2023-09-03

E os dias de espera

 E os dias de espera? O que têm eles? É mais o que não têm. Falta-lhes ritmo, melodia, o silêncio no tempo certo. Falta-lhes a cor que define o tempo, a pincelada que revela os objectos. Falta-lhes a serenidade da tua companhia nos dias em que a sobrevivência te requisita para funções de mera sobrevivência.

O cadeirão tem um sistema eléctrico que permite elevar as pernas concedendo repouso a esses membros preguiçosos. Talvez esteja a ser duro ao adjectiva-los desta forma, mas a verdade é que eles pouco fazem do que eu mando. Quando estou sozinho é mais difícil. Os movimento tem de ser estudados e os percursos definidos com antecedência. O que primeiro procuro num destino é a acessibilidade. Todos os objectivos passam por um crivo rigoroso, uma checklist com itens inegociáveis. O cadeirão também me ajuda a levantar. Sentado no meu cadeirão eu sou Rei.

E os dias de espera? O que têm eles? Têm de tudo; o levantar, a casa de banho, a bacia e o chuveiro, e isto só para começar. Achas pouco? Sabes lá tu o trabalho que isto dá. Depois há o secar-me, o vestir-me, tudo com muitas hesitações, tudo muito bem pensado, os gestos lentos procurando coordenação, a cabeça procurando a mensagem certa que devolva o resultado pretendido e eu de lado apreciando o esforço, preparado para aplaudir, boa Paulo, és o maior, e sabendo que não sou. 

A cadeira que me faz descer ao rés do chão também é eléctrica. Sento-me nela com cuidado. Fecho-lhe os braços, aperto o sinto e, com o manipulo na mão direita, vou correndo pelas escadas abaixo. Adoro a palavra "correr", adora a forma como ela escorre da minha boca, os "R's" ressaltando na minha garganta procurando fugir por entre os dentes cerrados. A chegada é acompanhada por um sinal sonoro: Não sei porquê mas faz-me lembrar os eléctricos em Lisboa. Havia um que ia para Santos, para a Escola Profissional Fonseca Benevides, eu sentado junto à janela, atordoado pelos compostos químicos que me devoravam a consciência. A cadeira é o meu transporte favorito, leva-me de cima para baixo e de baixo para cima, permitindo circular entre os meus reinos. Adormeço perto do céu e alimento-me junto à terra. Se existe simbolismo nesta merda? Talvez, mas não lhe dou muita importância.

E os dias de espera? O que têm eles? Têm de tudo um pouco; o pequeno almoço servido pelo melhor ser humano que conheço, os comprimidos dentro da fruteira - já teve fruta lá dentro mas agora dá mais jeito ter as lamelas de comprimidos, é preciso agilizar - , a taça com iogurte, frutos vermelhos e muesli, o café e  um copo de água, o cigarro electrónico fumado à porta de casa agarrado ao andarilho. Ainda só são nove horas da manhã e já consegui tanto. Os dias de espera são todos, e para que continue a esperar tenho tanto que fazer...


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