2024-03-21

Porque hoje é dia de poesia...

 

Tropeço em imagens de morte



Estou sentado na minha sala de estar.

A televisão está ligada em sintonia com a desgraça.

Uma mulher desapareceu sem deixar rasto.

Um homem morreu após um grave acidente.

Tudo num formato decente,

Largado de forma inocente

Num tom de branda ameaça.

Alguns milhares de crianças ensombram o Natal

Morrendo debaixo de fogo inimigo.

Qual terá sido o pecado para merecer tal castigo?

O homem de fato aprumado

Passa o assunto à mulher que,

Com aspeto asséptico,

Continua com as mortes do dia.

Será o mesmo se eu ligar a telefonia?

Procuro outro canal,

Uma outra informação,

Uma calamidade meteorológica

Que me faça sentir culpado

Da forma negligente como consumo.

Dedilho o jornal digital

Num artefacto chinês.

A maçã que traz no rosto

Não denuncia quem o fez

Mas os mortos são idênticos

E os rostos que os nomeiam

contam sempre a mesma história.

São crónicas de cruzes e estrelas,

Quartos de lua sumidos.

São deveres assumidos

Pelos pais de nobres nações.

É o direto de matar porque sim

É o direito de morrer porque não.

Afinal quem tem razão?

É sempre quem tem a arma na mão.

Tropeço nas trincheiras da guerra

No século de todas as esperanças.

Marte lá longe à nossa espera

E todo esse conhecimento que recebemos.

Dados incalculáveis

Computáveis,

E, no entanto,

Tão vulneráveis.

Estou sentado no meu sofá,

 junto à árvore de Natal

E tropeço nos mortos que enchem o meu ecrã.

Não sei quantas polegadas de horrores

Que, de tão distantes,

Reconfortam do frio.

A sala fica mais quente,

Tudo pior do que dantes,

Mas a alma mais dormente

E o meu corpo mais ausente.

Agora um tiroteio num restaurante,

Uma facada junto ao rio,

Um atropelamento casual

De um velho navegante.

Uma criança abusada,

Um bebé desmembrado

Por um pai atarefado

Que só a queria calada.

Tudo muito composto,

Tudo muito bem arrumado,

Durante hora de jantar.

O famoso horário nobre.

A morte servida entre quinze minutos de vendas.

Vem cá que eu não te aleijo meu bombom de chocolate.

Com uma corda ao pescoço davas um enfeite de Natal,

Amarrado pela cintura, um arranjo floral.

Tudo tão simples.

Os mortos lá longe e eu quentinho na cama.

Com um novo pijama e

Uma lareira ecológica.

Como desafiar esta lógica?

Tudo tão comedido

Tudo sempre no mesmo sentido.

Seis décadas que só me fazem tropeçar

Em imagens de morte.

E o homem fardado a dizer

Que não irá parar

Que enquanto alguém respirar

Enquanto houver alguém para morrer

A bomba irá explodir,

A granada irá detonar,

Haverá metralha no ar

E razões para sorrir.

E o Natal que virá

Será apenas mais um

Para fazer acreditar

Que na mesa comum

Uns comem até fartar

E outros fazem jejum.