2007-03-27

Escolher o melhor

Para ser justo acho que o canal “um” prestou um serviço público ao realizar este programa/concurso/escolha/seja lá o que lhe queiram chamar. Falou-se de Portugal, de Portugueses, realizaram-se documentários interessantes e fizeram-nos ler a História, a nossa História, pelo menos eu revisitei-a. Não quero entrar em polémicas sobre a originalidade, os critérios, a votação, o resultado, para mim interessa-me sobretudo o que nos foi fornecido em termos de informação irrevogável e comprovada ou no mínimo consensual.
De Fernando Pessoa voltei a apaixonar-me, de Aristides fiquei a conhecer pormenores, de Camões a irreverência e a genialidade à época, antes dele dois iluminados, um Rei, acordou com os espanhóis a divisão do mundo conhecido, o outro Infante, via para além do mar. Houve quem neles acreditasse, caso do Vasco, outros que os cantaram, Camões, também Pessoa. Na origem o Henriques, o primeiro dos Afonsinos (Leiam o “Cavaleiro da Águia” de Fernando Campos, um romance em que se aprende muito) o mestre de diplomacia que convenceu os cruzados a fazer a guerra santa em Portugal, em Lisboa, na conquista. Mais tarde Pombal, a organização após a destruição, a organização do ensino, quase um plano de contingência.
Chegamos ao século XX, povo gasto, de brilho baço, desse tempo escolhemos QUATRO, Pessoa, Aristides, Cunhal e Salazar, um sonhador, um moralista/humanista e dois antagonistas que ainda hoje nos atormentam.
Dos resultados da votação percebe-se imediatamente que não temos memória, os três primeiros viveram no século vinte e os dois primeiros existiram em oposição (o segundo ao primeiro). Se olharmos para o facto de o primeiro ter perseguido os dois segundos apertamos ainda mais a malha da memória. Só esses três Portugueses arrecadaram mais de 70% dos votos. Para mim isto é um facto incrível mas que revela o que nos vai na alma. Ainda estamos divididos, por políticas, por clubes, por sei lá mais o quê, a tal ponto que deixamos de ser coerentes, independentes.
Não votei, acho que não se pode votar a história, fiquei-me pelo conhecimento adquirido ou relembrado.
É esse o agradecimento ao canal “um”, obrigado por cumprirem com a vossa obrigação!


P.S. Poderão algumas pessoas estranhar a minha falta de indignação em relação ao primeiro lugar (isto é para ti Titá), mas não era esse o objectivo deste post. Li História e isso agradou-me, ponto final….Talvez…..

A Lagoa VIII


Ouvem-se vozes dentro de casa e passos que se aproximam da porta, passos leves, de gente jovem. Foi o Hugo que abriu a porta, rapaz alto, parecido com o pai, tem dezassete anos. É o filho mais velho do casal e para o próximo ano entra na universidade. “Boa noite Alice, entra!”, “Boa noite Hugo.”, ela entrou sem notar que Hugo ao fechar a porta lhe apreciou as formas e as imaginou por debaixo da farda, a idade não perdoa e o crescimento traz consigo sensações extraordinárias. Cheirava bem, a Gabriela tinha a sorte de viver perto da casa da mãe, pessoa humilde mas que conseguia tirar do quintal a auto-suficiência saudável da vida no campo. Frango do campo com pimentos, batata nova, cortada na hora, frita para o momento, salada fresca, vinho novo, pão comprado à vizinha que tinha um forno a lenha e também fazia folares, pena que o jantar tivesse de ser rápido. Gabriela cumprimentou Alice, “Boa noite Alice, o Pedro ainda está na casa de banho mas está quase despachado.”, “Temos tempo.”, “Será coisa que não vos faltará…”, palavras sem malícia, relembrando apenas a noite longa em local de desassossego, “Quando escolhemos esta profissão temos de nos habituar.”, “Faz anos que ouvi essas mesmas palavras da boca do Pedro.”, “Ele mudou?”, “Não, habituou-se.”. Pedro chegou já fardado, sentaram-se à mesa. Entretanto Afonso largara a Playstation que tinha no quarto e juntara-se ao resto da família. Moço de catorze anos fazia o lado da mãe, irrequieto, irreverente, sentimental, muito diferente do irmão mesmo tendo em conta a diferença de idades. Jantaram quase em silêncio, a comida convidava à apreciação gustativa, este só foi quebrado para discutir banalidades do quotidiano. Afonso acabou mais cedo e pediu para voltar ao quarto, tinha o jogo a meio e encontrava-se impaciente para o terminar. Hugo ficou até ao fim olhando de soslaio para Alice, aquela mulher perturbava-o, com ela sim se transformaria num homem, pensamentos de uma adolescência a acabar. Pedro levantou-se devagar, por vontade própria teria ficado com a mulher, nem que fosse a ver a novela, só para lhe sentir o calor, o conforto, quem sabe se quando fossem para a cama…Mas não foram, ele não vai dormir na cama esta noite. Foram a pé para o posto. Ao Pedro não lhe apetecia falar, Alice percebeu e respeitou-lhe a vontade.
“Até às seis, pode ser?”, não uma pergunta, uma ordem simpática de uma hierarquia humana. Até que ponto a recusa, mas eles não pensam nisso, sabem o que têm para fazer e a sua inevitabilidade, o treino para isso serviu.
Patrulharam a noite toda o perímetro do lago. Outros dois colegas noutra viatura fizeram o mesmo no pinhal. Sempre com o canal de rádio ligado não fosse o diabo tece-las. Os grupos de crentes haviam diminuído na lagoa e os poucos que avistaram mostravam-se receosos. Ao interpelarem um destes grupos para identificação provocaram a debandada do mesmo, que se separou em várias direcções impedindo a sua missão.
Foi já depois de terem chegado a casa e de se terem deitado que o mantorras descobriu o cadáver da mulher. Coincidência ou não a mulher morta era Dona Inês, mulher viúva que tinha aconchegado Rafael, também morto. Foi por esta altura que as decisões se agudizaram. As autoridades tinham na mão quatro mortes num caso que reabria feridas profundas de um passado recente. Informaram o presidente da autarquia e foi promovida uma reunião de urgência que tivesse em conta os vários aspectos da situação. Temia-se o pânico nas populações, a má fama que os acontecimentos traziam para a região, o turismo prejudicado, a queda de um projecto que não se queria industrial. Nem todos estavam descontentes e entre os convocados para essa reunião encontravam-se pessoas agradadas com o desenrolar dos acontecimentos.

(cont.)

2007-03-18

Circunstâncias II

Circunstâncias
A sede, a solidão, o espaço fechado.
Circunstâncias
A noite que se pressente mas não se ouve.
Circunstâncias
Uma voz no escuro que teima em dialogar.
Circunstâncias
As palavras vazias de confissões alcoólicas.
Circunstâncias
As palavras que nunca se dizem.
Circunstâncias
A cadeira, o homem de pernas cruzadas.
Circunstâncias
A mulher que bebe ao balcão.
Circunstâncias
…E no entanto nada se sabe.
Circunstâncias
Nestas e noutras a dúvida persiste…

…Circunstâncias
E nada mais do que isso mesmo…
…Circunstâncias!



P.S. Escrito em mil novecentos e noventa e um, na Reboleira, caderno diário, amarelo, caneta de tinta permanente, feito de uma só vez, sem emendas. Pertence a um grupo mais vasto de circunstâncias, passos, e sem sentido, numerados conforme iam sendo feitos. Sei-lhes o ano, foi a única referência que lhes deixei. Julguei este caderno perdido, perdido nas mudanças dos anos noventa, vim descobri-lo por acaso na procura de uma credencial que me fez revirar a sala. Chamou-me a atenção aquele caderno amarelo com uma assinatura e uma data, nada mais, só depois de aberto revelou o que tinha para revelar. Tirando duas ou três coisas já feitas, que postei no blog, nunca tinha ido buscar nada tão antigo. Fica a excepção…Fica a recordação…Um pouco do que fui…
Não sendo este o objectivo da minha presença na blogosfera prometo retornar à normalidade já no próximo post.
Um abraço para todos os que me visitam…

2007-03-15

A Lagoa VII

Aurício não vai comunicar a presença daquele corpo, chega de polícia. Com a sorte que tenho os gajos ainda me prendem, pensou, quem sabe se com razão. Levou o filho para dentro da carrinha e abalou do lugar, deles só os rastos dos pneus à mistura com tantos outros.
Que repouse em paz a mulher que lá ficou, morta. Assim vai ficar todo o dia e toda a noite até ser descoberta pelo Mantorras, rafeiro alentejano, cão de alma nobre e guerreira, cão pesado, ossudo, de cabeça grande, como os seus antepassados Asiáticos trazidos pelos soldados romanos. O Mantorras estava a brincar com o dono, o Miguel, pastor de quinze anos com inteligência de seis, o único de quatro filhos que ficou com o pai, refém do atraso ficará certamente refém do progenitor enquanto este for vivo, mas era do Mantorras que eu falava. Ao focinho deste cão não escapou o cheiro a morte, melhor dizendo, o cheiro putrefacto da matéria abandonada. Sim, porque existe uma diferença, podemos cheirar morangos e morrer de ataque, só depois o odor acre, a reacção química, a decomposição.
Mas tudo isto para mais tarde, o dia ainda não acabou, a carrinha ainda marca presença, gasóleo queimado no ar, perto de um crime que Aurício não cometeu.
A meio da manhã, Pedro e Alice estão à beira da via rápida, ajudam no fluir de viaturas que saem da berma após controlo, na sua maioria carrinhas, um ou outro mais descarado ou suspeito, é bom não esquecer que já morreram três pessoas, da quarta só nós, Aurício e a família, e os presumíveis autores do crime que a transportaram para a lagoa, têm conhecimento. Estão ressentidos um com o outro, é natural, usaram argumentos duros. Natural será também que tudo passe, que vença a amizade, é recente mas verdadeira, o carácter dos dois não a permitiria de outra forma. Para ajudar à reconciliação, vão ter de fazer horas extras juntos, foram convocados para rondas nocturnas junto da lagoa. Deram-lhes algum tempo, o suficiente para comer, tomar um banho, Pedro convidou-a para jantar lá em casa, a Gabriela iria gostar muito, “Ela simpatiza contigo.”, “Tens a certeza que ela não se vai aborrecer?”, ficou combinado para depois do duche.
Alice entrou cansada em casa, despiu-se devagar, com cuidado, amaciando a pele com os dedos, examinando-a meticulosamente defronte do espelho, no quarto de banho, procurando vestígios de sujidade, vestígios de um dia na rua, na estrada. Alice tomou banho de pé, a água do chuveiro escorrendo-lhe pelo corpo bem desenhado, libertando-a de tensões. Ensaboou-se com cuidado e demorou-se com a espuma, viu-se menina, na banheira, mostrando ao pai que já tomava banho sozinha, que saudades do pai, “Porque partiste pai?...”.
Foi mais lesta a vestir-se. Conseguia fazê-lo de modo rápido e desembaraçado, um pouco masculino, no entanto de uma eficiência comprovada.
Saiu para a rua. Ficou agradada com o entardecer, não haveria chuva, valha-lhes isso. Foi a pé, o Pedro morava a dez minutos e ela gostava de andar. Agradou-lhe o trajecto, as ruas largas e as casa baixas que deixavam ver o céu e as pessoas despreocupadas que regressavam a casa ao fim da tarde. Pensou em si e na sua profissão, o dever moral de proteger, ajudar, salvar o mundo dos males do quotidiano. Hoje sentia isso de uma forma diferente. As mortes, esses estranhos grupos de culto incerto, os interesses de que o Pedro falava, pareciam-lhe demasiado, faziam-na duvidar das suas capacidades. Existem alturas em que é preciso fazer as perguntas, dar as respostas, avaliar para poder decidir. As rondas tornaram-se perigosas, já não eram só larápios e bêbados e pessoal da noite com todo o tipo de substâncias ilícitas e acidentes de viação…Estaria à altura se fosse necessário? Se fosse necessário sacar, sacar e disparar, quem sabe, matar? Teria o sangue frio, suficientemente frio para o Pedro poder cofiar nela? O Pedro acredita que sim, passou pelo mesmo, sabe das dúvidas, conhece algumas respostas. Alice sente-se bem no seu monólogo, encara os cenários inventados como realidades já experimentadas despindo-as da imprevisível brutalidade. Ri-se de si enquanto toca à campainha da casa do Pedro e da Gabriela.


(Ainda Continua...)

2007-03-08

Edite

O edifício em frente tem janelas de vidro, mas eu não consigo ver para lá dessas janelas. Do nome que me deram não lhe acrescentei nada, sou Paulo, quanto muito Sr. Paulo.
Talvez se não fosse só Paulo eu pudesse ver para lá daqueles vidros, talvez me explicassem os enganos que não entendo, me pedissem desculpa pelo incómodo causado, pelo tempo gasto na procura do que me é devido, mas sou Paulo…E pouco mais…
Tenho um envelope em cima da secretária. Dentro desse envelope cinco folhas me agridem, agridem sobretudo o meu raciocínio. Eu devia entendê-las, mas não entendo. Percebo de química e sou pago por isso. Sorte? Também! Quando a constituição consagra o trabalho como um direito não deveria ser assim…Mas é! Mas também o que é a constituição, conjunto de regras que se adaptam às conveniências de maiorias eleitas…E que vontade têm eles de mudar tudo, tudo o que impedir o desenvolvimento económico…Despache-se a constituição e a lei geral do trabalho e todas essas tretas que nos impedem a grandeza…Ficamos à espera…
Espalho as cinco folhas pela mesa de trabalho na tentativa de lhes dar significado. Não será bem significado, de significado estão elas cheias, cheias das horas que passei para lá da rede da fábrica…Têm um número no fim e desse número faço a minha vida…
Preciso que me expliquem o número, preciso que me expliquem as cinco folhas que resumem o meu trabalho, preciso saber que alguém se preocupa, mesmo que isso não seja verdade.
Imagino-me da estrada, escolho dos apressados. Imagino sinais de luzes, a urgência de outras velocidades, emergência na passagem do obstáculo que sou eu…Paulo…Sem mais do que me dê importância.
Agora ouço uma voz, não é imaginação minha. É a voz de alguém que me chama “Sr. Paulo?!!”, “Sim…”, “Sou eu não se assuste. Vai jantar a que horas?”, “Lá para as oito e meia.”, “Veja lá se demora pelo menos meia hora a comer para eu ter tempo de lavar o chão e ficar seco.”, “Está combinado.”. Sorri sem força, a Edite percebeu, “Você hoje não está nos seus dias.”, “Pois não…”, desabafei…E expliquei-lhe porquê.
Não fui demorado assim como a resposta da Edite. Sem recibo do ordenado vai para uma semana, acertos sempre em atraso, ordenado a descer, regalias a fugir, “E é para quem quer Sr. Paulo.”, sentença final, também para mim uma sentença. Dei-lhe uma pequena palmada nas costas e fui jantar mais cedo…Obrigado Edite!

2007-03-05

A Lagoa VI

Também sei que o Pedro e a Alice não vão ser chamados, ocupados que estão no apoio à divisão de trânsito e à fiscalização económica. Vai ser dia de feira porque é quarta feira, uma das quartas feiras do mês em que isso é permitido na cidade, cidade pequena mas que do nome não se livra, não do de baptismo, esse é Vila Nova, do outro, do administrativo. Adiante com o que interessa. São vasculhadas as carrinhas dos feirantes, gente cigana na sua maioria, e mesmo os que não o são por etnia são-no por modo de vida. Estes e estas, condutores e viaturas, procuram passar por todo o lado.
Foi por uma das picadas do pinhal que se meteu a carrinha do Aurício, cigano, casado e pai de cinco filhos. Foi ele que se perdeu e desembocou no meio da fiscalização policial. Teve azar e perdeu a carga, na sua totalidade material contrafeito. Vinha com a mulher e três dos seus filhos, uma bebé, menina de mama, um varão de seis anos e uma rapariga espigada e de olhar vivo, dir-se-ia matreiro se não fosse a seriedade do semblante.
Decidiu abalar daquele lugar para nunca mais voltar no mesmo momento em que pôs a carrinha a funcionar. Decisão apressada e que não iria ter as consequências pretendidas, como veremos brevemente. Seria o barco a opção para atravessar o Sado. Para chegar mais depressa, não, apenas para ver a foz do rio, porque lhe apeteceu. O destino é como é e prega-nos partidas utilizando meios insuspeitos como seja a nossa memória. Foi o que aconteceu a Aurício com a sua, dele, memória. Veio-lhe a esta imagens da sua, dele, juventude, de quando era o filho mais novo de um rebanho de doze, de quando a família era maior e mais unida e se passavam noites no campo a olhar para o céu, durante semanas de acampamento junto de povoações amigáveis. Tudo isto quando se preparava para abandonar o perímetro da Lagoa que ficava do seu lado esquerdo, todas estas imagens que o fizeram olhar com atenção para a berma da estrada e reconhecer um caminho, uma casa velha ali perto, talvez oitocentos metros, erva alta e mato bravio, sem regra nem dono. A decisão que não precisa de permissão para ser mudada visto nunca ter sido comunicada, porque nestas coisas o homem manda, cada coisa no seu lugar. A viragem quase brusca provocou um cair de caixas vazias que os guardas haviam deixado…Quase no gozo…Cabrões da merda…Era preferível andar praí a matar…Filhos da puta…A carrinha que se meteu pelo caminho arenoso em direcção à água em direcção à memória passada, povo das estrelas, antigo de três mil anos antes de Cristo, Norte da Índia, quem sabe, a quem lhe interessa, a memória de Aurício não vai tão longe nem a carrinha consegue tal prodígio, pedra filosofal de qualquer historiador que se preze, o recuo na memória da história…Das histórias…
Parou junto a uma casa velha, em ruínas, metade telhado, metade paredes, metades de portas e janelas por onde passaram vidas inteiras. Conhecera os donos, um casal com dois filhos que sempre o trataram bem, sempre os trataram bem, ao seu pai, à sua mãe, à família. Ficavam ao fundo do terreno que tinha extrema junto à água, suficientemente perto para ouvir o seu restolhar manso no silêncio da noite. Também o mar ficava perto, por detrás da lagoa, também ele marcara presença na memória de Aurício.
O dia estava cinzento, cinzento húmido mas calmo, calmo da chuva que não ficou mais grada e acabou por desaparecer, calmo do vento que se escondeu no horizonte. Desceu sozinho, sem palavras que solicitassem o mesmo destino aos seus acompanhantes, um descer mecânico, movimento incontrolado que o fez tirar o chapéu preto e respirar fundo, tão fundo quanto os seus pulmões, gastos do alcatrão dos cigarros, permitiam. Não foi logo que o viu, nem eu tenho a certeza de ter sido ele o primeiro. O gaiato, o Manelito, também descera, impaciência da idade, apelo da natureza à sua volta, correu a molhar as mãos. Aurício olhava-o distraído quando o viu parar e virar a cabeça. Será que ouviu o grito do filho, certamente, a julgar pelo impulso que o levou para perto dele. Agora estão juntos e olham para a beira de água, para a mulher deitada de cabelos lambidos pelo líquido milagroso, bênção de Santo, nome de lagoa. A mulher está morta, do pescoço cortado um fio de sangue seco indica o local do corte, ferida feia e comprida, boca aberta na carótida.