2007-03-15

A Lagoa VII

Aurício não vai comunicar a presença daquele corpo, chega de polícia. Com a sorte que tenho os gajos ainda me prendem, pensou, quem sabe se com razão. Levou o filho para dentro da carrinha e abalou do lugar, deles só os rastos dos pneus à mistura com tantos outros.
Que repouse em paz a mulher que lá ficou, morta. Assim vai ficar todo o dia e toda a noite até ser descoberta pelo Mantorras, rafeiro alentejano, cão de alma nobre e guerreira, cão pesado, ossudo, de cabeça grande, como os seus antepassados Asiáticos trazidos pelos soldados romanos. O Mantorras estava a brincar com o dono, o Miguel, pastor de quinze anos com inteligência de seis, o único de quatro filhos que ficou com o pai, refém do atraso ficará certamente refém do progenitor enquanto este for vivo, mas era do Mantorras que eu falava. Ao focinho deste cão não escapou o cheiro a morte, melhor dizendo, o cheiro putrefacto da matéria abandonada. Sim, porque existe uma diferença, podemos cheirar morangos e morrer de ataque, só depois o odor acre, a reacção química, a decomposição.
Mas tudo isto para mais tarde, o dia ainda não acabou, a carrinha ainda marca presença, gasóleo queimado no ar, perto de um crime que Aurício não cometeu.
A meio da manhã, Pedro e Alice estão à beira da via rápida, ajudam no fluir de viaturas que saem da berma após controlo, na sua maioria carrinhas, um ou outro mais descarado ou suspeito, é bom não esquecer que já morreram três pessoas, da quarta só nós, Aurício e a família, e os presumíveis autores do crime que a transportaram para a lagoa, têm conhecimento. Estão ressentidos um com o outro, é natural, usaram argumentos duros. Natural será também que tudo passe, que vença a amizade, é recente mas verdadeira, o carácter dos dois não a permitiria de outra forma. Para ajudar à reconciliação, vão ter de fazer horas extras juntos, foram convocados para rondas nocturnas junto da lagoa. Deram-lhes algum tempo, o suficiente para comer, tomar um banho, Pedro convidou-a para jantar lá em casa, a Gabriela iria gostar muito, “Ela simpatiza contigo.”, “Tens a certeza que ela não se vai aborrecer?”, ficou combinado para depois do duche.
Alice entrou cansada em casa, despiu-se devagar, com cuidado, amaciando a pele com os dedos, examinando-a meticulosamente defronte do espelho, no quarto de banho, procurando vestígios de sujidade, vestígios de um dia na rua, na estrada. Alice tomou banho de pé, a água do chuveiro escorrendo-lhe pelo corpo bem desenhado, libertando-a de tensões. Ensaboou-se com cuidado e demorou-se com a espuma, viu-se menina, na banheira, mostrando ao pai que já tomava banho sozinha, que saudades do pai, “Porque partiste pai?...”.
Foi mais lesta a vestir-se. Conseguia fazê-lo de modo rápido e desembaraçado, um pouco masculino, no entanto de uma eficiência comprovada.
Saiu para a rua. Ficou agradada com o entardecer, não haveria chuva, valha-lhes isso. Foi a pé, o Pedro morava a dez minutos e ela gostava de andar. Agradou-lhe o trajecto, as ruas largas e as casa baixas que deixavam ver o céu e as pessoas despreocupadas que regressavam a casa ao fim da tarde. Pensou em si e na sua profissão, o dever moral de proteger, ajudar, salvar o mundo dos males do quotidiano. Hoje sentia isso de uma forma diferente. As mortes, esses estranhos grupos de culto incerto, os interesses de que o Pedro falava, pareciam-lhe demasiado, faziam-na duvidar das suas capacidades. Existem alturas em que é preciso fazer as perguntas, dar as respostas, avaliar para poder decidir. As rondas tornaram-se perigosas, já não eram só larápios e bêbados e pessoal da noite com todo o tipo de substâncias ilícitas e acidentes de viação…Estaria à altura se fosse necessário? Se fosse necessário sacar, sacar e disparar, quem sabe, matar? Teria o sangue frio, suficientemente frio para o Pedro poder cofiar nela? O Pedro acredita que sim, passou pelo mesmo, sabe das dúvidas, conhece algumas respostas. Alice sente-se bem no seu monólogo, encara os cenários inventados como realidades já experimentadas despindo-as da imprevisível brutalidade. Ri-se de si enquanto toca à campainha da casa do Pedro e da Gabriela.


(Ainda Continua...)

1 comentário:

pb disse...

e cá estamos à espera da continuação, desculpa-me este atraso mas a falta de tempo tem sido muita, deixo-te um abraço, primo