2007-10-25

O Automóvel VII

Não dormiu no Hospital. O médico de turno conhecia Xana. Recomendou-lhe atenção. Muito embora os exames comprovassem normalidade, os inchaços na cabeça do Zé eram motivo para preocupação.

-Se ele se sentir mal, vomitar ou tiver dores de cabeça promete que me telefonas.
-Prometo!
-Eu não estou a brincar Xana.
-Eu também não senhor doutor, Jorge.
-Continuas sem juízo nenhum.
-E tu continuas com ele todo.
-Terá sido por isso que me recusaste?
-Não! É por isso que eu gosto de ti.
-Sempre com resposta pronta.
-Sabes como eu sou, não gosto de guardar nada para depois.
-Eu sei.

Jorge sentou-se por detrás da secretária. Xana fixou nele o olhar. Sentindo-se incomodado apressou a receita. Ela sempre o intimidara, desta vez também não foi diferente. Estendeu-lhe o papel quase sem levantar a cabeça. Só depois de sentir o ligeiro puxão e ouvir um sorriso demasiado feminino, o sorriso de Xana, teve coragem para a enfrentar novamente.

- Sabes qual é a farmácia que está de serviço?
- Não deve ser difícil encontrá-la. Das três há-de ser uma.
- Tem cuidado. Tu nem conheces o fulano.
- Nem preciso. O destino cruzou-nos, ele precisa de ajuda e eu vou ajudá-lo. Depois de amanhã desaparece daqui dizendo que o trataram bem e eu fico muito satisfeita.
- Estás a ser irónica.
- E tu estás a ser ciumento!

O tom de voz da Xana foi demasiado para o Jorge. A xana já não ouviu o pedido de desculpas que Jorge lançou no vazio do gabinete. Longas seriam as horas até sair de serviço. Vai-te lixar Xana!
Xana já levou o Zé para o exterior, para o pequeno parque de estacionamento mesmo junto às urgências. O Zé sente-se tonto e vai amparado na mulher, lembra-se da mãe, também ela tem os seios grandes, talvez por isso se sinta tranquilo. Xana ajudou-o a subir para o Jeep.

- Estás bem?
- Estou. É longe a tua casa?
- Não! Daqui a um quarto de hora estamos lá.
- Posso fechar os olhos?
- Preferia que fosses com eles abertos, pelo menos até chegarmos.
- Percebo, não queres chegar com um morto a casa?

O tom de graça fê-los rir.

- Olha , olha, também sabes rir.

O Zé já tinha fechado os olhos. Tinha a respiração pesada. Os tranquilizantes ainda estavam a fazer efeito. Xana olhou para ele e decidiu ir directo para casa, mais propriamente um monte, uma série de casas baixas distando alguns quilómetros da estrada principal.
Foi o ladrar dos cães que acordou o Zé.

- Onde estou?

(cont.)

Quinze anos depois - Outubro

Decidi arrumar a garagem, que no meu caso não serve para arrumar nenhum carro. Entre bicicletas, bolas de basquet, máquina de lavar roupa, arca frigorífica, uma mesa de actividades e muito mais coisas, encontra-se um móvel onde vou colocando o que não me cabe na sala. Dentro dele encontrei rastos na minha vida, passo a explicar. Sempre gostei de coleccionar revistas. Quando mais novo comprei a revista semanal “Tintin” onde o Vasco Granja me ensinou a gostar de Corto Maltese, do Tenente Blueberry, de Bruno Brazil e a sua brigada Caimão entre muitos outros. Já mais velhinho, em 82, acabado de fazer a prova oral em francês do 11ºano, comecei a comprar a revista Rock & Folck, francesa, hábito que só larguei nos anos noventa. Em noventa e dois rendi-me à irreverência do estilo do Miguel Sousa Tavares que imprimiu, aliada a um excelente cuidado gráfico, à Grande Reportagem uma imagem de marca que quase aguentou a sua saída. Tenho a década de noventa em Grandes Reportagens guardadas na garagem. Porque estamos em Outubro aqui vão algumas das actualidades de 92, já lá vão quinze anos.

No Editorial, Miguel Sousa Tavares afirmava num texto intitulado “Regresso à barbárie”.

“que Europa é esta, que Nova Ordem Internacional é esta, que assiste inerte à selvajaria que todas as noites nos é servida em casa pelas imagens da televisão? Enquanto a Europa discute se há-de ou não viver com o tratado de Maastricht, para depois ter uma política externa e uma política de defesa comum que lhe permitirão (dentro de três ou quatro anos) intervir em situações como a da Bósnia,”

Na secção “As coisas que eles dizem” aparece uma citação de D. José Policarpo, à altura bispo auxiliar de Lisboa e Reitor da Universidade Católica, retirada do semanário Expresso (edição de 12 de Setembro de 92). Assim, sem “papas na língua”, como diz o povo, desculpem-me falar dele, ele que anda tão mal tratado.

“O caso de Timor Leste é muito complicado. Em Portugal, a posição dos media em relação a Timor Leste só apanha um dos lados do problema. Nós temos informações muito mais completas, que nos levam a uma tomada de posição mais silenciosa, até para ser eficaz. Todos nós sabemos que estes problemas complicados não se resolvem na praça pública mas na confidencialidade das chancelarias e canais diplomáticos.”

Deu-lhe a Grande Reportagem o Prémio “Deus lhe perdoe tanto silêncio” visto tratar-se de uma secção onde se premiavam citações.

Nas actualidades um pequeno artigo falava de cientistas russos a viver e trabalhar no Pólo Sul. Dizia esse artigo que os tais cientistas continuavam de “castigo”. Punha-se em questão a sua sobrevivência no Inverno que ai vinha. Sentindo-se abandonados pediram socorro pela rádio a outros cientistas de uma base Americana em Amundsen-Scott (Trágica a morte de Scott). Declarações feitas pelo chefe da base russa de Vostok referiam “O governo deixou-nos cair.”. Em resposta as autoridades de Moscovo justificavam-se com outras prioridades. Em todas as estações antárcticas ponderava-se o recurso à greve inviabilizando o envio dos boletins meteorológicos para S. Petersburgo e para Moscovo. Sentenciava o artigo, “A situação de abandono destes técnicos russos é uma das consequências das mudanças ocorridas na ex-União soviética. Recebem apenas 10 por cento dos salários a que têm direito e os responsáveis pelas estações polares, ou seja o Comité de Estado para a Hidrometeorologia, caiu em desgraça.”.


Na “fotossíntese” encontrávamos uma fotografia do Eng.º Guterres (Foto de Pedro Silva, publicada no Diário de Notícias de 16-9-92). O Homem estava mais novo, queimado pelo sol das férias acabadas de gozar, dizia-se, na Praia dos Tomates.
Em pleno Cavaquismo criticava-se a apatia do PS em férias no Algarve e do PC na festa da Atalaia. Em tom de desabafo constatava-se, “A oposição em Portugal já só se ouve graças ao CDS”.

Ainda e só CDS com Paulo Portas no semanário Independente (acho que o MEC também para lá andava), isto digo eu.

No próximo mês vou trazer outras recordações.

Um grande bem haja para todos os que colaboraram na Grande reportagem. A eles lhes peço que vejam este post como um tributo e não como um plágio.

2007-10-12

O Automóvel VI

Continuava com os pulsos presos.

Onde estou?
Estás no hospital e tens sorte em não ter partido nada. Foste de cabeça ao chão duas vezes e continuas vivo. És um tipo com sorte.
Devo dizer obrigado?
Se quiseres?
Estou a ser parvo.
Ainda é cedo para dizer o que tu estás a ser.
Tens razão.
Eu sei.
Podes ajudar-me?
Eu estou a ajudar-te!

A Xana chegou-se ao Zé e tirava-lhe os cintos. O Zé olhava-a com o ar culpado de quem cometeu um acto injusto. O semblante culpado do homem contrastava com a compreensão da mulher.

Estás melhor?
Estou! Que horas são?
É quase meia-noite.
Meia-noite?!
Da primeira vez que acordaste foste muito agressivo, foram precisos sedativos.
Da primeira vez?
Depois de saltares do meu jeep desmaiaste. Consegui reanimar-te e chamei os bombeiros. Quando eles chegaram só chamavas pela carrinha e não deixavas que te levassem para o hospital. Os gajos passaram-se e deram-te uma injecção. Fiquei contigo até agora.
Obrigado!
As palavras saíram-lhe sinceras, descargo de consciência, mas logo se lembrou da Toyota.

E a minha carrinha?
Gostas mesmo muito dela?
Sim!
Parece que não puxaste o travão de mão como deve ser. Encontraram-na voltada ao contrário no fundo de um pequeno barranco.

A cara do Zé transformou-se, sentiu-se desfalecer novamente. Sentiu nojo, tonturas. A minha carrinha, a minha única amiga, sangue do meu sangue.

Como é que ela está?
Está um pouco amassada.
Um pouco?!
Não penses nisso agora. Tens onde ficar?

Como não pensar? Agora sim é que tinha arranjado um belo problema. Não teria decerto dinheiro para o arranjo, ainda por cima com a dificuldade em arranjar peças, muito trabalho de bate chapas, horas de labor naquele lugar escuro a que chamam oficina e que é o único que ele conhece, o único em que ele tem confiança para deixar a sua carrinha, mas primeiro ainda tem de a tirar daqui.

Onde é que ela está?
Não desistes?
Ficou lá?

Xana mostrou propositadamente um ar desiludido e enfadado.

Não. Os moços do reboque são meus amigos e conseguiram tirar de lá a tua querida carrinha que descansa agora no parque de uma oficina para tu amanhã, de cabeça fresca e com calma, decidires o que queres fazer.

O Zé reparava agora na maneira pouco formal como aquela rapariga falava com ele. Parecera-lhe mais velha da primeira vez que a viu, talvez a maneira pouco cuidada como se veste, a ausência de maquilhagem, as maneiras masculinas e de movimentos bruscos, a tenham envelhecido. Agora, com mais atenção apercebe-se da sua juventude, pele morena e lisa, marca de duas ou três borbulhas que ficaram da adolescência na cara bonita embora um pouco arredondada. Xana era uma rapariga alta e forte onde não havia lugar a gorduras supérfluas, os seus vinte e dois anos assim como o trabalho que fazia de permeio com várias actividades radicais não o permitia. Zé reparou que ela esperava uma reacção sua. Era também notório que estava aborrecida.

Conheces algum sítio onde eu possa dormir?

Xana abriu a boca num grande sorriso e largou um risinho demasiado feminino para o seu aspecto.

Agora é que estás a falar bem. Se quiseres podes ficar em minha casa.
E tu não tens medo? Mal me conheces.
No estado em que tu estás não fazes mal a uma mosca, além disso eu vivo com dois irmãos bem maiores que tu. Eu própria sou maior que tu. Tens cara de escritor, ou poeta, muito pálido, magrinho, com ar esgazeado e sonhador.

Não teve coragem para lhe dizer que era segurança. A descrição que ela fizera dele não lhe deixara qualquer vontade de se revelar, por outro lado até lhe agradava saber que não parecia um gorila, que não assustava ninguém. Que melhor oferta poderia ter a estas horas da noite. Admirava-se com a persistência da rapariga. Não é todos os dias que se encontra alguém que nos ajuda de uma maneira desinteressada. Ele que se julga um Michael K português. Solidão, desapego material, fraca figura, que pode alguém esperar dele. Está demasiado cansado para pensar, sente fome.

Preciso comer alguma coisa.
Comes quando chegarmos a casa. Espera um pouco enquanto trato da papelada. É verdade, tirei-te a carteira e as chaves da carrinha.

O Zé levantou-se e deixou-se estar encostado à cama. À sua volta encontravam-se mais duas camas com rodas, ambas ocupadas por idosos. Numa cadeira com rodas estava uma mulher de meia-idade ligada pelo braço a uma embalagem de soro. A enfermaria parecia calma aquela hora, Agora que estava em pé apercebia-se das escoriações, todas superficiais, não tinha partido nada, quase que lhe apeteceu ficar ali durante a noite.

(cont.)

P.S. Bom fim-de-semana!

2007-10-09

O Automóvel V

Cheirava a medicamentos, a desinfectantes vários. Mexeu primeiro os dedos das mãos e dos pés. Apercebendo-se deitado abriu os olhos. O tecto branco cegou-o e fechou-os novamente. Imaginou-se numa enfermaria e teve receio de mover o corpo. O medo de que alguma coisa estivesse mal, a ânsia de saber o quê. Lentamente o medo recua, a ânsia avança destrutiva e num gesto reflexo tenta levantar-se. Sente uma dor aguda que lhe começa nas costas e acaba na perna esquerda. O braço esquerdo também lhe dói e cedeu ao esforço fazendo-o desequilibrar-se. Vencido deixa-se cair. O impacto desamparado da cabeça no chão deixa-o novamente sem sentidos.
Agora o cheiro a medicamentos recorda-o da queda, tem os pulsos presos.
Alguém que se aproxima, ele pressente o movimento, os pés que calçam sapatos sem salto, sola de borracha no guincho com o pavimento polido. O movimento é leve, dir-se-ia gracioso. Neste momento algo respira por cima dele, uma voz desabafa, Ia jurar que o vi mexer. Manteve-se imóvel, deixou que a respiração se afastasse. Não se afastou muito, o barulho de uma cadeira ali perto assim o indicou, novamente a voz, Se ele não acordar vou-me embora. A voz, a voz que o conduzia num Jeep, a voz que lhe gritou, Não faça isso!
Está acordado mas mantém os olhos fechados. Irá decidir abri-los, revelar através deles que recuperou a consciência.
Abriu a porta e saiu, o pânico assim determinou, a carrinha que não estava onde devia estar, a sua imagem num relance, mais abaixo, virada ao contrário num declive abrupto. Abriu a porta e saiu, a voz, Não faça isso!
Ele lá fora, a queda, o vazio, o momento do impacto, a dor e de seguida novamente o vazio, desta vez escuro, intemporal.
É este o momento, decidido está a enfrentar a realidade, o que aconteceu à sua carrinha, onde está a sua carrinha?
Novo movimento reflexo, desta vez com a força que a convicção grava nas nossas decisões, sentado de uma só vez, apoiado nos braços como se estes fossem suporte de um baloiço.
Xana arregalou os olhos, o movimento demasiado rápido surpreendeu-a, já não era a primeira vez.
Olha quem acordou! Já estava para me ir embora.
O Zé ouviu a voz ao longe e quis responder, enrolou a língua nos dentes e grunhiu algo parecido com, Onde está o meu automóvel?
O seu automóvel? Não me faça rir.
Até ele sentiu vontade de rir, por momentos sentiu vontade de rir e sentiu-se ridículo, Onde está a minha carrinha?
Não seria melhor saber onde estás?
Xana está irritada, o Zé está desorientado, melhor o silêncio que vai ficar entre os dois nos minutos que se seguiram.


(Cont.)


P.S. Obrigado a todos os que me comentam por me fazerem continuar. A todos vós um abraço.
Até que tudo o que é a vida nos separe.

2007-10-07

Branco

Branco,
Sou branco, tenho quarenta e dois anos e sou branco,
Podia ser azul, cor-de-rosa, amarelo, mas não…
Sou branco…Por definição…por justificação…
E vejo branco, no branco dos meus olhos,
Vejo branco na minha maneira de ser.
Disseram-me o que era o branco,
Do lado de cá,
Do ocidente.
Eu vejo branco,
Eu pinto de branco,
Eu sonho em branco,
Fizeram-me branco e criaram-me branco.
Se alguma vez fugir,
Fujo em branco.
Não fui eu quem inventou a cor,
Sou consequência.

Pálidas as faces
Das pessoas que por mim passam.
Em certas alturas, na rua, no passeio,
Tudo se desfoca,
Olho para eles e vejo-me.
Pálidos os reflexos
Das manhãs cinzas que inventei.
Janeiro borralho e a humidade nos vidros.
A borra castanha escura,
Escuro do negro,
No negro do café.
A língua que se revolve na boca procura
O doce meigo do açúcar,
O frio que cede ao calor,

Levo o jornal debaixo,
Não sei se do braço, se de todo o arco.
Da coluna arqueada saem coisas,
Demandas, cansaços, os gastos quotidianos,
Pormenores, e tantos que eles são!

Hoje, por ser hoje,
Pensei no que fui, no que sou.
Sobra-me a mim o lado lógico do contador de anos.
Moderno equilíbrio que gasta todas as peças,
Reciclado está o futuro para quem o há-de comer,
O plágio irónico à saída do autocarro.
Falta-me um pouco de vida para o fim de carreira,
Do emprego que vai para além do fim do mês, no fim de mais um dia.
Sou branco,
Digo-o como se tivesse importância,
Justificando, quem sabe,
A falta de outra cor.