, o outro pouco percebe do luso verbo, do Leste? Não sei, não perguntei.

Acabaram, “Um bom dia de trabalho!”, “Obrigado! Olhe que você também não está mal servido.”.

Fiz a coisa nas calmas, a Deo ajudou-me e este ano acabei mais cedo. Olhei orgulhoso para a arrumação…Ainda ficou muito espaço livre…O meu sogro vai ficar contente.

Escolhi dois pedaços de lenha para o meu recuperador de calor…Para fazer vista…

É essa a imagem que deixo…

Um abraço a todos e boa semana!

2006-09-22

Explicação

Comecei a trabalhar aos dezassete, oficialmente. Uma das primeiras pessoas que conheci vai-se embora este ano, reformou-se. Tal como eu, veio de Lisboa, uns anos depois de mim, mas não interessa, veio! Companheira, camarada, pouco importa, foi ela que me apresentou os pontenciografos, as muflas, as provetas graduadas com rolha e esmerilado, os espectrófotometros, os bicos de busen e um sem número de objectos que faziam parte do quotidiano…Cabo Ruivo, laboratório, viras à direita…Em frente ao rio…De frente para a outra margem. Essas primeiras imagens, essas primeiras experiências, tão receptivo que eu fui. Como eu gostaria de puder espantar-me…Como da primeira vez…
Ontem? Sim foi ontem!
Ontem organizou-se um jantar de despedida…Aliás, meteram no mesmo saco duas despedidas. Por esse motivo o número de pessoas envolvidas extravasou o laboratório e chegou ao director, alguém que eu vejo uma vez em cada dois anos e com quem tive azedas conversas de falsa cortesia. Bom…Eu não fui ao jantar…Fiquei com a minha filha…Ajudei-a no banho, jantei com ela, deitei-a cedo para a conseguir acordar de manhã.
Que a decisão foi correcta, não tenho dúvidas. Eu não tenho dúvidas porque tenho noção das minhas prioridades neste caso…Também ela percebeu.
Fui coerente comigo mas trago o sabor da derrota na boca…E sabe mal que se farta…
Não tenho de me justificar.
Hoje de manhã ressacava de uma auto flagelação estúpida e sem sentido.
Demorei tempo a perceber que no meio disto tudo não me perdi, continuei a ser quem era. Não preciso que me admirem ou odeiem, apenas que percebam até onde podem ir.
Cheguei a casa…Vim devagar…sessenta quilómetros por hora numa estrada de duas vias totalmente desimpedida…Vidros abertos, para sentir o cheiro dos pinheiros molhados a secar…Pois…Cheguei a casa e lembrei-me do que tinha escrito ontem, desse olhar absorvente pela desgraça…Faltava qualquer coisa para finalizar aquele texto que fui buscar ao baú das recordações (Doces anos oitenta…Mas tantos amigos perdidos…). Faltou explicar que ontem, de alguma forma acabou um ciclo…Para mim.
As prisões existem, são reais, servimo-nos delas para marcar territórios, delimitar consensos, abreviar relações ou extrapolar outras. Muitas vezes nem damos conta desse facto.
Escrevo enquanto vou pensando e isso não é muito bom…
Ainda me arrependi de ter postado aquilo, aquele texto de tempos quase esquecidos…
Fui à casa de banho antes de ir à cozinha buscar um copo que enchi de Whisky…Lembrei-me do que tinha escrito ontem…Li os comentários…E achei que vos devia uma explicação…
Também a mim eu tive que explicar umas tantas coisas…

2006-09-21

Sonho na última noite de um condenado


Vejo-me numa terra estranha, onde nada nasce…Ou morre…Apenas perdura…Estou só…Ao lado…De lado…A um lado…De um lado…O de cá…O meu lado…Que como lado também é isolado…Foi colocado de lado pelos outros lados…Renegado…Exilado…E no seu exílio levou-me…Arrastado…Pendurado…Pelo pescoço…Por uma corda…Presa a muitas correntes…Que eu não sabia serem tão fortes…Tão resistentes…Aonde se pode ir numa terra estranha…Numa terra de estranhos…???? Não sei!...Nem faço a menor ideia!...Estou confusamente fodido…Á minha volta, na paisagem agreste, ondulam prados rasteiros de incolor desprezo…Estou no meu poste…No meio…Preso…Volto-me para o outro lado…Do poste…E tento dormir…Sem ter de adormecer e acordar de novo nesta terra de estranhos…Como se pode estranhar os estranhos?...Faço-o sem consciência de o estar fazendo…É algo institivo…Destrutivo…Extra negativo… Ultra impositivo…E eu vejo-me nesta terra estranha onde permaneço cativo…Quero sair!!! Onde está a porta de saída…Onde está a luz…Sinto o poste nas minhas costas….Ouço os fuzis a carregar…um cheiro a azedo no ar…Porra, não me consigo lembrar do dia em que nasci…

2006-09-19

Alinhamento teológico

No Templo,
Os Deuses esperam a turba.
Oferendas fenecem nos altares,
Desmedidos manjares,
Almas crentes trucidadas.

No Templo,
A mensagem opalina,
Memória milenar,
É origem e conflito.
Razões profundas do ser,
Nas entranhas do que é molécula, átomo,
Na dúvida e no refúgio.
No Templo,
Cumpre-se a existência!

Nas vertentes nervosas,
Novelos de estímulos,
As palavras de oração são eco
Do eco dos oradores.
No Templo,
As paredes transpiram rumores!

Palavras de fé,
Largadas nos séculos profundos,
Teocracias ocidentais, orientais, medievais….Democráticas.
Na amálgama tudo se confunde.
Etéreo, o cordão umbilical materializa-se,
Revela-se omnipresente.
Orgânica,
A mensagem genética lembra-nos do pânico,
Do medo das noites escuras,
Do desabar dos céus.

No Templo sou uno,
Desprovido de identidade.
Tenho um nome e uma vida
Que reconheço nos mestres.

Não justifico!
Sou justificação!

Adeus alguém que já fui!
Cerrado está o portão para quem não acredita!


P.S. Porque este reacender teológico pode reacender outras questões...

2006-09-15

Suicídio

Atento, o olhar ultrapassa a janela indo repousar no candeeiro do outro lado da rua. Já teve uma vida, preservou-a e cuidou dela até à reforma. Sentado num sofá que não é dele mas que ele ajudou a comprar, está na casa da filha, oferta dos pais ainda a mãe era viva. Sente tantas saudades dela, primeiro vem a imagem, depois uma dor, um aperto e saem as lágrimas e revela-se o choro, os soluços, finalmente secam as lágrimas e fica o gemido, continuo, imperceptível até a memória o agarrar outra vez…Sente-se cansado, um peso nos gestos que o fazem desistir. Olha para fora, para lá dos caixilhos de alumínio que ajudou a escolher, para aquela luz que o chama…Levanta-se e vai…
O baque foi surdo, corpo pesado após queda de trinta metros, sem ruído humano, característica que o assinalasse. Assim se deixou estar até ás seis da manhã, hora a que foi descoberto pelo cão da vizinha, rafeiro intrometido que lhe mijou para cima sem nenhum respeito.


Vai para dez anos que recebe da Segurança Social. Agora com Setenta e três anos, este Engenheiro Químico aposentado, mantém a postura que sempre o caracterizou. De uma organização e disciplina a toda a prova continua a levar a vida demasiado a sério.
Ultimamente apareceram-lhe umas dores, tentou ignorá-las, mas o ardor na zona do baixo ventre fazia-o curvar-se, algo a que ele não estava habituado. Foi ao médico numa segunda feira e fez exames de urgência na terça. Dai até saber que tinha um cancro foi um instante. Chegou a estar internado e foi a seu pedido que saiu do hospital. Quimioterapias sem garantias, operações ao intestino e inúmeras consultas seriam a rotina dos seus últimos anos.
Vestiu o seu melhor fato encheu um copo do seu Brandy velho favorito e sentou-se à secretária. Pegou num papel e na sua bonita caligrafia escreveu um “Adeus Eduarda, sempre te amei.”. Assinou, pegou no frasco de comprimidos que lhe tinha dado um médico amigo e despejou-o num trago etílico. Sentiu os olhos fecharem-se…Ainda teve tempo de balbuciar um adeus antes de partir.


Trinta e cinco anos de trabalho pesado numa rotina que o cansou fizeram dele um homem doente. Não foi o corpo que o traiu, esse sempre se portou à altura, para os patrões e para tudo. Foi a cabeça que fraquejou, uma dor de cabeça que veio com ele do Ultramar e nunca mais o largou, assim como a imagem daquele filho preto de que escondeu de todos, até da sua mulher. Durante anos disfarçou com o vinho e uma resistência anormal à bebida todos os seus pesadelos. A mulher está a trabalhar, hoje chega tarde, depois das onze da noite. Onde estás Idalina que a cabeça hoje estoura-me? Se a Idalina soubesse tinha saído mais cedo, mas não saiu. Quando entrou no seu quarto, depois do ter chamado pela casa toda, encontrou-o deitado na cama. Uma enorme poça de sangue e o cheiro a pólvora denunciavam a tragédia. Abandonada no chão a caçadeira tinha feito a última vontade ao seu dono.


Em memória de todos os meus amigos que desistiram. Aos outros...Não desistam por favor...

P.S. Bom fim de semana

2006-09-13

Primária (E não se fala mais no assunto...)

Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 acordei sobressaltado. A minha mãe não estava na cama, ouvia-a ao telefone. Levantei-me devagar e fui-me chegando. Esperei pelo resto da conversa cujo conteúdo não entendi perfeitamente. Pousou o auscultador sem reparar em mim, entrou na sala de estar e ligou o rádio. Atrevi-me a perguntar “Mãe, o meu Pai?”, abraçou-me e as palavras saíram-lhe num turbilhão, “O pai não pode sair…Tropa à porta da refinaria…Golpe de estado… Revolução…Não te preocupes que o pai está bem!”. Estava com sono e preocupado com o meu pai, no entanto mantive-me em silêncio ouvindo as notícias. Não me lembro das palavras, mas a música era diferente, sim disso eu lembro-me. De vez em quando a minha mãe tentava explicar-me qualquer coisa, repetia as frases do locutor e acrescentava outras, mas para mim só existiam três dúvidas, Quando é que o meu pai volta? O que é um “Golpe de Estado”? Amanhã vou à escola?
Andava na terceira classe. Por essa altura, sentados em carteiras para dois, carteiras de madeira com cavidade para o lápis e aparo e buraco para o tinteiro, estávamos sobre observação continua do Presidente do Conselho, Dr Marcelo Caetano, de Deus, pelo seu filho crucificado Jesus Cristo e do Presidente da República, Almirante Américo Tomás. Só na primeira classe fiquei impressionado. O primeiro visitava-nos regularmente na televisão, sentado num sofá do qual eu sempre quis saber a cor, o segundo só de nome o conhecia e tinha pena de Jesus, daquela sua imagem sempre pregada na cruz, o terceiro lembrava-me vagamente o meu avô e por isso achava-lhe piada naquela farda branca imaculada, uma espécie de capitão Iglo da altura.
Durante a quarta classe e depois das aulas ia distribuir manifestos dos pequenos partidos de esquerda, geralmente à porta da estação. Passei, não interessa como, tive quatro professores em quatro anos e uma revolução de permeio. Lembro-me do nome do meu primeiro professor, Barrocas, do segundo também, Barata, todos os outros se apagaram…
Foi a minha primária, cada um tem a sua e decerto com motivos de interesse, mas por ser a minha agrada-me dar-lhe importância, talvez por isso e ainda a propósito da minha filha, volte a falar no assunto.

P.S. O assunto está encerrado…É uma promessa! Boa semana a todos!

2006-09-10

Voltei ao sistema de ensino através da minha filha




O céu e o mar, o sol e a terra. Debaixo do sol que brinca, a terra olha para cima. Os risos são de crianças e os choros também. Uma mãe que se zanga, um pai atarefado com um bebé de colo deixa cair as chaves do carro e resmunga em silêncio, dois pequenos disputam a entrada numa sala e gritam e riem, depois abraçam-se e deixam-se cair no chão, as educadoras circulam apressadas esperançadas em manter a ordem, arrebanham os miúdos numa mistura de nomes, David, Guilherme, Diana, Rute, Filipe, venham cá, estejam sossegados. Os mais velhos já se separam em pequenos grupos, na sua maioria meninas de um lado e meninos do outro, vá-se lá saber porquê. Os mais novos é tudo ao molho, esses ainda não descobriram as diferenças e caminham em filas mistas atrás das técnicas de apoio. O local é agradável, térreo, com um relvado murado onde se fazem as festas e onde os gaiatos podem brincar. Todas as salas dão para esse relvado através de enormes vidraças e de uma porta, todas menos a dos bebés que providos de outros cuidados necessitam de um espaço isolado. Tive sorte, agradeço à Concha, à Bela e à Rosário terem diminuído o meu enorme sentimento de culpa. Ao fim destes cinco anos agradeço-lhes a enorme saudade que vou sentir. Aprendi muito e conseguimos sair como um grupo, um grupo que representou para eles “A Branca de Neve e os Sete Anões”, um grupo que organizou uma viagem à Eurodisney de modo a que só os adultos que quisessem ir é que pagavam, quermesses, bolos semanais, rifas, desfiles de moda…Não! Eu não desfilei, assim como não fiz bolos nem vendi rifas. Era-me pedido outro apoio, tirar bicas, vender bebidas e bilhetes de entrada, carregar com o que fosse necessário. Cada um deu o que pode, uns mais que os outros é certo, mas isso não tinha importância perante os objectivos conseguidos, todas as actividades a que nos propusemos foram realizadas. Mais uma vez digo Não! Não é um elogio à minha pessoa mas sim a quem nos motivou, lembram-se do meu agradecimento?
"Pai vou sentir tantas saudades da Concha, da Bela, da Rosário, dos meus meninos...", Também eu filha... Vou sentir saudade dessa tua alegria e bem estar recordando esses amigos que também eram meus...Ou quase!
Sim tive muita sorte e espero não a perder no futuro…Parece conversa da treta mas não é! Agora sim é que vão ser elas…Fui à escola P1 várias vezes, até porque voto lá. O local é agradável, não é novo mas está arranjado. As professoras reúnem-se numa sala que dá para uma das portas de entrada do edifício, aquela que nos leva à secretaria. Ouvem-se vozes, pressentem-me e uma delas dirige-se a mim solícita, sou bem tratado, informado do que pretendo, da informação que eu julgo necessária, procurei não ser chato, se calhar até fui rápido demais. Não vale a pena pôr a culpa na ministra da educação, o problema está comigo, sinto-me ansioso e cheio de dúvidas. A resolução do problema, também está em mim e tem sido a que sempre tenho utilizado, segue em frente que o tempo não pára. Isto dito assim parece pouco mas é fruto de um complexo mecanismo envolvendo muitas decisões.
Quem teve filhos com esta idade, a entrar para a primária sabe do que falo.
Voltei ao sistema de ensino através da minha filha…Espero não voltar a desiludir-me…

2006-09-08

Pensando em coisas boas

Acordei para mais um dia de trabalho, banal acção que me levou à casa de banho, à mesa do pequeno almoço, ao carro, mas fiquemos por aqui. O gesto é quase automático e as consequências simultâneas. Dou à chave, expressão que não reflecte o verbo, o motor começa a trabalhar e o rádio liga-se. Sete e trinta da manhã, o resumo noticiado, talvez comprado a uma qualquer agência noticiosa com justificações economicistas, fala de bola, mais concretamente do presidente do Benfica, o “Caso Mateus” vem a seguir…Mudo para o CD que lá havia deixado…Ian Anderson, flauta, a solo, algo de fora dos Jethro Tull…Bom hoje vou esquecer as coisas más…Parece que não vamos cumprir com o défice apesar de todos os esforços…O país continua a arder, parece que cada vez que vamos à praia pagamos uma taxa de Verão em madeira queimada…Vão subir o imposto sobre o alcoól, podes sofrer, mas se beberes para esquecer…Pagas!
Faltam dez minutos para chegar, tenho de pensar em coisas boas…Claro…Tão fácil, ainda ontem adormeci na sua cama.

Pediram-me há tempos, na cresce da minha filha, a propósito de uma encenação para uma festa de finalistas em miniatura, que comprasse umas fitas. Diz o costume, e aqui falo sem conhecimento, que as fitas são distribuídas por pessoas amigas e da família.
Assim o fiz passando desenhos para cada uma delas, trabalho executado a meias com a minha mulher. Todos escreveram qualquer coisa, a minha sogra esmerou-se e fez umas quadras, felicidades, concelhos, desejos, de tudo um pouco. Só faltavam duas pessoas, eu e a mãe. “Gostas tanto de escrever vê lá se escreves alguma coisa de jeito!!”, “Em casa de ferreiro espeto de pau, não é o que dizem?”, brincámos com a situação mas aquilo deixou-me pensativo. Sei que no final entreguei, um pouco envergonhado, a minha fita com uma frase “Gosto muito de ti”. Não me lembrei mais do assunto até ontem. A minha filha começou nos tempos livres, dentro de dias vai para a primeira classe e ontem chegou muito cansada. Com a mãe a trabalhar fiquei com ela até a levar para a cama, deitei-a, “Pai!”, “Sim filha!”, “Ficas comigo até eu adormecer?”, abraçou-me. Senti-me protegido, tudo fazia sentido, “Eu gosto mesmo muito de ti.” E adormeci.

Cheguei a pensar nela, abri a porta do carro e sorri…Assim está bem!

P.S. http://www.petitiononline.com/fiminc/petition.html. Leiam, tem a ver com a especulação à volta dos terrenos ardidos. Talvez seja mais um dos variados motivos para pôr isto tudo a arder. Vale a pena, que mais não seja por tentarmos. Não é justo alguém lucrar com a desgraça e a destruição…Bem isto já toda a gente sabe. Um abraço e bom fim de semana a todos os que por cá passam.

2006-09-07

Não me queimem sou a última!




Sim! Com o caminho que isto leva poderemos chegar à ficção do meu desenho...

(Dedicado à Mana!)

2006-09-04

Homem (oração humana)




Homem de barro, Homem pedra,
Granítico evento.
Aqui vou eu,
Peito quilha,
Cinzento, frio.

Simbiose da terra que me viu nascer,
Aqui estou eu para procriar,
Para celebrar o que vem,
Para chorar o que vai.
Superlativo de mim mesmo,
No limite do que posso,
Eis a minha doação!

Ai se tudo isto fosse verdade!
Se pudesse afirmar que tudo fiz…
Contemporânea agonia,
Histórica culpa…
Adão de seringa na mão…
Eva diz que espera…Hoje.
O que seria a maçã,
Afrodisíaco vegetal
Ou premonição fatal?

Homem corda, Homem fútil,
Multiplica-te,
Gera-te em exponenciais numéricos e
faz de ti próprio as amarras que te hão-de matar.
Deixa-te ser para sempre eterno,
Sempre com medo de olhar,
Sempre com os mesmos medos.

Homem sonho, quanto tempo me resta?...
Homem técnica, Homem luz,
Homem caleidoscópio, dono do bem e do mal,
E de todas as outras cores.
Hoje és exército e matas,
Amanhã és médico e curas,
Fazes a paz para fazer guerra.
Homem silêncio que tudo oculta.
Às vezes tenho vergonha de ti…

2006-09-01

Um conto em três páginas (c)

3ª e última página

Somos despertados por pequenos sinais, algo que os filmes de intriga nos revelam. Vemos, vemos e não vemos nada. De repente algo nos chama e tudo o que em nós pensa se focaliza. Leonel descobriu no meio da marginalidade e do crime duas pequenas fotografias de uma mulher desaparecida dias atrás. O antes e o após, de um lado a trabalhadora, do outro o corpo de uma mulher amortalhado num cenário policial. Da primeira imagem fixou a farda e o cabelo. Passara as últimas horas pintando sobre tela uma figura feminina com as mesmas características, mas de ângulos diferentes. Voltaram-lhe à ideia as perguntas que tinha por fazer, quem são, quem as faz, porquê reproduzi-las, essas mulheres, essas fotografias, qual o objectivo?
O desespero dos últimos tempos deixara-o demasiado magoado para preocupações de superficialidade ética. Acabou o que tinha de acabar, marcou novo encontro e aceitou nova fotografia. Descrever esta fotografia seria repetir a simplicidade das restantes, um quarto, um canto, uma luz sem origem visível e uma figura feminina, sem rosto, embrulhada sobre si mesma. O lado sensual era absorvido pela ausência de pormenores e pelo estático da figura, sem roupa que apenas mostrava a zona lombar e a curvatura das pernas torcidas. O trabalho tornou-se mais pausado, mais pensado, três semanas foi o tempo necessário para entregar a terceira tela. Sentia-se a sistematização dos processos, deixara os aditivos químicos e reduzia-se ao álcool nocturno e a haxixe, que pagava a fornecedores amigos com trabalhos de menor intensidade. Um dia, por volta da sexta fotografia, consegui questionar o professor, “Posso fazer-lhe uma pergunta?”, “Sim!?!?..”, “Quem são elas?”, “Quem!?”, “As mulheres?”, “Possivelmente modelos…Não sei…Não me interessa….Porquê?”, “Porque gostava de saber.”, “Explica-te…Não estou a perceber.”, “Desculpa…Paranóia minha, isto passa …”.
A qualidade do seu trabalho melhorava a olhos vistos e o ritmo foi diminuindo de intensidade valorizando a técnica. Já tinha executado quinze telas quando, e novamente por acaso, se fixou numa coincidência criminal noticiada no Correio da Manhã, “As autoridades presumem trata-se do mesmo suspeito. “, “O assassino em série terá morto quinze mulheres, segundo fonte oficial.”. Nessa edição apareciam fotografias das vítimas, em vida e após vida. Em todas elas as datas de desaparecimento coincidiam com as suas reproduções. Mais à frente falava-se do suspeito como alguém que teria cometido os crimes para executar obras de arte. Nunca o seu instinto funcionou tão depressa. Telefonou para uma amiga em Madrid e arranjou maneira de ela o convidar para uma semana de trabalho, ele pagava tudo. Abalou de camioneta, modo seguro para passar despercebido. Foi lá que soube da rusga ao seu quarto, da certeza das autoridades sobre a identidade do assassino, das promessas sobre a sua detenção. Pediu à sua amiga que ajudava emigrantes Marroquinos para lhe arranjar outra identidade. Durante algumas semanas falou-se no caso em Portugal, tendo-se noticiado inclusive, a apreensão dos quadros das vítimas pintados pelo assassino. O valor desses quadros e após variadas especulações subiu para valores inimagináveis. O actual proprietário que os tinha adquirido ao professor do assassino fazia promessa de se desfazer deles o mais depressa possível.
Leonel Marques, agora Abelâmio Rodrigues, prosseguiu uma vida marginal com uma prostituta de Madrid…E nunca mais ninguém soube dele. Adamantino Gomes é actualmente um nome incontornável no comércio de arte em Portugal.


P.S. Um bom fim de semana!