2007-07-02

O que me ficou depois de ter escrito III

“Querida Joana…”, o desabafo, o arrependimento. Joana foi para casa cedo. Saíu ainda o sol não tinha aparecido. Preocupou-se com o quarto, com o Dr. Raul que desmaiara a altas horas da madrugada pregando-lhe um susto de morte. Chegou a falar com a emergência médica, pediu informações, instruções, procedimentos, agradeceu e desligou…O Raul tinha acordado e procurava o copo, cego, de gestos desconexos. Aconchegou-o no seu colo, adormeceram os dois…Antes de sair arrumou o quarto, silenciosa, vigilante do sopro de vida do seu amante. Está apaixonada, sempre gostou de se apaixonar, de todas as vezes sofreu…Sina de quem vive intensa a dependência amorosa…Mas quem poderá dizer que viveu sem a sentir?
Joana foi de carro para a cidade, ficou presa no transito e chorou enquanto ouvia as notícias das nove. Apeteceu-lhe telefonar mas não foi capaz. Agarrou o telemóvel com força até o sentir queimar…Largou-o bruscamente. Procurou o lenço na mala e deixou o motor do carro ir abaixo. Atrás de sim as buzinas começaram a tocar, uma mistura desagradável de sons estridentes que lhe agravou a tensão. Fechou os olhos e sentiu correrem-lhe lágrimas pela cara, percebeu que chorava novamente…Por momentos tudo despareceu…O motor do carro está a funcionar. Olhou-se no espelho retrovisor. Dois grandes riscos negros nas faces, um em cada uma, emprestavam-lhe um ar sinistro de palhaço assassino. Simétricos os riscos, o olhar que endureçera, “Reage Joana!”, “Que suplício!”, “Com sorte daqui a meia hora largo o carro.”.
Deixou a moeda habitual a um dos arrumadores habituais. Este revezava-se com mais dois que protegiam o local contra possíveis intrusos. Era sem dúvida o mais forte. Dizia-se Romeno, confessava a fome, os vícios, os crimes e mostrava uma garra fora do normal para quem anda naquela vida. Joana nunca se sentira incomodada com ele, antes pelo contrário, preferia a sua presença à dos outros dois “sócios”. Foi gentil o suficiente para reparar no desarranjo de Joana, suficiente para lhe perguntar se ela precisava de alguma coisa, para lhe garantir que não precisava de se preocupar com o carro e que o dia ia estar muito bonito. Sim, a Joana não tinha dúvidas quanto a isso. Precisava limpar a cara, tentar-se apresentável. Entrou no café que ficava mesmo junto à entrada do escritório de advogados onde trabalhava. Cumprimentou a empregada mais velha e fez-lhe sinal que precisava de ir à casa de banho. Esta desimpediu a ponta do balcão e preparou-lhe um chá bem quente com uma torrada.
Joana deixou-se ficar, de mãos no lavatório, olhando-se no espelho, “Gosto tanto de ti Raul, deixa-me pelo menos provar o mel… antes do fel…”, riu-se de si, da rima feita ao acaso. O que a juventude não faz, não há nada que pague a juventude, um sorriso, uma expressão que muda, os vinte cinco anos de Joana a mostrar frescura, sangue que é quente, contracenso, a frescura do semblante, o sangue quente…
Bebeu o chá em silêncio, perdeu-se na conversa de dois homens que discutiam uma contratação do Benfica. Enquanto mastigava a torrada reflectiu sobre a facilidade que os homens tinham em descarregar as suas frustrações no futebol. Nem todos eram assim, mas para o caso isso também não interessava, também as mulheres tinham os seus truques. No seu caso não eram as novelas ou as revistas, mas honestamente não poderia dizer-se imune a esse tipo de descompressão. Gostava de fazer compras, gostava de comprar, isso fazia-a sentir-se bem…Quando não estava a ler, a estudar, a escrever, a amar…Comprar e vestir-se…Joana era uma mulher bem feita, talvez um pouco magra, mas a roupa assentava-lhe bem e ela gostava da sensação.
Libertou-se do balcão com um beijo para a dona Marta que apontou a despesa num bloco.
Agora o trabalho, o escritório. Primeiro a entrada do edíficio, é preciso dar ordem às coisas…O edificio, que tinha beneficiado de melhoramentos recentes, era ostensivamente fruto dos anos sessenta, habitações plurifamiliares que se foram desabitando, pilar, viga. Não gostava dele nem o sentia confortável. Hoje, em particular, ser-lhe-ia ainda mais desagradável…


(Cont.)


P.S. Perdoem-me o espaçamento. Este conto vai ter de acabar até ao fim da semana...Depois...Férias...Descanso...Um abraço a todos os visitantes.

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