2007-06-23

O Trabalho (Pequena reflexão nocturna)

Diz Javé a Adão

“Maldita seja a terra por tua causa, e dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, todos os dia da tua vida. Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado. Porque tu és pó e ao pó hás-de voltar.” (Génesis, 3, 17-19)

O penoso trabalho, o castigo diário cravado nas nossas mais remotas origens religiosas. Será que nos apercebemos da maldição, da cruz herdada de Adão, o primeiro a arrancar alimento através da canseira, do suor, até à morte…
Mas que dizer do trabalho? O trabalho é o que é, vale o que vale, o dos outros vale sempre menos…
Pesada herança a de Moisés que teve de convencer os Judeus, pastores nómadas, a praticarem a agricultura. Qual o argumento? Na verdade consegui-o convencendo-os da irreversibilidade do castigo divino. Distribuiu as terras e criou leis que impediam a sua venda definitiva. De cinquenta em cinquenta anos o Jubileu saldava todas as dívidas, a ninguém seria espoliado o direito à terra, ao ganha pão, ao trabalho!
Como poderão os ricos comer o pão com o suor no rosto, como poderão os pobres suar menos para comer um pouco mais de pão, como poderão os desempregados comer algum pão, pobres da pobreza , da miséria e da exclusão…E do trabalho.
Enquanto o trabalho for pago será sempre deficitário no número de vagas. Na escravatura não existe limite para a necessidade de fazer, construir, ampliar, angariar. A remuneração é um sério problema, travão do progresso.
Que novos reinos existem? Serão os países pobres os verdadeiros herdeiros da palavra de Javé?
Aqui fica a minha dúvida, a minha vertigem nocturna…



Um bom fim de semana a todos!...

2007-06-14

O que me ficou depois de ter escrito II

Em tudo acertámos, no copo, na casa de banho, no cigarro, no… Sente um amargo na boca, “O gosto amargo é causado por átomos redondos, macios, pequenos, cuja circunferência é, na realidade, sinuosa; portanto, ele é ao mesmo tempo pegajoso e viscoso.”, malditos filosofos, malditos átomos, redondos, macios…O amargo quimico da substância que lhe entrou pela veia, “Por convenção existem o doce e o amargo, o quente e o frio, por convenção existe a cor; na verdade são os átomos e o vazio…”, o vazio…”Demócrito defende que os elementos são o cheio e o vazio; chama-lhes ser e não ser, respectivamente. Ser é cheio e sólido, não-ser é vazio e não-denso.”, tudo se resume a um problema de densidade, e porque não?...
O coração acelera, tem palpitações de esforço. O embolo desce e sobe uma vez, duas vezes, três vezes…E pára! Por momentos as forças vão-se, impossível o gesto, o movimento, perdido no orgasmo que é todo aquele sentir, aquele calor e logo a seguir o arrepio de frio e as forças novamente a voltarem…”Um dia não volto…”. Agora sim, está pronto para enfrentar o carrasco branco. “Onde é que eu ia?...”, estranhou a arrumação, as folhas alinhadas, o repouso da máquina sobre a mesa. Pegou nas folhas como se não fossem suas, como se aquelas palavras não tivessem nascido do contacto dos seus dedos com as teclas, e passou-as uma a uma, uma a uma olhou-as sem as ler, admirando-se da escrita, do contorno preto das estrofes…Nem bem preto…Mais cinzento…”Que bela silhueta…Terá igualmente belas palavras…”…

“Que fazer com o saber que me incomoda
Filosofo do pecado
Irmão gemeo que me ocupas…
Bebe um golo e cerra os olhos com força
Marca a vida antes que ela te fuja
Dá-lhe metade de ti
De mim
Não a deixes ir sózinha…Matéria…”

Não se reconheçe nas palavras, no desabafo feito poema, “Que merda é esta?...”, “Onde está a prosa segura que me caracteriza, onde estão os mestres que deveria evocar?”…”O intelecto actua sempre como se o fascinasse a contemplação da matéria inerte. É a vida a olhar para fora, saindo de si mesma, tomando como principio os caminhos da matéria inorgânica, para dirigi-los de facto.”, “Bergson tem razão…Que fascinio…O intelecto com o poder de ver as coisas separadas e a matéria para as destinguir como diferentes…Será que alguma vez o compreendi? Que me interessa isso agora? Se está certo ou errado…Só me interessa o belo…”, “Porque não me sai bela a poesia? Porquê a amargura…Falso filosofo, falso poeta…”.
Enrola mais um cigarro, acaba de beber o que resta no copo e enche-o novamente, está calor. Decidiu abrir os estores e o sol quase que o cega, “Que bonito dia, que boa essa energia solar, fonte de vida…E de morte…”. No prédio em frente, duas adolescentes numa janela fazem-lhe caretas de nojo. Apercebe-se do seu triste estado, “Aonde queres chegar Raul…Dr. Raul…Professor Raul…Raul?”, afasta-se da janela e apaga o candeiro, refugia-se no fundo de um sofá velho, em pele, de um avó famoso, também ele Doutor, Professor, homem de grande saber, de grande capacidade de trabalho, com extensa obra públicada…”…Ouve bem Raul, sem trabalho nada se consegue. Os sonhos são bonitos mas precisamos conquistá-los.”, “Sim avó.”, ou só o dizer que sim com a cabeça, que idade teria?
O pensamento cortado pela presença de um pedaço de papel, porque não reparou nele? Estava junto da garrafa, agora definitivamente meio vazia. Um pedaço de papel pequeno, bem dobrado, bem cheiroso. Desdobrou-o adivinhando-lhe letras, palavras, frases, sentidos.

“Amo-o Dr. Raul
Amo-te Raul
Não te destruas por favor

Joana”

“Joana…Afinal foste tu…Querida Joana…”


(Continua...Com um abraço para todos os que se dão ao trabalho de por cá passar)

2007-06-05

Para lá dos recantos, dos segredos da alma.


Para lá dos recantos, dos segredos da alma,
Das crenças e superstições.
Distante fica o corpo, observando-nos em fuga…

Retenho o cheiro da seara ceifada,
Os fardos de formas geométricas,
O aroma do caule cortado, multiplicado…

Tenho o segredo de mim,
Sei-me fazer feliz,
Egoísta do que não sei nem quero saber…

Olho para cima e invento deuses,
Faço do que me ensinaram,
Sei que não tenho a chave…

Tenho a porta aberta,
Numa amplitude incerta,
O suficiente para passar…

…A areia que desliza na ampulheta…
O mecanismo gravítico, movimento manual que prolonga o tempo,
Não me posso esquecer de a virar…
Escorre e dá-me a medida do que existi, do que existo, do que tenho para dar.
Sou eu que te peço, agora que te virei.
Vejo o amontoado de tempo, acumulando-se no fundo,
O fio de areia que o aumenta…Escorre e responde-me granulado temporal…

Obrigado!
Pelo teu silêncio de frequências, rumor de partículas roçando-se.
Obrigado por me fazeres olhar…
Para lá dos recantos, dos segredos da alma.

2007-06-02

O que me ficou depois de ter escrito

A janela de cortinas arregaçadas parecia nua e oferecia do alto do segundo andar um espectáculo de desordem e sujidade a quem, convenientemente colocado, o pudesse contemplar. Numa cama de casal uns lençois, que já deviam ter sido brancos, eternamente enrodilhados salientavam o ar de abandono. Além da cama pouco mais havia a registar, uma cómoda pequena a seus pés, uma escrivaninha e uma cadeira encostadas à parede que defronte para a janela ostentava uma gravura a carvão de um mosteiro, numa moldura envelhecida. Algumas garrafas de vinho pelo chão e dois cinzeiros completamente cheios, um na cama outro na escrivaninha, eram adereços de uma companhia de Teatro sem subsídios. Na janela ao lado o contraste era evidente, com os estores totalmente fechados como que negando todo e qualquer raio de luz que ousasse iluminar por pouco que fosse a escuridão que se adivinhava nesse quarto, levando-nos a concluir, talvez um pouco apressadamente, que se no outro quarto não se via ninguém, neste deveria ser presença pelo menos um ser humano. Embora apressada, a conclusão estava correcta, efectivamente havia vida nesse quarto, alguém que dormindo, procurava passar despercebido ao mundo exterior, esse que por norma nos costuma rodear e nalguns casos trágicos digerir. Como não se pode ter tudo, correcta a conclusão, errada a escuridão que se tentou adivinhar. Um candeeiro de pé alto iluminava uma sala onde tudo parecia demasiado arrumado tendo em conta o aspecto abandonado do homem que dormia em tronco nu, num sofá que poderia ser cama se o tivessem aberto para esse efeito. Este homem não é de se preocupar com locais para dormir, o sono vem-lhe do cansaço, das horas de desassossego.
O sol está a pique, como deve estar o sol que quer queimar. Algumas gota de suor escorrem-lhe da testa, destilam o veneno que o consumiu, doce veneno…Hummm, doce veneno…Quando acordar logo sentirá a carência. Arrumada, a sala mostrava-se indiscreta aos vícios, uma caixa metálica com algodão, uma seringa de vidro e respectiva agulha, um vidro de relógio, uma garrafa de água, um saquinho de pó branco…Uma garrafa de Grants meio cheia…Meio vazia…Sempre a mesma merda de dilema…Desde que não seja a última…Não consegue dormir sem saber que pelo menos existem duas garrafas por abrir…Ao acordar a mão pede o copo, o copo pede a garrafa e ela tem de estar lá…Como poderia ele escrever, como poderia ele ensinar…Ainda se dão ao trabalho de o ouvir na faculdade onde dá aulas de filosofia…Esqueçeu os filosofos sem esqueçer a filosofia, algumas más linguas acusam-no de inventar…Tudo mentira…
Está de baixa vai para três semanas, para escrever o livro que o vai tirar da miséria, que o vai libertar de patrões…Desculpas, mais de vinte dias a consumir de modo intensivo…Escorre-lhe suor do corpo magro, branco, magro sem fragilidades, branco sujo da vida.
Acordou, os olhos mantêm-se fechados, primeiro só os ouvidos, o emaranhado sonoro, o fio por onde lhe pega, na agulha, na cabeça, a ambulância ao longe, os miúdos na rua, o autocarro que arranca, o trinco da porta da escada…Também ladram, os cães da vizinha…
Já tem todos os sons, agora sim pode abrir os olhos, um de cada vez, devagar…O corpo ainda não se mexeu…Quando o fizer vai pegar no copo e vai reparar que está vazio, vai enche-lo com a garrafa meio cheia, meio vazia, verificar do stock…Só depois a casa de banho, o cigarro sem filtro que vai enrolar à mão, o saquinho de pó branco…Está a ficar vazio…Como a conta bancária…Está quase o fim do mês…
Ainda usa máquina de escrever, como o Paul Auster, só que não houve nenhum artista a querer pintá-la, nem ele que também se julga pintor. Também a máquina está arrumada, alinhada com a mesa, alinhada com uma resma de folhas escritas.

(I Parte, tem continuação)