2023-08-20

O sarampo? Não foi só o sarampo.

 Bom dia Dr., cá estou eu outra vez. Tudo normal; as pernas de arrasto, o corpo mais magro, a mão esquerda trémula de gestos e a cabeça projectando-se num futuro que não está longe. Fui ao fisiatra para uma avaliação. Prescreveu-me três seções semanais de fisioterapia. Sim, deveria estar contente mas o problema é que em agosto tudo pára e já não há lugar para mim, talvez em setembro. Bem, na prática ficou tudo na mesma e eu vou tentar que ELA também tire o agosto de férias. Não será fácil, mas bem conversadinha é capaz de resultar.

Devíamos ir mais para trás? Acha mesmo que vale a pena? E quão longe quer você que eu recue? Até às primeiras lembranças? Ok Dr. vou fazer um esforço...

Sempre aquele pátio interior e eu sentado no poial de entrada com um bocado de plástico amarelo moldado de forma a assemelhar-se a uma pequena camioneta de caixa aberta. A minha mão é pequena mas  a pequena viatura encontra nela o espaço suficiente para se posicionar. Olho-a de cima e com a mão disponível coloco-a no poial junto a mim. Arrasto-a com a mão simulando o movimento causado por um motor. Ali perto, na estrada, os automóveis passam numa cadência constante. É de dia e estou sozinho. Não, nunca tive oportunidade de confirmar a vericidade desta memória. Certo é que nunca consegui apagar esta imagem.

Procuro o primeiro carinho sem o encontrar. No entanto estou certo de terem acontecido momentos em que eles estiveram presentes, o primeiro e todos os outros. O rés do chão, já na Amadora, era uma casa vazia com tacos de madeira. Eu corria e deixava-me cair de joelhos deslizando pelo corredor até ao wall de entrada. Paulo Jorge, não faças isso que ficas mal. Seriam essas as palavras? E proferidas por quem? Possivelmente pela minha mãe.

Da cama e do sarampo também tenho muitas imagens. A cama que, durante o dia, recolhia para dentro de um móvel que se prolongava ao longo da parede como uma estante. De lá também saia uma escrivaninha. Na parede oposta repousava um sofá com braços de madeira. Os assentos eram castanhos, de um castanho que me ficou marcado na memória como sendo a cor de um Ford Cortina que estacionava lá na rua. Mais tarde o assento do sofá foi tapado com uma manta de lã que a minha mãe tricotou com várias cores. Ela comprava as meadas de lã e eu ajudava-a a fazer os novelos. Segurava a meada com os braços esticados e as mãos por dentro mantinha-a esticada. Conforme a minha mãe principiava a fazer o novelo eu oscilava os braços para a esquerda e para a direita permitindo ao fio um deslizar regular que fazia o novelo crescer. De vez em quando eu invertia o movimento só para ter o olhar reprovador da minha mãe nos meus olhos.

O sarampo? Não foi só o sarampo. Foi o sarampo, a papeira, a broncopneumonia, a varicela, as crises de asma, as gripes e as constipações. Por essa altura também fui operado aos adenóides e às amígdalas. Eu falo do sarampo porque, na altura, era uma doença que metia respeito às jovens mães. Dizia-se que podia provocar lesões permanentes e a minha mãe ficou muitíssimo preocupada quando eu o apanhei. Havia a convicção de que a luz vermelha ajudava na cura da doença, por esse motivo, todas as luzes do meu quarto, foram forradas com papel celofane dessa cor. O quarto ficava com um ambiente estranho e os livros de bonecos adquiriam uma coloração avermelhado que lhe conferia uma áurea de mistério. Por essa altura o sangue era encarnado, da cor das camisolas do Benfica, das quais só tinha conhecimento pelos cromos da caderneta de futebol, e não havia vermelho. A guerra? Ouvia os meus pais falar e sentia a sua preocupação quando olhavam para mim.

Já chegou ao fim Dr. ? Bom, então até para a semana.


2023-08-12

Morte assistida, suicídio, ou sofrimento em nome de um ideal de moralidade

 Não, hoje não consegui consulta e contento-me com a simulação digital numa folha de papel. Porquê o tema? Bem, desde outubro do ano passado que este é um tema recorrente, ELA assim obriga. Algo foi aprovado na assembleia da republica sobre o assunto e muitas das questões que se colocaram estão relacionadas com a ética e a moralidade. Muito se falou dos médicos e dos profissionais de saúde a quem competiria executar o acto clínico, da constituição e do direito à vida, da religião, que sem direito de veto, continua a exercer pressões para lá do que seria admissível num estado laico, e dos partidos políticos, alguns dos quais pretenderiam referendar o assunto. 

Um dos argumentos utilizados, para além dos conceitos morais e ideológicos e atenção, espantem-se caros leitores, temos o comunismo, a igreja católica e um partido, apelidado de extrema direita pela imprensa da especialidade, comungando de igual condenação, muito embora por razões aparentemente diversas, dizia eu que um dos argumentos utilizados contém em si uma racionalidade perversa, a de que o estado deve providenciar todas as condições às famílias, aos cuidadores informais, às instituições que se dedicam ao árduo trabalho de manter vivas pessoas que já não se mexem e que muitas vezes só existem para satisfazer o egoísmo de familiares pouco interessados em saber a sua opinião. 

Ser prisioneiro de um corpo não é para todos. Há quem goste, quem deteste, quem se habitue, quem não suporte, quem nunca mais se consiga identificar com alguma coisa, por outras palavras, há gostos para tudo, mas, acima de tudo, há muito sofrimento.

Ser um fardo, quer seja assumido ou não por quem nos carrega, é algo que alguns de nós não conseguimos esquecer. Para essas pessoas a morte assistida  ou o sofrimento em nome de um ideal de moralidade, não são opções válidas. Para essas pessoas a espera caridosa por direitos escritos e não cumpridos não é solução. Ái que boas as intenções dos nossos governantes, nem por aqui vou, caminho obtuso, relatar a ansiedade de quem precisa, pede e lhe pedem para esperar, mesmo quando não há tempo e a solução passa pelo investimento particular (imagino o sofrimento de quem não tem).

Ser um fardo é ser pedinte. Precisar e ter medo de incomodar...desculpe eu ser assim, não tive culpa, aconteceu...

Numa fase terminal, tendo admitido que morte assistida é imoral, que o suicídio é pecado ou que não não se está preparado para partir, resta um corpo imóvel agarrado a uma cadeira e uma mente que se mantém activa sem nada para comandar. E chegado a este ponto meus amigos, nem todos sofrerão da mesma maneira, nem todos verão recompensada a sua lealdade para com o principio sagrado da vida.

Mas uma coisa é certa, assistida ou não, ela acabará por chegar e, em última análise, enquanto houver ação a decisão será sempre pessoal, seja ela difícil ou não.

Alerto para o facto de este texto conter em si uma reflexão filosófica sobre o assunto. Talvez o que o distinga de muitas outras considerações seja a legitimidade com que ele é escrito e à qual não admito contestação.

Nota: Este texto tem como referências a aprovação de uma lei, as palavras do Papa, a hipocrisia partidária e, na prática, os que discutem sem serem, verdadeiramente, a parte interessada. Esta história de que conheço pessoas, ou que tenho familiares próximos, ou qualquer outra coisa parecida, não conta. Por muito que doa estar perto não é estar dentro.


2023-08-09

Eu não sou Cristo, não tenho nenhuma mensagem para deixar...

 Está calor. Está muito calor. É de noite e está muito calor. É de noite, está muito calor e o termómetro marca 24ºC depois de uns sufocantes 39ºC durante a tarde. Tenho dificuldade em mexer-me na cama. Os lençóis queimam e a ventoinha de plástico não consegue diminuir a grossura das veias nas minhas mãos. Ontem arrastei-me até à casa de banho onde mergulhei as mãos em água fria e molhei o peito, as costas e a  nuca. Quando voltei para a cama já estava seco. Hoje a D. deixou-me uma garrafa spray com água de uma marca conhecida. Borrifo-me várias vezes mas não consigo estabilizar a temperatura do meu corpo. 

Olho para o relógio que me deram, uma preciosidade da tecnologia que me permite monitorizar, entre outras coisas, a percentagem de oxigénio no meu sangue. Consideram-se valores bons qualquer coisa entre os 95%  e os 100%. Valores abaixo de 90% são maus. Olho para a porcaria do relógio todas as manhãs apenas para descobrir que os meus níveis de oxigénio no sangue descem durante a noite e estacionam teimosamente nos 88%. Haverá espaço para colocar uma garrafa de oxigénio junto à mesa de cabeceira? Já houve tempo em que outras garrafas velaram o meu sono.

A D. diz-me que eu devo escolher os livros a peso. Expliquei-lhe que gosto da companhia de um bom livro por mais de um mês. Geralmente escolho-os para ler na cama. São trinta e tal dias de companhia, à qual me habituo ao fim de uma semana, e da qual sinto saudades quando acaba. Pelo meio, na sala, leio amigos mais pequenos. Já pensei comprar um suporte de leitura...para me ir habituando. Quem primeiro me sugeriu a ideia foi o Dr. V.J. Penso que não resolve o problema para todos os livros porque alguns teimem em fechar-se mal se libertam da pressão dos meus dedos. Força-los seria ferir-lhes a lombada, deixar a a minha marca no seu lombo, mostrar que os domestiquei.

Acabaram as jornadas, duram os incêndios e começa o futebol. Entre os recordes de temperatura, Marcelo e Costa tiram proveito do sucesso da missão JMJ. Francisco foi igual a si próprio, uma lufada de ar fresco perdida na hipocrisia de uma Igreja que se tenta actualizar mas há temas que continuam a doer. A morte assistida é um deles. Perguntam sempre a opinião às pessoas erradas...

Assumo a minha fé cristã. Mais do que em Deus eu acredito no Cristo-Homem, Cristo-Revoltado, um Cristo-Social que nos inventou iguais para nos apresentar ao seu Pai. Também ele teve uma morte assistida quando se deixou crucificar. Podia ter evitado a cruz, mas não o fez. Decidiu-se pelo sacrifício e inventou-lhe um significado. Foi esse o seu testemunho e por esse motivo adoramos a cruz. Eu não sou Cristo, não tenho nenhuma mensagem para deixar e gostaria de morrer sem sofrimento mas com dignidade.

O relógio da cozinha está a precisar de pilhas outra vez. Já pensei em deixar que os seus ponteiro se imobilizem para sempre numa ilusão de imortalidade, apenas desfeita duas vezes por dia, mas a ideia não agradou à D. e eu tive de concordar com ela. Afinal ainda precisamos do relógio da cozinha, nem que seja para constatar, todos os dias da semana, que estamos atrasados para o trabalho, ainda por cima eu não posso correr...

2023-08-05

Atualização manual; a linha base da lucidez...

 Bom dia Doutor. Já há algum tempo que eu não venho cá e estava a precisar de falar. Podia ter telefonado? Eu sei, mas achei melhor esperar pela consulta que tinha marcado. Sabe Doutor, eu preciso de digerir o que vai acontecendo. Cada dia que passa apresenta-me um número infinito de desafios. Cada ação é uma batalha cuidadosamente preparada. Cada gesto é minuciosamente cálculado. Nunca posso baixar a guarda.

Fui ao médico para preparar as coisas e informar-me sobre o meu seguro de saúde. Ficou espantado por ainda me encontrar a trabalhar. Queria dar-me baixa. Enfim, lá lhe expliquei que preciso dessa rotina para me manter são. Para já vamos adiantar o processo de modo a obter a reforma por invalidez, são coisas que demoram tempo e precisam ser tratadas atempadamente. As análises que me mandou fazer estão uma merda. Desculpe Doutor, mas a palavra é mesmo essa. Receitou-me mais comprimidos...estou nuito doce. Qualquer dia tenho abelhas ao meu redor recolhendo nectar do meu corpo, levando o meu polén para lugares distantes. Pergunto-me a que saberá o mel fabricado a partir do meu nectar.

Fui a Santa Maria a semana passada. As informações que me dão não são novidade para mim. Pior das pernas, pior da mão esquerda, os pés a recusarem mexer-se, o diafragma a ficar preguiçoso durante o sono,  a evolução, que eu gostaria mais lenta, tem vida própria. Receitou-me vitamina B. Parece que chegaram à conclusão que faz bem. Mostrei-lhe as análises, os açucares elevados, as gorduras a subir, o figado a ceder, um sem número de anomalias a juntar à anomalia que eu sou. Disse-me para eu não me preocupar com as gorduras. O facto de ter os valores elevados até que é bom, pormenores desta doença. Só preciso de controlar os açucares.

Finalmente vou a um fisiatra. Decidiram que eu preciso de fisioterapia especializada e passaram-me uma credencial. Entretanto a APELA contactou-me. Parece que também querem fazer-me uma avaliação. Se me agrada? Penso que sim, funciona como uma espécie de droga, mas cujo o efeito é, temporalmente, muito reduzido. Quando cheguei a casa já tinha passado. Sabe Doutor, agora estou sempre à espera de qualquer coisa, boa ou má. O melhor é esperar sentado. Rio-me da ironia desta frase...por enquanto ainda consigo rir-me.

Estou a ler "O Homem Revoltado" de Albert Camus. Já leu? Sim? Era de esperar. As interrogações e as linhas de raciocinio que lá estão esplanadas são, de alguma forma, universais. O Homem, Deus, qual o significado da minha existência. São coisas boas para distrair mas não acrescentam nada ao meu quotidiano. Não me entenda mal Doutor, eu estou a adorar o livro, fez-me até ler alguns filosofos que me passaram ao lado. 

Por enquanto ainda consigo abrir um livro. A mão esquerda tem dificuldade em passar as folhas. Por cada uma que viro obtenho uma vitória. Ainda tenho tanto para ler. Escrever? Deixou de ser um objectivo. Não sei porquê mas as palavras deixaram de ter importância. Desculpe Doutor, eu não me estou a fazer entender. O que se passa é que eu já não procuro uma escrita cuidada, bem estruturada gramaticalmente, com adjectivos preciosamente escolhidos, joias de prosa sem valor, poemas que qualquer IA pode imitar.

Será que as palavras esculpidas em marmore de dor também podem ser imitadas. A base de dados de todo o sofrimento humano. Ó máquina divina, dá-me ai um soneto com a dor d'ELA no meu corpo, estilo Cesário Verde. Porquê Cesário Verde? Porque também ele morreu de doença, novo. Talvez assim as palavras gritem de dor bem fingida.

Às vezes pergunto-me, para que serve a inteligência biológica? Só a Moral nos impede de morrer, tudo o resto é acessório. Moral, palavra turva, manifestamente filosófica, encantadoramente ambigua. No dia em que ensinarmos à máquina os conceitos morais que presidem ao julgamento das acções, deixaremos de ser necessários.

Sim Doutor, eu sei que me estou a desviar do assunto que doi, mas, porra, acho que tenho o direito de me iludir, cobrir-me com uma manta e olhar pela nesga, que mantenho com a mão direita, para o mundo lá fora. 

Já acabou Doutor? Eu hoje estiquei-me um bocadinho, eu sei. Mas isto é mesmo assim, há dias que dói mais e o tempo nunca chega para dizer tudo. Até para a semana Doutor e obrigado pela paciência.

No ecrã a placa anuncia o que se espera por detrás do processador...Dr. Blogue...