2007-10-12

O Automóvel VI

Continuava com os pulsos presos.

Onde estou?
Estás no hospital e tens sorte em não ter partido nada. Foste de cabeça ao chão duas vezes e continuas vivo. És um tipo com sorte.
Devo dizer obrigado?
Se quiseres?
Estou a ser parvo.
Ainda é cedo para dizer o que tu estás a ser.
Tens razão.
Eu sei.
Podes ajudar-me?
Eu estou a ajudar-te!

A Xana chegou-se ao Zé e tirava-lhe os cintos. O Zé olhava-a com o ar culpado de quem cometeu um acto injusto. O semblante culpado do homem contrastava com a compreensão da mulher.

Estás melhor?
Estou! Que horas são?
É quase meia-noite.
Meia-noite?!
Da primeira vez que acordaste foste muito agressivo, foram precisos sedativos.
Da primeira vez?
Depois de saltares do meu jeep desmaiaste. Consegui reanimar-te e chamei os bombeiros. Quando eles chegaram só chamavas pela carrinha e não deixavas que te levassem para o hospital. Os gajos passaram-se e deram-te uma injecção. Fiquei contigo até agora.
Obrigado!
As palavras saíram-lhe sinceras, descargo de consciência, mas logo se lembrou da Toyota.

E a minha carrinha?
Gostas mesmo muito dela?
Sim!
Parece que não puxaste o travão de mão como deve ser. Encontraram-na voltada ao contrário no fundo de um pequeno barranco.

A cara do Zé transformou-se, sentiu-se desfalecer novamente. Sentiu nojo, tonturas. A minha carrinha, a minha única amiga, sangue do meu sangue.

Como é que ela está?
Está um pouco amassada.
Um pouco?!
Não penses nisso agora. Tens onde ficar?

Como não pensar? Agora sim é que tinha arranjado um belo problema. Não teria decerto dinheiro para o arranjo, ainda por cima com a dificuldade em arranjar peças, muito trabalho de bate chapas, horas de labor naquele lugar escuro a que chamam oficina e que é o único que ele conhece, o único em que ele tem confiança para deixar a sua carrinha, mas primeiro ainda tem de a tirar daqui.

Onde é que ela está?
Não desistes?
Ficou lá?

Xana mostrou propositadamente um ar desiludido e enfadado.

Não. Os moços do reboque são meus amigos e conseguiram tirar de lá a tua querida carrinha que descansa agora no parque de uma oficina para tu amanhã, de cabeça fresca e com calma, decidires o que queres fazer.

O Zé reparava agora na maneira pouco formal como aquela rapariga falava com ele. Parecera-lhe mais velha da primeira vez que a viu, talvez a maneira pouco cuidada como se veste, a ausência de maquilhagem, as maneiras masculinas e de movimentos bruscos, a tenham envelhecido. Agora, com mais atenção apercebe-se da sua juventude, pele morena e lisa, marca de duas ou três borbulhas que ficaram da adolescência na cara bonita embora um pouco arredondada. Xana era uma rapariga alta e forte onde não havia lugar a gorduras supérfluas, os seus vinte e dois anos assim como o trabalho que fazia de permeio com várias actividades radicais não o permitia. Zé reparou que ela esperava uma reacção sua. Era também notório que estava aborrecida.

Conheces algum sítio onde eu possa dormir?

Xana abriu a boca num grande sorriso e largou um risinho demasiado feminino para o seu aspecto.

Agora é que estás a falar bem. Se quiseres podes ficar em minha casa.
E tu não tens medo? Mal me conheces.
No estado em que tu estás não fazes mal a uma mosca, além disso eu vivo com dois irmãos bem maiores que tu. Eu própria sou maior que tu. Tens cara de escritor, ou poeta, muito pálido, magrinho, com ar esgazeado e sonhador.

Não teve coragem para lhe dizer que era segurança. A descrição que ela fizera dele não lhe deixara qualquer vontade de se revelar, por outro lado até lhe agradava saber que não parecia um gorila, que não assustava ninguém. Que melhor oferta poderia ter a estas horas da noite. Admirava-se com a persistência da rapariga. Não é todos os dias que se encontra alguém que nos ajuda de uma maneira desinteressada. Ele que se julga um Michael K português. Solidão, desapego material, fraca figura, que pode alguém esperar dele. Está demasiado cansado para pensar, sente fome.

Preciso comer alguma coisa.
Comes quando chegarmos a casa. Espera um pouco enquanto trato da papelada. É verdade, tirei-te a carteira e as chaves da carrinha.

O Zé levantou-se e deixou-se estar encostado à cama. À sua volta encontravam-se mais duas camas com rodas, ambas ocupadas por idosos. Numa cadeira com rodas estava uma mulher de meia-idade ligada pelo braço a uma embalagem de soro. A enfermaria parecia calma aquela hora, Agora que estava em pé apercebia-se das escoriações, todas superficiais, não tinha partido nada, quase que lhe apeteceu ficar ali durante a noite.

(cont.)

P.S. Bom fim-de-semana!

3 comentários:

pb disse...

de facto, é um regalo ler-te.Desculpa-me ter falhado a V parte, mas assim, li as duas partes de enfiada, um abraço

Isabel disse...

Olá amigo Paulo.
Desculpa não ter vindo comentar-te por uns tempos. Leio sempre, já sabes como gosto de ler-te e esta história está especialmente bem escrita, a linguagem que usas é simples e corrente e isso é muitissimo dificil. Quem escreve sabe o quanto é dificil fazer com que os dialogos parecam reais mesmo, tu consegues muito bem e isso é um dos teus méritos.
És um escritor pronto, está dito.
Gosto da Xana.
Vai dar que falar/escrever.
Tens pano para mangas para explorar com ela.
Avança que eu continuarei a ler.
Já agora espero que estejas a pensar em publicar um dia.
Mereçes.

Um abraço amigo,

Isabel

Titá disse...

Continuo presa, ansiosa pelo resto da história...não páres...estou completamente envolvida

Um abraço daqueles e um beijo