2007-07-07

O que me ficou depois de ter escrito IV

A garrafa já está vazia
Raul não sente o alcool.

“Onde estás Joana?!”
“Joana…Joana…Joana…Joana!...?
Adormeci nos teus braços, entreguei-me no teu corpo, aconchego de mãe…”,
“Joana…Joana…Joana…Joana!...
Que vou eu fazer das folhas escritas?”.

A garrafa está vazia e ele tão cheio.
Poucas as palavras para tão cheio conteúdo.

“Tenho cem palavras escritas em Português escorreito, em verso, do verso filosofo, do professor frustrado.”,
“Preciso de ti Joana, dos teus braços, do teu corpo, aconchego de mãe…Não Joana! Estou a mentir-te…Não sei do teu corpo…Agora que não estás aqui!”,
“Joana…Joana…Joana…Joana…
…Lembra-me um sonho lindo…Fausto? Sim! O músico, o Português!”.
“Vou tomar banho, lavar-me de suores residuais, sínteses químicas, produtos das reacções, das minhas reacções…Joana…Joana…Joana…Espera por mim…Joana!...”

Guarda o saquinho de pó branco junto do arroz, na cozinha, cinco gramas mal pesadas.

“Vou desistir, pedir a demissão, a rescisão gentil do contrato…Amigável…Retirem-me da trincheira, da fronteira, da loucura…”,
“Que vou eu fazer dos meus ensinamentos, do meu entendimento, das horas que passei lendo tudo o que os outros pensaram, tudo tão depressa, demasiado depressa…Hoje, depois dos quarenta…Que irei eu fazer depois dos cinquenta?...Talvez F… , Pedro? Sim! O Português, o cantor!”

Abre mais uma garrafa, a última, a que provoca pânico de ausência, demência. Limpou-se delicadamente, vestiu-se de novo, como se novo fosse, como se não se sentisse velho. Ao fim de todos estes anos, tantas as páginas que faltaram.

“Joana…Joana…Joana…”

A demência, o pânico, a ausência…

“…Joana…”

Agora de novo, como se novo fosse. Novo de gestos lentos.

“Onde estás Raul, Dr. Raul, Sr. Raul, Professor Raul, Raul?...Onde estás Joana? Simplesmente Joana…No passado, na rádio novela, simplesmente Maria, simplesmente um nome…”

O saco com o pó branco voltou-lhe à mão. Entretanto Joana discute com o patrão. O patrão sente um enorme desanimo por ainda não a ter levado para a cama.
Raul pega no telefone…

“Atende Joana!...Janta comigo…Não me deixes só…”

A Joana vai sair mais cedo do escritório. Não sabe se vai voltar. O patrão, o Dr. João está a sangrar do nariz, em silêncio, encharcando um lenço de pano fino. A Joana atendeu o telefone.

“Sim, eu vou jantar contigo. Não faças asneiras…Promete-me…”, “Tu sabes que não posso prome…”, “Eu preciso falar contigo.”, “Eu também preciso de ti…”.

A Joana vai chegar a tempo de chamar uma ambulância. O Dr. Raul não irá voltar ao ensino. Seis meses isolado na serra da estrela fizeram dele um homem novo. Joana vai ficar com ele, ama-o. Foi ela que o levou para casa dos avós e lá ficou nos tempos mais díficeis. Depois arranjou emprego em Coimbra…Do resto não sei…Um conto é mesmo assim, é uma fracção de tempo, um pouco de vida, da vida…

FIM


P.S. Vou de férias. À Titá, ao PB, ao AD, à Isabel, ao Rocha de Sousa, à Elsa, ao Talk, enfim, a todos os que me visitam e comentam um abraço.
Até sempre!
(Sim, são estes os Blogues que eu mais visito)

2007-07-02

O que me ficou depois de ter escrito III

“Querida Joana…”, o desabafo, o arrependimento. Joana foi para casa cedo. Saíu ainda o sol não tinha aparecido. Preocupou-se com o quarto, com o Dr. Raul que desmaiara a altas horas da madrugada pregando-lhe um susto de morte. Chegou a falar com a emergência médica, pediu informações, instruções, procedimentos, agradeceu e desligou…O Raul tinha acordado e procurava o copo, cego, de gestos desconexos. Aconchegou-o no seu colo, adormeceram os dois…Antes de sair arrumou o quarto, silenciosa, vigilante do sopro de vida do seu amante. Está apaixonada, sempre gostou de se apaixonar, de todas as vezes sofreu…Sina de quem vive intensa a dependência amorosa…Mas quem poderá dizer que viveu sem a sentir?
Joana foi de carro para a cidade, ficou presa no transito e chorou enquanto ouvia as notícias das nove. Apeteceu-lhe telefonar mas não foi capaz. Agarrou o telemóvel com força até o sentir queimar…Largou-o bruscamente. Procurou o lenço na mala e deixou o motor do carro ir abaixo. Atrás de sim as buzinas começaram a tocar, uma mistura desagradável de sons estridentes que lhe agravou a tensão. Fechou os olhos e sentiu correrem-lhe lágrimas pela cara, percebeu que chorava novamente…Por momentos tudo despareceu…O motor do carro está a funcionar. Olhou-se no espelho retrovisor. Dois grandes riscos negros nas faces, um em cada uma, emprestavam-lhe um ar sinistro de palhaço assassino. Simétricos os riscos, o olhar que endureçera, “Reage Joana!”, “Que suplício!”, “Com sorte daqui a meia hora largo o carro.”.
Deixou a moeda habitual a um dos arrumadores habituais. Este revezava-se com mais dois que protegiam o local contra possíveis intrusos. Era sem dúvida o mais forte. Dizia-se Romeno, confessava a fome, os vícios, os crimes e mostrava uma garra fora do normal para quem anda naquela vida. Joana nunca se sentira incomodada com ele, antes pelo contrário, preferia a sua presença à dos outros dois “sócios”. Foi gentil o suficiente para reparar no desarranjo de Joana, suficiente para lhe perguntar se ela precisava de alguma coisa, para lhe garantir que não precisava de se preocupar com o carro e que o dia ia estar muito bonito. Sim, a Joana não tinha dúvidas quanto a isso. Precisava limpar a cara, tentar-se apresentável. Entrou no café que ficava mesmo junto à entrada do escritório de advogados onde trabalhava. Cumprimentou a empregada mais velha e fez-lhe sinal que precisava de ir à casa de banho. Esta desimpediu a ponta do balcão e preparou-lhe um chá bem quente com uma torrada.
Joana deixou-se ficar, de mãos no lavatório, olhando-se no espelho, “Gosto tanto de ti Raul, deixa-me pelo menos provar o mel… antes do fel…”, riu-se de si, da rima feita ao acaso. O que a juventude não faz, não há nada que pague a juventude, um sorriso, uma expressão que muda, os vinte cinco anos de Joana a mostrar frescura, sangue que é quente, contracenso, a frescura do semblante, o sangue quente…
Bebeu o chá em silêncio, perdeu-se na conversa de dois homens que discutiam uma contratação do Benfica. Enquanto mastigava a torrada reflectiu sobre a facilidade que os homens tinham em descarregar as suas frustrações no futebol. Nem todos eram assim, mas para o caso isso também não interessava, também as mulheres tinham os seus truques. No seu caso não eram as novelas ou as revistas, mas honestamente não poderia dizer-se imune a esse tipo de descompressão. Gostava de fazer compras, gostava de comprar, isso fazia-a sentir-se bem…Quando não estava a ler, a estudar, a escrever, a amar…Comprar e vestir-se…Joana era uma mulher bem feita, talvez um pouco magra, mas a roupa assentava-lhe bem e ela gostava da sensação.
Libertou-se do balcão com um beijo para a dona Marta que apontou a despesa num bloco.
Agora o trabalho, o escritório. Primeiro a entrada do edíficio, é preciso dar ordem às coisas…O edificio, que tinha beneficiado de melhoramentos recentes, era ostensivamente fruto dos anos sessenta, habitações plurifamiliares que se foram desabitando, pilar, viga. Não gostava dele nem o sentia confortável. Hoje, em particular, ser-lhe-ia ainda mais desagradável…


(Cont.)


P.S. Perdoem-me o espaçamento. Este conto vai ter de acabar até ao fim da semana...Depois...Férias...Descanso...Um abraço a todos os visitantes.