2006-09-15

Suicídio

Atento, o olhar ultrapassa a janela indo repousar no candeeiro do outro lado da rua. Já teve uma vida, preservou-a e cuidou dela até à reforma. Sentado num sofá que não é dele mas que ele ajudou a comprar, está na casa da filha, oferta dos pais ainda a mãe era viva. Sente tantas saudades dela, primeiro vem a imagem, depois uma dor, um aperto e saem as lágrimas e revela-se o choro, os soluços, finalmente secam as lágrimas e fica o gemido, continuo, imperceptível até a memória o agarrar outra vez…Sente-se cansado, um peso nos gestos que o fazem desistir. Olha para fora, para lá dos caixilhos de alumínio que ajudou a escolher, para aquela luz que o chama…Levanta-se e vai…
O baque foi surdo, corpo pesado após queda de trinta metros, sem ruído humano, característica que o assinalasse. Assim se deixou estar até ás seis da manhã, hora a que foi descoberto pelo cão da vizinha, rafeiro intrometido que lhe mijou para cima sem nenhum respeito.


Vai para dez anos que recebe da Segurança Social. Agora com Setenta e três anos, este Engenheiro Químico aposentado, mantém a postura que sempre o caracterizou. De uma organização e disciplina a toda a prova continua a levar a vida demasiado a sério.
Ultimamente apareceram-lhe umas dores, tentou ignorá-las, mas o ardor na zona do baixo ventre fazia-o curvar-se, algo a que ele não estava habituado. Foi ao médico numa segunda feira e fez exames de urgência na terça. Dai até saber que tinha um cancro foi um instante. Chegou a estar internado e foi a seu pedido que saiu do hospital. Quimioterapias sem garantias, operações ao intestino e inúmeras consultas seriam a rotina dos seus últimos anos.
Vestiu o seu melhor fato encheu um copo do seu Brandy velho favorito e sentou-se à secretária. Pegou num papel e na sua bonita caligrafia escreveu um “Adeus Eduarda, sempre te amei.”. Assinou, pegou no frasco de comprimidos que lhe tinha dado um médico amigo e despejou-o num trago etílico. Sentiu os olhos fecharem-se…Ainda teve tempo de balbuciar um adeus antes de partir.


Trinta e cinco anos de trabalho pesado numa rotina que o cansou fizeram dele um homem doente. Não foi o corpo que o traiu, esse sempre se portou à altura, para os patrões e para tudo. Foi a cabeça que fraquejou, uma dor de cabeça que veio com ele do Ultramar e nunca mais o largou, assim como a imagem daquele filho preto de que escondeu de todos, até da sua mulher. Durante anos disfarçou com o vinho e uma resistência anormal à bebida todos os seus pesadelos. A mulher está a trabalhar, hoje chega tarde, depois das onze da noite. Onde estás Idalina que a cabeça hoje estoura-me? Se a Idalina soubesse tinha saído mais cedo, mas não saiu. Quando entrou no seu quarto, depois do ter chamado pela casa toda, encontrou-o deitado na cama. Uma enorme poça de sangue e o cheiro a pólvora denunciavam a tragédia. Abandonada no chão a caçadeira tinha feito a última vontade ao seu dono.


Em memória de todos os meus amigos que desistiram. Aos outros...Não desistam por favor...

P.S. Bom fim de semana

15 comentários:

pb disse...

Pessoas de coragem, sim porque é preciso coragem para o suicidio. É uma desistencia, sim, mas talvez, um derradeiro acto de dignidade !! um abraço P e bom fim de semana

Miguel Baganha disse...

Permite que brinde, "com um trago etílico" áqueles que já não voltam...

Só pra te dar um abraço, Paulo... Lêr-te é sempre um prazer.

Uma música: " Mesa de bar "
( Alcione/Ed Motta )

- Um grande Bem-haja para os que não desistiram...!

Bom fim-de-semana,

Miguel

muguele disse...

Coragem ou desespero? Às vezes confundem-se, esses dois!

Rocha de Sousa disse...

Agora não se trata de falar sobre o seu excelente blo, que até já co-
mentei nesta usura de espaço. Queria, porque não sei o seu ende-
reço mail, agradecer-lhe as suas palavras pela morte de meu irmão.
Um grande abraço solidário
Rocha de Sousa

Anónimo disse...

Meu amigo
é bom ver que os meus pensamentos,
dao esse efeito.
olha quando duas pessoas se amam
nao deve existir tabus
e sim deixar o amor crescer.
desejo te um bom fim de semana e convido te a visitares o nosso blog meu e do meu amor.
deixo te o meu
:))))))))
beijooooooooo




ah axo que sabes que sou a sensualidade

Suga_Mentes disse...

Na minha constituição pessoal , o direito de escolher onde e como , pareceu-me sempre tão natural que acho que nunca sequer o questionei , por outro lado a historia que até hoje mais me fascinou foi a de Sisifo , condenado a uma tarefa inutil por toda a eternidade , pelo seu amor incondicional á vida , também nunca foi dado adquirido quem se suicida nao ame a vida , eu condordo com o pb , um acto de coragem e dignidade , isento de criticas ou juizos exteriores , talvez a unica vez na vida em que tomamos uma decisão de consciencia

P. Guerreiro disse...

O tema é polémico...Eu sei...
Ainda há bem pouco tempo, e a propósito da minha tia, eu defendia que pessoas com doenças vegetativas pudessem decidir do seu futuro antes de chegar ao ponto sem retorno. Ainda hoje o defendo mas nas devidas condições, sem violência, de uma forma assistida.
Cada caso é um caso e cada um de nós tem o seu ponto de rotura, o seu código de ética e em ultima analise, a sua religião.
No sul do pais, principalmente no interior, os mais velhos sentem necessidade de partir, de serem eles a decidir.
Será com certeza um acto de coragem, o momento em que se carrega no gatilho, em que nos lançamos no vazio, em que tomamos os comprimidos.
Mas é com certeza a desistência sobre um futuro que não se mostra afável…Bem pelo contrário…
Durante o começo deste ano e no espaço de um mês suicidaram-se três pessoas minhas conhecidas.
Em todas elas o acto foi premeditado, em todas elas encontrei coragem e desistência.
A vida não é feita de certezas nem de actos totalmente louváveis ou reprováveis…Sei que tive pena…Deles e dos que ficaram…Pensei no assunto e representei três situações plausíveis em que o sim e o não estão de mãos dadas, sem julgamentos.
Um bem haja para todos!

Anónimo disse...

Boa noite

penso que não é linear. Por vezes é puramente impulsivo.

Noutras nem desistência é. Se nada há (para a pessoa em questão, encurralada, como os animais que se encontram encurralados), mais vale o suicídio que a tortura.

Não estou a defender, estou só a explicar outro modo de ver.

E explico porque já tentei duas vezes impulsivamente e nunca premeditado.

Boa noite

P. Guerreiro disse...

Como eu dizia, cada caso é um caso. No caso de ser impulsivo é muito mais perigoso, não deixa margem de manobra à reflexão...Bem se a tentativa sai gorada existe sempre hipótese de se pensar no assunto depois.
Tendemos sempre a olhar para este assunto com os nossos olhos.
Embora não seja grande apreciador do autor, o livro "A veronika decide morrer" de Paulo Coelho apresenta uma perspectiva interessante do assunto.
Quanto a mim mereçe o tempo que se leva a ler.
Obrigado a todos pelos comentários...
E ao último pelo caso pessoal apresentado, embora anónimo, o desejo que essa impulsividade não se imponha á razão.

Luna disse...

Penso que alguem que põe termo á vida , se deve de sentir completamente perdido, e magoa-me sentir isso pessoas que viveram a lutar por algo e ao fim simplesmente desistem, mas é a vida a dura vida que nos rouba até ,o sopro da existencia
beijos

Suga_Mentes disse...

Quero deixar claro que quando referi o suicidio , nem sequer pensei naquele que é cometido impulsivamente , se é que esta palavra se adequa á situação , ninguem tenta o suicidio impulsivamente , creio que impulsivamente esta a ser utilizado aqui para referir situaçoes nao relacionadas com doenças terminais ou do genero , calculo que impulsivamente aqui queira dizer uma pessoa sentir-se tao mal que nem se quer dar ao trabalho de longas
reflexoes , sinceramente suicidio e impulso nao me parecem ligar mutio bem .
Calculo que o anonimo seja bastante jovem , " suicidios impulsivos " nao acontecem a partir duma certa idade , a primeira coisa que me veio á cabeça ao ler o seu texto , foi que deve ser uma pessoa muito corajosa , tentar o suicidio é dose , repetir nao é para qualq

Suga_Mentes disse...

qualquer um , e confessa-lo publicamente , mesmo que de forma anonima , exije tambem muita coragem .
Se o Sr anonimo me permite uma modesta opiniao , acho que esta a canalizar mal as suas energias , existem tao poucas pessoas corajosas neste mundo que nao nos podemos dar ao luxo de perder nenhuma ...

O Lápis disse...

Quando a esperança não resiste...

Resistamos, nós, sempre!

Anónimo disse...

Consigo compreender o impulso...

a dor que estala os sentidos.
o não querer mais sofrer.
Sentir.
Saber.

Nunca o tentei, mas compreendo tão bem...

Anónimo disse...

Para Goethe o suicídio não nega a dignidade da pessoa humana.
Para o filósofo Albert Camus: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo"
Para Nietzsche, Goethe e Schopenhauer:“O suicídio traduz-se no maior conforto na vida”.
Para mim, colega blogueiro: a autoeutanásia.
Sou um cineasta tradicional e estou finalizando um roteiro cinematográfico sobre o assunto em questão: MORRENDO AOS POUCOS EM COPACABANA. Fascina-me sobremaneira a idéia que nos leva ao suicídio. Afinal, somos todos, de certa forma, suicidas em potencial.Uns se encorajam e assumem o ato, outros... morrem de velhice antes de concluírem seu desejo de "vida".
Honraria-me sobremaneira que o amigo lê-se o roteiro, formulando, se assim lhe convier, é claro, idéias e textos a respeito. Gostei muito de suas análises e conceitos sobre.
Abraços
Carlo Mossy