2007-06-02

O que me ficou depois de ter escrito

A janela de cortinas arregaçadas parecia nua e oferecia do alto do segundo andar um espectáculo de desordem e sujidade a quem, convenientemente colocado, o pudesse contemplar. Numa cama de casal uns lençois, que já deviam ter sido brancos, eternamente enrodilhados salientavam o ar de abandono. Além da cama pouco mais havia a registar, uma cómoda pequena a seus pés, uma escrivaninha e uma cadeira encostadas à parede que defronte para a janela ostentava uma gravura a carvão de um mosteiro, numa moldura envelhecida. Algumas garrafas de vinho pelo chão e dois cinzeiros completamente cheios, um na cama outro na escrivaninha, eram adereços de uma companhia de Teatro sem subsídios. Na janela ao lado o contraste era evidente, com os estores totalmente fechados como que negando todo e qualquer raio de luz que ousasse iluminar por pouco que fosse a escuridão que se adivinhava nesse quarto, levando-nos a concluir, talvez um pouco apressadamente, que se no outro quarto não se via ninguém, neste deveria ser presença pelo menos um ser humano. Embora apressada, a conclusão estava correcta, efectivamente havia vida nesse quarto, alguém que dormindo, procurava passar despercebido ao mundo exterior, esse que por norma nos costuma rodear e nalguns casos trágicos digerir. Como não se pode ter tudo, correcta a conclusão, errada a escuridão que se tentou adivinhar. Um candeeiro de pé alto iluminava uma sala onde tudo parecia demasiado arrumado tendo em conta o aspecto abandonado do homem que dormia em tronco nu, num sofá que poderia ser cama se o tivessem aberto para esse efeito. Este homem não é de se preocupar com locais para dormir, o sono vem-lhe do cansaço, das horas de desassossego.
O sol está a pique, como deve estar o sol que quer queimar. Algumas gota de suor escorrem-lhe da testa, destilam o veneno que o consumiu, doce veneno…Hummm, doce veneno…Quando acordar logo sentirá a carência. Arrumada, a sala mostrava-se indiscreta aos vícios, uma caixa metálica com algodão, uma seringa de vidro e respectiva agulha, um vidro de relógio, uma garrafa de água, um saquinho de pó branco…Uma garrafa de Grants meio cheia…Meio vazia…Sempre a mesma merda de dilema…Desde que não seja a última…Não consegue dormir sem saber que pelo menos existem duas garrafas por abrir…Ao acordar a mão pede o copo, o copo pede a garrafa e ela tem de estar lá…Como poderia ele escrever, como poderia ele ensinar…Ainda se dão ao trabalho de o ouvir na faculdade onde dá aulas de filosofia…Esqueçeu os filosofos sem esqueçer a filosofia, algumas más linguas acusam-no de inventar…Tudo mentira…
Está de baixa vai para três semanas, para escrever o livro que o vai tirar da miséria, que o vai libertar de patrões…Desculpas, mais de vinte dias a consumir de modo intensivo…Escorre-lhe suor do corpo magro, branco, magro sem fragilidades, branco sujo da vida.
Acordou, os olhos mantêm-se fechados, primeiro só os ouvidos, o emaranhado sonoro, o fio por onde lhe pega, na agulha, na cabeça, a ambulância ao longe, os miúdos na rua, o autocarro que arranca, o trinco da porta da escada…Também ladram, os cães da vizinha…
Já tem todos os sons, agora sim pode abrir os olhos, um de cada vez, devagar…O corpo ainda não se mexeu…Quando o fizer vai pegar no copo e vai reparar que está vazio, vai enche-lo com a garrafa meio cheia, meio vazia, verificar do stock…Só depois a casa de banho, o cigarro sem filtro que vai enrolar à mão, o saquinho de pó branco…Está a ficar vazio…Como a conta bancária…Está quase o fim do mês…
Ainda usa máquina de escrever, como o Paul Auster, só que não houve nenhum artista a querer pintá-la, nem ele que também se julga pintor. Também a máquina está arrumada, alinhada com a mesa, alinhada com uma resma de folhas escritas.

(I Parte, tem continuação)

3 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Meu caro,
Uso este meio para lhe pedir que me envie o seu endereço de e-mail, pois já recebi nova devolução,pois
respondi ao seu comentário sobre «A Dor Suprema» e o resultado
é aquele emaranhado de baba inglesa,falando em «falure» da caixa, não percebo nada. Veja lá se me dá um contacto «bem integrado
no sistema»: acho indispensável a
sua presença nos meus espaços de comunicação.
do amigo
Rocha de Sousa

Titá disse...

Mano,
Envolvente como sempre, fico ansiosa pela continuação de mais um conto delicioso e intenso.

A descrição feita trouxe-me recordações, dolorosas...já vi esse quarto, ou melhor esse quadro algures no tempo, na companhia de alguém que adoro.
Um beijo e aquele nosso abraço...de sentir o coração um do outro

pb disse...

adivinha-se um belo conto, na senda dos anteriores, consegui, com a descrição feita, integrar-me nesse quarto,e tambem eu lembrar-me de um outro quarto, perdido nas memórias do passado, fico a aguardar com espectativa a continuação, deixo-te um abraço