2012-09-11

Na mesa


Sábado à noite em Sintra. Sintra trazia-lhe boas memórias. Tinha nove anos quando o comboio o transportou pela primeira vez à vila. Sem dinheiro para o bilhete viajara à “pendura” durante os trinta minutos que demorara a fazer o percurso. O comboio, cinzento e de chapa frisada tinha uns olhos tristes e redondos. Os bancos da segunda classe eram forrados com uma napa verde e resistente. Eram bancos para dois e para três passageiros, sem divisão que os separasse. O apoio de braço era metálico e redondo. Todas as carruagens tinham átrios de descarga onde se encontravam as portas que lhe davam acesso. Esses átrios tinham dois varões centrais que permitiam a segurança de quem viajava em pé. Quatro pequenos bancos encontravam-se com os tampos encostados às anteparas do átrio. Jó viajara num desses bancos com um olho no corredor e o outro no botão do ar comprimido, que permitia a abertura manual das portas.
Hoje a jornada é diferente. O comboio é mais elegante, de bancos individuais. Os espaços abertos entre as estações que outrora mostravam os campos desapareceram. Toda a linha de Sintra é hoje um enorme monumento ao cimento. Eis onde se encontra um quarto da população de Portugal.
 Já é noite. Jó preferiu jantar em casa. Derramou uma garrafa de tinto com catorze graus, alentejano, grelhou um bife da vazia na chapa, acompanhou com uma salada de alface e nozes que a filha mais velha lhe ensinara e acabou com duas aguardentes velhas e um café. Um amigo que lhe arranjara um saco de erva permitiu-lhe findar a refeição com o estalar de sementes e um tossir incontrolável que o fez rir.
Apanhou o comboio na estação do oriente. Procurou um lugar junto da janela. Sempre que viaja sozinho o lugar da janela é aquele que lhe permite maior conforto. Acima de tudo permite-lhe descansar os olhos e evitar outros olhares, quanto muito um pequeno soslaio no reflexo do vidro pejado de luzes noturnas. A viajem demora mais que os trinta minutos que demorava quando vivia na Reboleira. Hoje também não atravessa o túnel do Rossio. A viajem é tranquila até chegar a Queluz. Alguns miúdos que entram são ostensivos na linguagem e na provocação. A cultura norte americana dos guetos suburbanos foi importada e é hoje a expressão da revolta de todos aqueles jovens que sem ambições políticas anseiam por uma vida de luxúria fácil. Jó nunca se reviu na delinquência gratuita. Para ele tudo tinha de ter um significado social, um objetivo, nunca a violência poderia ser justificada pela soberba ou gula, mesmo que disfarçadas por pretensiosismos de classe, a maior parte das vezes mais que justificados.
Foi o resto da viagem incomodado. Pressentiu por duas vezes a tentativa de provocação e à segunda esteve perto de responder. Mas o grupo distraiu-se dele quando dois casais de namorados entraram na carruagem. Jó teve pena dos dois rapazes. Mostravam-se incapazes de reagir e um pouco antes de chegar a Sintra foram abordados violentamente. Uns telemóveis, umas carteiras, Jó ainda se levantou, mas apenas para ver uma arma apontada. “Puta que vos pariu!”, gritou. O comboio arrancou e do lado de fora o grupo ria-se e simulava disparos com os dedos da mão. Neste mundo de tubarões são as sardinhas que se devoram.
O comboio parou lentamente. A última paragem sempre lhe parecera um destino final, uma sensação que se perde quando a viagem é feita de automóvel. Quando saiu, os dois casais, com a noite definitivamente estragada, tentavam convencer dois polícias de intervenção a agir. Junto deles, alguns dos passageiros, agora mais corajosos, juntavam a sua indignação ao desespero dos jovens. Fora da estação respirou fundo. Virou á direita em direção à velha vila. O bar não ficava longe e a noite estava agradável. Pelo caminho enrolou um cigarro e acendeu-o. Inspirou profundamente o seu tabaco holandês de eleição. Há anos que fumava aquele blending tradicional que ultrapassara todas as modas, uma espécie de “SG ventil” versão tabaco de enrolar.

Passava um pouco das onze e meia quando Jó chegou à porta do bar. O som de jazz chegava à rua de forma apelativa, em ritmo de blues, numa voz quente e sensual de mulher negra. A formação era tradicional, contrabaixo, bateria e piano, mas a voz da mulher predominava, a começar pela pronúncia africana com que vincava os vocábulos da língua Inglesa.
Deixou-se ficar à porta até que a música acabou e se ouviram ténues aplausos. Dirigiu-se ao porteiro que fez impor o seu físico para o interpelar. Habituado que estava a este tipo de atitudes Jó deixou que o seu ar distante e reservado mostrasse ao segurança que ele não representava nenhum perigo. O jovem encorpado ainda lhe disse que o bar estava cheio mas perante a insistência passiva de Jó deixou-se levar pelo ar de velho lobo.
 
Quando Jó entrou a banda tinha acabado de tocar uma série e preparava-se para uma pausa. Na mesa de Duarte apenas uma bonita mulata estava sentada. Quando Jó se aproximou apercebeu-se que aquela jovem mulher era extremamente bonita e sem querer o seu olhar por lá ficou. Quase instantaneamente reconheceu na jovem a voz que lhe tinha telefonado. Pensou para dentro “O sacana do Duarte é um filho da mãe com sorte.”.
Entretanto o Duarte tinha-se levantado. Apercebendo-se da fixação de Jó largou uma exclamação em tom de provocação, “Já nem me conheces, estou assim tão velho?”. Jó ficou ligeiramente atrapalhado, ao que não ajudou o bonito sorriso da rapariga.
Ficou a saber que era ela a vocalista da banda. Soube também que vivia com Duarte e que pensavam ir para Luanda. Mas Jó era um homem determinado. Tinha lá ido com um objetivo e não iria desistir.

Sem comentários: