Tropeço em imagens de morte
Estou sentado na
minha sala de estar.
A televisão está ligada
em sintonia com a desgraça.
Uma mulher
desapareceu sem deixar rasto.
Um homem morreu após
um grave acidente.
Tudo num formato
decente,
Largado de forma
inocente
Num tom de branda
ameaça.
Alguns milhares de
crianças ensombram o Natal
Morrendo debaixo de
fogo inimigo.
Qual terá sido o
pecado para merecer tal castigo?
O homem de fato
aprumado
Passa o assunto à
mulher que,
Com aspeto asséptico,
Continua com as
mortes do dia.
Será o mesmo se eu
ligar a telefonia?
Procuro outro canal,
Uma outra informação,
Uma calamidade
meteorológica
Que me faça sentir
culpado
Da forma negligente
como consumo.
Dedilho o jornal
digital
Num artefacto chinês.
A maçã que traz no
rosto
Não denuncia quem o
fez
Mas os mortos são idênticos
E os rostos que os
nomeiam
contam sempre a mesma
história.
São crónicas de
cruzes e estrelas,
Quartos de lua
sumidos.
São deveres assumidos
Pelos pais de nobres
nações.
É o direto de matar
porque sim
É o direito de morrer
porque não.
Afinal quem tem
razão?
É sempre quem tem a
arma na mão.
Tropeço nas
trincheiras da guerra
No século de todas as
esperanças.
Marte lá longe à
nossa espera
E todo esse
conhecimento que recebemos.
Dados incalculáveis
Computáveis,
E, no entanto,
Tão vulneráveis.
Estou sentado no meu
sofá,
junto à árvore de Natal
E tropeço nos mortos
que enchem o meu ecrã.
Não sei quantas
polegadas de horrores
Que, de tão
distantes,
Reconfortam do frio.
A sala fica mais
quente,
Tudo pior do que
dantes,
Mas a alma mais
dormente
E o meu corpo mais
ausente.
Agora um tiroteio num
restaurante,
Uma facada junto ao
rio,
Um atropelamento
casual
De um velho
navegante.
Uma criança abusada,
Um bebé desmembrado
Por um pai atarefado
Que só a queria
calada.
Tudo muito composto,
Tudo muito bem
arrumado,
Durante hora de
jantar.
O famoso horário
nobre.
A morte servida entre
quinze minutos de vendas.
Vem cá que eu não te
aleijo meu bombom de chocolate.
Com uma corda ao
pescoço davas um enfeite de Natal,
Amarrado pela
cintura, um arranjo floral.
Tudo tão simples.
Os mortos lá longe e eu
quentinho na cama.
Com um novo pijama e
Uma lareira
ecológica.
Como desafiar esta
lógica?
Tudo tão comedido
Tudo sempre no mesmo
sentido.
Seis décadas que só
me fazem tropeçar
Em imagens de morte.
E o homem fardado a
dizer
Que não irá parar
Que enquanto alguém
respirar
Enquanto houver
alguém para morrer
A bomba irá explodir,
A granada irá
detonar,
Haverá metralha no ar
E razões para sorrir.
E o Natal que virá
Será apenas mais um
Para fazer acreditar
Que na mesa comum
Uns comem até fartar
E outros fazem jejum.