2023-09-09

Blá, Blá, Blá...

 Doutor , há quanto tempo. O que tenho feito? Rotinas doutor, rotinas que justificam a minha existência e me ajudam a passar o tempo. Agora agarro-me a detalhes e retiro-lhes significados. Ainda ontem, à hora de almoço, tive uma discussão sobre futebol. Não foi bem sobre futebol, porque de futebol hoje ninguém fala. Falámos do tempo extra dado pelos árbitros, das faltas simuladas, do video árbitro, das reações dos  comentadores, das redes sociais, do dinheiro das transferências, blá, blá blá. Com quatro jornadas disputadas o assunto afunila-se em desconfianças e rancores, ingredientes indispensáveis a uma eterna e saudável polémica. Que bom poder desfrutar de uma conversa inconsequente e inócua. Espero sinceramente que este ambiente de guerrilha permanente continue a minar o futebol português. Sem ele éramos obrigados a falar de táticas, de escolhas, do jogo jogado no relvado...de futebol.

Não Dr., não foi para isso que cá vim. Tinha um trabalho de casa? Ha sim, pois tinha. Não escrevi nada mas tenho tudo na ponta da língua, melhor dizendo, na extremidade da memória. Não Dr. não me vou perder na semântica. Sabe Dr., após as doenças veio a bonança e a revolta. Comecei a viver depois do vinte cinco de Abril e no verão quente de setenta e cinco andava pela rua distribuindo panfletos dos pequenos partidos de esquerda cujas sedes, em apartamentos contíguos a habitações familiares, estavam sempre abertas a putos como eu, que ferviam de excitação com a agitação continua desses tempos. Não, não tinha ideias políticas mas apercebia-me do ódio que, depois de uma primeira fase florida, com cravos, abraços e cenas assim, crescia nas ruas. Gostava particularmente do MES (Movimento de Esquerda Socialista), a bola vermelha (agora o encarnado era perseguido) com a estrela amarela como promessa de liberdades que eu não conseguia imaginar, aqueles jovens adultos de cabelo comprido sempre tão simpáticos para os putos. Não tenho a certeza, mas penso ser dai a minha primeira paixão.

Sim Dr. era feliz, era mesmo muito feliz. Saia da escola, chegava a casa, e largava a mochila para sair logo de seguida. Rua, rua, rua e mais rua. colavam-se e descolavam-se cartazes a pedido. Era um trabalho nocturno que envolvia um certo risco, dependendo do número de participantes dos grupos envolvidos. Para alguns era uma forma de vida, muito mais do que uma motivação político. Por essa altura não se respeitava a autoridade. A bem dizer a única autoridade que eu respeitava eram as patrulhas dos Comandos que circulavam pela Amadora. Encontrava-os muitos vezes no "Lami", um café com matrecos e jogos de flippers. Olhava-os com respeito e admiração. O cabelo comprido, que saia por debaixo da boina vermelha, a G3 encostada à cadeira,  o cigarro ao canto da boca e uma cerveja na mão faziam parta da imagem de marca desta autoridade revolucionária.

Não Dr., as coisas não estão fáceis. Se tenho pensado muito no assunto? Todos os dias eu penso no assunto mas não lhe dedico muito tempo. Estou focado e sei o que tenho que fazer, assim como sei o que farei quando chegar a altura. Durmo bem graças a Deus. Às vezes não adormeço logo mas não tem a ver com falta de sono. Sabe Dr., eu gosto muito de ler e às vezes abuso um bocadinho. Já chegou a hora? Então até para a semana Dr.

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