2012-09-29

“Pedro!!!”

O nome, ou o grito, dentro do quarto escuro, talvez nem tanto. Um sussurro amplificado, distorcido pelo álcool, codificado por químicos.


“Pedro! “

O eco do nome ou do grito sussurrado, olhos que procuram ver o que aos ouvidos pertence.

“Pedro! Vá lá, olha para mim.”

A voz que parece familiar, sem idade. Uma voz de mil imagens, desprendida de retratos presos no tempo. A voz circula no escuro do quarto, balança suavemente e perde-se na memória ainda agora presente.

“Pedro?”

Que som é este à volta da tua voz? A pergunta fica retida numa camada espessa que separa o que queremos do que fazemos. A tua voz já tem nome…Espera um pouco…Deixa-me recordar-lhe o ritmo, o tom…

“Paulo?”

PP olhou para Pedro. “Queres ouvir a primeira música da banda?”.

A resposta perdeu-se num pequeno fio de baba, dos olhos abertos pouco se via.

Endireitou-se na cadeira e acomodou a viola baixo por debaixo do braço direito. A voz do Paulo encheu a escuridão acompanhada pela percussão repetitiva de uma nota grave…



…Em nome do Pai, do Não! E da miséria.

Em nome do século que acabou.

Em nome do nada que nos deixaram.

Em nome de quem não tem futuro…



“Paulo?”, “Estás ai Paulo?”, “Em meu nome também…Não te esqueças?”. A nota grave larga o ritmo e procura uma melodia distorcida pela violência do contacto entre as cordas e os dedos. “És tu PP?...Ainda aí estás?”. A nota grave baixa o volume e retoma a percussão repetitiva…



…Em nome da sorte que não é nossa,

Em nome da estrada que não nos leva,

Em nome do destino que não queremos,

Em nome do diabo que nos carrega!



“PP? Estás a ouvir-me PP?”, “Falas do diabo porquê?”, “Paulo, eu estou a vê-lo…Ao diabo…tem tantas Cores…”. “Tem calma Pedro!”. A nota grave e monótona…E a voz…



…Em nome da mãe que perdeu o filho,

Em nome do filho que perdeu a mãe,

Em nome do pai que perdeu os dois,

Em nome de mim que sou um refém.



“Eu perdi a mãe dos meus dois filhos. Eu…de manhã…falei com os meus filhos…”, “PP! Tu tens filhos?”.



…Em nome de coisas, nomes e factos.

Em nome da merda que nos afoga a garganta.

Em nome do silêncio e do medo,

Em nome de quem nos espanca.



A voz eleva-se um pouco mais, ganha também um pouco de rouquidão, assento amargo de inflamação mal curada.



…Em nome do nome que nos querem tirar,

Em nome do nome da luta que ficou por travar,

Em nome do nome da raiva e da vergonha,

Em nome do nome de tudo…



Em nosso nome, Holandês!



O dia amanhecia no quarto de Pedro…Um ano mais velho. O Paulo estava convencido mas Pedro não estava em condições para se aperceber disso.

Um encontro a quatro está para breve…

2012-09-11

Na mesa


Sábado à noite em Sintra. Sintra trazia-lhe boas memórias. Tinha nove anos quando o comboio o transportou pela primeira vez à vila. Sem dinheiro para o bilhete viajara à “pendura” durante os trinta minutos que demorara a fazer o percurso. O comboio, cinzento e de chapa frisada tinha uns olhos tristes e redondos. Os bancos da segunda classe eram forrados com uma napa verde e resistente. Eram bancos para dois e para três passageiros, sem divisão que os separasse. O apoio de braço era metálico e redondo. Todas as carruagens tinham átrios de descarga onde se encontravam as portas que lhe davam acesso. Esses átrios tinham dois varões centrais que permitiam a segurança de quem viajava em pé. Quatro pequenos bancos encontravam-se com os tampos encostados às anteparas do átrio. Jó viajara num desses bancos com um olho no corredor e o outro no botão do ar comprimido, que permitia a abertura manual das portas.
Hoje a jornada é diferente. O comboio é mais elegante, de bancos individuais. Os espaços abertos entre as estações que outrora mostravam os campos desapareceram. Toda a linha de Sintra é hoje um enorme monumento ao cimento. Eis onde se encontra um quarto da população de Portugal.
 Já é noite. Jó preferiu jantar em casa. Derramou uma garrafa de tinto com catorze graus, alentejano, grelhou um bife da vazia na chapa, acompanhou com uma salada de alface e nozes que a filha mais velha lhe ensinara e acabou com duas aguardentes velhas e um café. Um amigo que lhe arranjara um saco de erva permitiu-lhe findar a refeição com o estalar de sementes e um tossir incontrolável que o fez rir.
Apanhou o comboio na estação do oriente. Procurou um lugar junto da janela. Sempre que viaja sozinho o lugar da janela é aquele que lhe permite maior conforto. Acima de tudo permite-lhe descansar os olhos e evitar outros olhares, quanto muito um pequeno soslaio no reflexo do vidro pejado de luzes noturnas. A viajem demora mais que os trinta minutos que demorava quando vivia na Reboleira. Hoje também não atravessa o túnel do Rossio. A viajem é tranquila até chegar a Queluz. Alguns miúdos que entram são ostensivos na linguagem e na provocação. A cultura norte americana dos guetos suburbanos foi importada e é hoje a expressão da revolta de todos aqueles jovens que sem ambições políticas anseiam por uma vida de luxúria fácil. Jó nunca se reviu na delinquência gratuita. Para ele tudo tinha de ter um significado social, um objetivo, nunca a violência poderia ser justificada pela soberba ou gula, mesmo que disfarçadas por pretensiosismos de classe, a maior parte das vezes mais que justificados.
Foi o resto da viagem incomodado. Pressentiu por duas vezes a tentativa de provocação e à segunda esteve perto de responder. Mas o grupo distraiu-se dele quando dois casais de namorados entraram na carruagem. Jó teve pena dos dois rapazes. Mostravam-se incapazes de reagir e um pouco antes de chegar a Sintra foram abordados violentamente. Uns telemóveis, umas carteiras, Jó ainda se levantou, mas apenas para ver uma arma apontada. “Puta que vos pariu!”, gritou. O comboio arrancou e do lado de fora o grupo ria-se e simulava disparos com os dedos da mão. Neste mundo de tubarões são as sardinhas que se devoram.
O comboio parou lentamente. A última paragem sempre lhe parecera um destino final, uma sensação que se perde quando a viagem é feita de automóvel. Quando saiu, os dois casais, com a noite definitivamente estragada, tentavam convencer dois polícias de intervenção a agir. Junto deles, alguns dos passageiros, agora mais corajosos, juntavam a sua indignação ao desespero dos jovens. Fora da estação respirou fundo. Virou á direita em direção à velha vila. O bar não ficava longe e a noite estava agradável. Pelo caminho enrolou um cigarro e acendeu-o. Inspirou profundamente o seu tabaco holandês de eleição. Há anos que fumava aquele blending tradicional que ultrapassara todas as modas, uma espécie de “SG ventil” versão tabaco de enrolar.

Passava um pouco das onze e meia quando Jó chegou à porta do bar. O som de jazz chegava à rua de forma apelativa, em ritmo de blues, numa voz quente e sensual de mulher negra. A formação era tradicional, contrabaixo, bateria e piano, mas a voz da mulher predominava, a começar pela pronúncia africana com que vincava os vocábulos da língua Inglesa.
Deixou-se ficar à porta até que a música acabou e se ouviram ténues aplausos. Dirigiu-se ao porteiro que fez impor o seu físico para o interpelar. Habituado que estava a este tipo de atitudes Jó deixou que o seu ar distante e reservado mostrasse ao segurança que ele não representava nenhum perigo. O jovem encorpado ainda lhe disse que o bar estava cheio mas perante a insistência passiva de Jó deixou-se levar pelo ar de velho lobo.
 
Quando Jó entrou a banda tinha acabado de tocar uma série e preparava-se para uma pausa. Na mesa de Duarte apenas uma bonita mulata estava sentada. Quando Jó se aproximou apercebeu-se que aquela jovem mulher era extremamente bonita e sem querer o seu olhar por lá ficou. Quase instantaneamente reconheceu na jovem a voz que lhe tinha telefonado. Pensou para dentro “O sacana do Duarte é um filho da mãe com sorte.”.
Entretanto o Duarte tinha-se levantado. Apercebendo-se da fixação de Jó largou uma exclamação em tom de provocação, “Já nem me conheces, estou assim tão velho?”. Jó ficou ligeiramente atrapalhado, ao que não ajudou o bonito sorriso da rapariga.
Ficou a saber que era ela a vocalista da banda. Soube também que vivia com Duarte e que pensavam ir para Luanda. Mas Jó era um homem determinado. Tinha lá ido com um objetivo e não iria desistir.

2012-09-05

O aniversário

Pedro faz anos hoje. É domingo e passaram três dias desde que esteve em casa da dona Ana. Não se lembrou do seu aniversário mas lembrou-se do “PP”. Tinha acabado de levantar-se e procurava qualquer coisa no frigorífico. Tinha a boca seca e o estomago fervia-lhe de azias.


Ficara sozinho em casa agarrado à guitarra elétrica. Colocara os headphones na cabeça e uma garrafa de Whiskey na mesa perto da cadeira, meio braço de distância, e junto da garrafa um copo sem gelo. Exercitou os dedos em escalas de blues durante um quarto da garrafa. Os olhos fechados libertaram a cabeça e as escalas começaram a entrelaçar-se com acordes dedilhados e ritmos de velhas canções conhecidas. Foi assim que o resto da garrafa desapareceu.

Pedro não gosta de fazer anos. Tem poucos amigos e nenhum deles é escolhido em dia de aniversário. Guarda-se para os seus dois filhos, homens já feitos como se costuma dizer. Aparecem sozinhos e juntos escolhem um restaurante para almoçar. O mais novo deixa-os sempre mais cedo. Fica com o mais velho e janta em casa deste com os netos. À noite volta para casa.

Hoje não deverá ser diferente. O telefone deverá tocar por volta das onze. É sempre o Rodrigo que telefona primeiro, o mais velho. Alberto, o mais novo, avisará da sua chegada quando vem já a caminho. A rotina deste dia não será corrompida, pelo menos por enquanto.

Tomam um aperitivo em casa do Pedro. Trocam-se banalidades. Rodrigo repara que o pai está mais magro e macilento, Pedro comenta o aspeto efeminado de Alberto, Alberto diz que está tudo na mesma.

Vão almoçar à Costa da Caparica. Escolhem o “Barbas” por ficar mesmo junto ao mar. Em Março tudo é mais calmo e as praias estão praticamente desertas. O Rodrigo conduz, ao seu lado Pedro olha distraído para a paisagem. Lá atrás, Alberto, escondido por detrás dos óculos escuros, procura recuperar do seu trabalho noturno. “Vais jantar lá a casa Pai?”, “Ainda não sei.”, “Tens alguma coisa combinada?”, “Não…Não sei…”, “Está tudo bem contigo? Acho-te cansado.”, “Ontem dormi mal e bebi muito.”, “Tens de ter cuidado.”, “Sim…”, “Os teus netos iam gostar de te ver hoje.”, “E ela também?”, “Não sejas assim, tu sabes que ela gosta de ti.”, “Talvez por isso acabamos sempre a discutir…”, “Não é uma questão de gostos, é uma questão de feitios…vocês são teimosos como à merda!”, “ Ela consegue tirar-me a paciência, principalmente quando fala de política. Não sei como a consegues aturar.”, “Talvez porque gosto dela.”, “Mesmo assim, a gaja é uma reacionário do caraças.”, “A gaja é minha mulher Pai!”, “Eu sei…Desculpa…Não estou nos meus dias.”, “Já tinha reparado!”.

O silêncio volta ao carro. “Queres ouvir alguma coisa?”, “Tens alguma coisa de jeito?”, “O que tenho está em MP3, vais ter de procurar, entendes-te com isso?”, “O teu carro é muito complicado, procura tu qualquer coisa, acústico se tiveres.”, “Eric Clapton unplugged?”, “Serve!”, “Ouves sempre a mesma merda!”. Este último comentário foi de Alberto.

Comeram arroz de tamboril que acompanharam com duas garrafas de branco. Pedro não comeu sobremesa mas bebeu dois balões de “Black label”. Sentia-se entorpecido. O corpo não lhe pesava e os olhos repousavam no mar. Rodrigo pagou e saíram. A caminho do carro rodrigo voltou a insistir, “Sempre vais lá a casa esta noite?”, “Não sei…estou a ser honesto contigo, não sei.”, “Mas eu preciso de saber, sabes como é a Madalena.”, “Sim eu sei. O melhor é não contares comigo.”, “Custa-me deixar-te sozinho.”, “Não te preocupes que eu estou bem.”, “Estás?”, “Estou!”.

Alberto não se mete na conversa do irmão com o Pai. É travesti num bar noturno de Lisboa e esta conversa aborrece-o profundamente. Do pouco que gostaria de dizer ao Pai este não gostaria de ouvir. Talvez gostasse de o convidar para ir a sua casa, jantar com ele e com o seu companheiro, mas isso estava fora de questão.

Despediram-se à porta do apartamento em Almada. Um abraço ao Rodrigo, um beijo disfarçado na face de Alberto. Entrou em casa e sentou-se. Levantou-se outra vez e foi abrir uma “Red Label”, a última. Tinha acabado de encher o copo quando o telefone tocou. “Quem é?”, “Ei Brother, é o PP”. Pedro sorriu pela primeira vez desde que tinha acordado. Afinal o dia não estava perdido.

(Continua)

2012-09-02

Sou eu mãe!

Três da manhã. O automóvel segue a alta velocidade na autoestrada. Os olhos do Paulo devoram o tracejado numa cadência hipnótica. Não é ele o condutor. O volante está entregue a uma bela mulher que desfruta da condução com um prazer erótico. A torção das rodas dianteiras é seguida milimetricamente pelo corpo vibrante. A blusa justa que lhe cobre o corpo revela-lhe a excitação nos mamilos proeminentes. Nas colunas, o som de Stone Roses “Breaking into heaven”. As palavras roucas dizem-lhe:


“I've been casing your joint for the best years of my life

Like the look of your stuff, outta sight

When I'm hungry and when I'm cold

When I'm having it rough

Or just getting old”

Paulo adivinha as formas de Anne através dos segmentos brancos que desaparecem entre os faróis do BMW de alta cilindrada:

“Better man the barricades

I'm coming in tonight

Had a line of my dust, outta sight

When I wander and when I roam

I'll find a soul I can trust

I'm coming home”

O solo de guitarra aponta para um lugar escuro, algures para lá do limite dos faróis:

“I'm, I'm gonna break right into heaven

I can't wait anymore”

E do limite surgem luzes que anunciam uma empresa de combustíveis. E os cavalos do potente motor refreiam-se violentamente na ansia da sede por hidrocarbonetos. Um ligeiro chiar de pneus e as violentas reduções na caixa de velocidades. O corpo preso pelo cinto projeta-se no vidro e retorna. O veículo entra na área de abastecimento e estaca junto a uma bomba. “Quero beber um café!”. Olhou para ela e sorriu. Saíram ambos do carro, ela para satisfazer a sede do motor, ele para lhe satisfazer a sede, qual delas a mais árida.

Depois do café Anne insinuou, “Vou à casa de banho!”, “Eu vou contigo…”. Pelo caminho um pequeno involucro transparente com pó branco trocou de mãos. Minutos mais tarde o BMW voltava á estrada sedento do tracejado. “The Fall”, Mark E. Smith cospe as palavras de encontro ao asfalto e Paulo perde a noção do tempo. Anne, a alemã que lhe dá boleia e o traz de volta a Portugal, não lhe percebe a abstração. Anne ainda não tem trinta anos. Anne é viciada em adrenalina. O pai de Anne é um executivo de uma empresa alemã e está temporariamente em Portugal. Anne costuma rir-se quando Paulo lhe diz que o pai dela é um vampiro. Anne gosta da irreverência do Paulo. O Paulo gosta de todas as Annes.

O BMW atravessa o rio Tejo pela ponte do Vasco. A velocidade reduziu-se mas continua elevada. “Hoje vou dormir a casa da minha mãe…”, Anne sorriu, “Sim?...”, ” levas-me a casa?...”, “Não sei.”, “Não sabes?...”, “Onde é que mora a tua mãe?”, O Paulo sorriu, “Segue sempre em frente.”.

Estacionaram junto a um velho edifício de três andares. “É aqui?”, “Sim!”, “Fico contigo?”, “Se quiseres…”, “E a tua mãe?...”, “Vai ficar contente de me ver…”.

Mesmo sendo um ato repetido, a sensação de voltar a casa da mãe rejuvenesce-o. O sol estás prestes a nascer quando ele toca a campainha. Espera um momento e volta a tocar. Anne espreguiça-se, “Não é melhor voltares mais tarde?”, ele insiste na campainha, ela ajeita o cabelo e procura a sua imagem no reflexo do vidro da porta de entrada, “Vamos comer…estou com fome.”, a campainha volta a tocar…Uma voz estremunhada responde no intercomunicador “Quem é?”. “Sou eu mãe!”.