2012-12-22

Este ano não há Presépio!

Procuro presépios. Os presépios são raros. É meia-noite, um pouco mais, isto diz-me o relógio, diz-me o grupo de pessoas que se dirige para a portaria. No relvado estão estacionados os bonecos de lata, pedaços de metal que reluzem como ouro. Não distingo os pais do menino, menino feito de pedaços. Chego-me perto do menino e deixo-me observá-lo. Os meus olhos percorrem-lhe as pernas, os braços, o corpo e ele, menino, tão metálico deixa-se estar, deitado, tão metálico como as restantes testemunhas. Ouço vozes que me chamam, Paulo! Vens ou não…Vou já, apenas mais um espaço neste tempo de que preciso para…Vou já! Estou a ir…E no entanto não vou, os olhos presos no metal do menino…Jesus…


Já cá fora sinto-lhe a presença, ainda metálica, a mãe metálica, o pai metálico, os reis que só são dois, também eles metálicos, tudo tão frio…Está frio e a névoa absorve o tempo que me leva a casa. Deixem-me confessar-vos que a casa são pessoas. Eu nunca voltei a casa…A casa é hoje aquilo que nunca foi. O presépio? Onde está o presépio?

Volto para quem amo, para as mulheres que amo, mesmo que não as saiba amar…mas quem sabe? Onde estão os presépios? A cidade nua dos retornados foi esquecida…Quem se lembra duma cidade nua perdida entre acessos inacabados, o dinheiro que falta onde também falta a vergonha. São tantas as luzes…Sim, são as luzes do meu carro, bateria com “B” de Belém, haja dinheiro e a estrela irá aparecer ao menino, menino de carne que foge aos Herodes. Hoje a carne é fraca e o Herodes não está…Ou está onde sempre esteve…Palácio…No Palácio…De Belém….

Onde está a representação do mito? Não me roubem o mito que me obrigou a ficar sentado à espera do seu nascimento durante tantos anos…Os primeiros anos…Os anos que construíram a minha carne, a minha alma, a minha…Esperança! Onde está o Presépio?

As luzes são poucas e gastas, tudo está gasto. Também eu me vou gastando, mas não me importo, o metal da minha carne é para se gastar. Sinto falta das luzes…Dizem-me que já não há dinheiro…A luz foi atrás do íman germânico…Jesus Cristo era Judeu mas o Natal agora é Alemão! Mutter Merckle não me apague a luz…

No deserto árido da Baviera a areia sabe a neve…É fria como as moedas que trago no bolso. Não fosse o meu calor e elas queimariam. Onde estão os Presépios? Os pinos, um a um, explicam-me a crise com palavras simples…É por aqui! Hoje os pinos são a estrela de Belém, os plásticos cheios de água que me barram a estrada enquanto procuro o mar…As árvores e o mar…Tudo tão perto e tão longe…

Onde estão os presépios?

O menino portou-se mal! Este ano não há Presépio!

2012-12-10

De "O Livro dos Medos" por Paulo Guerreiro

VIII


A pátria fede de vapores impróprios enquanto eu canto o hino agarrado às pernas de um jogador.

A pátria evapora-se, vítima da globalização, e eu condenso-lhe as dores.

Eu sou a pátria que sofre, tenho-lhe um amor dorido e profundo.

Sou eu o órfão quando ela morrer.

Sei-lhe a bandeira no sangue e a música em que me embalo.

“Heróis do mar, nobre…”…Sou porque te amo.

Que nasça do meu amor a tua perfeição.

Nos edifícios do poder escrevem-se as palavras da minha vergonha.

Viva a Republica! Viva a Democracia! Viva a Grécia que as inventou! Morte ao Rei que as usurpou!

Ela foi cruz e é quinas, castelos e esfera anilar, “Nação valente e imortal...”.

Levanto-me eu todos os dias porque acredito em ti…No teu esplendor…No meu esplendor.

Desvanece-se o sonho e resta-nos a memória do que não vivendo, aprendemos.

Camões! Quem nos canta agora?

Às armas! Às armas!

A pátria dilui-se e expurga os seus filhos…

Eu quero a terra onde nasci,

Quero pertencer a esse sonho de reconquista que não fui eu que inventei…

D. Henrique não foi morrer em Jerusalém!

Eu também quero morrer aqui, mesmo que tenha de voltar!

Contra quem não sei…

Marchar…Marchar…

2012-11-29

Another F.... day!

E a luta não pára!


Deste lado da manhã vejo abalar quem luta. A cabeça na almofada revolta-se com o corpo semi adormecido. Levanta-te!

O corpo não se move...

Levanta-te....

Passou meia hora e o relógio lembra-me que o dia já começou.

O espaço da cama à rua é curto, a cabeça fê-lo curto.

O banho que tomei, o pequeno almoço que não...

Onze graus Celsius, é o carro quem o diz, eu ...olho e acredito, porque não?

Faz tempo que não nado...tenho medo do pulso? Não! desculpa de um corpo que não se quer cansar? Talvez...

Passaram duas horas, o espaço de cá até lá é curto, o sol fê-lo curto.

A água da piscina está morna, faço reset ao cronómetro.

Já lá vai o tempo em que me arrepiava com o azul.

São mil e quinhentos metros porque eu assim decidi, que se lixe o pulso e a dor, não mais de quarenta minutos, o chapinhar ritmico das mãos que se lançam e volteiam por debaixo do meu corpo, a cabeça que se vira, à esquerda, à direita, à esquerda, à direita, contei sessenta vezes aqueles vinte cinco metros.

Durante quarenta minutos revi a luta dos meus companheiros, a minha luta.

Não me lembro dos meus movimentos mas sei que foram reais, o batimento cardiaco lembra-mo.

O almoço, o filho da p... do jornal que continuo a comprar por puro masoquismo, a espera até às três, a viagem até á clínica...Charles Mingus....pareçe-me que sim.

Boa tarde!

A rapariga de quarenta anos faz-me um aceno, pede-me que me aproxime...Hoje consegui passar de uma cama para a outra sózinha....Boa!!

O sexagenário já consegue levantar o braço, metade da trombose já foi derrotada...

aperto-lhe a mão e ele sorri, a frase que ele soltou não é preceptivel...O olhar sim!

Tanta luta!

Doi-me o pulso mas a cabeça faz-me lembrar que a minha dor é outra....

Estive ausente dois meses da minha luta....

Os jornais não falam e a televisão ausenta-se...Têns emprego? De que te queixas?

Tenho saudades da trincheira, sofro na retaguarda...

Eu sei que alguém percebe do que estou falando....o telefone, perdão, o telemovel lembra-mo...está quase!

Quando voltar hei-de arrepender-me mas é essa insatisfação que me mantém vivo...

Boa noite!

2012-11-01

The End

Um dia Jó deu por acabado o trabalho. Vinte e duas músicas, perto de oitenta minutos de gravações. Estava-se em Dezembro e chovia. A água escorria abundante nas ruas de lisboa mas não conseguia lavar as mágoas de um povo martirizado. Os “Não!” tinham chegado a um impasse. Traduzir em CD aqueles dois meses era tarefa que nenhuma produtora estava disposta a realizar. Quatro cinquentões desconhecidos gravando um punk Pós-punk não era apelativo para o comum dos consumidores. Restavam os palcos, mas que palcos? Palcos secundários de festivais de verão, festivais de Inverno, bares obscuros, a rua? A rua é sempre uma solução, talvez a única solução garantida. Os conhecimentos de Jó conseguiram-lhe um pequeno armazém em Sacavém. O armazém era pequeno. Com sorte poderiam enfiar lá quinhentos melómanos esquizofrénicos, daqueles que gostam de tudo o que é marginal, de tudo o que aparentemente nunca será conhecido, o sentimento de presenciar algo único. Limparam-no e conseguiram, com o dinheiro da Joana e uns amigos da Catarina, que este estivesse apresentável no dia vinte e dois de Dezembro, o dia em que os “Não!” se iriam estrear. O palco era um cais de descargas existente no interior do armazém o que evitou montagens complicadas. As luzes, a mesa de mistura e as colunas foram alugadas a uma empresa de eventos que trabalhava para as feiras de Verão. Os amplificadores foram emprestados pelo estúdio. Os instrumentos eram pertença dos membros do grupo. Ainda pensaram divulgar um pequeno vídeo no Youtube mas depressa abandonaram a ideia. A fazer um vídeo de divulgação esse seria feito no dia do concerto com a ajuda de um amigo do Duarte que possuía uma pequena empresa de produções e cujo material estava hipotecado, seria esse o seu último trabalho.


Esse dia iria ficar memorável por dois aspectos negativos, um meteorológico e outro geológico. Depois de quatro dias de chuva esta intensificou-se e provocou diversas inundações em Lisboa com vários cortes de estrada e trabalho ininterrupto para os bombeiros. À hora do concerto ainda se avaliava as condições da sua execução. Por diversas vezes durante o dia tinha havido cortes de electricidade e temia-se que estes pudessem acontecer enquanto a banda estivesse a tocar. Não fossem a centena e meia de pessoas que se tinham deslocado ao armazém e a banda não teria actuado. O armazém apresentava-se escuro e frio. A apresentação do “Não!” estava destinada a ser um fiasco, era pelo menos essa a ideia que teimava em fixar-se na cabeça de Jó. Costuma-se dizer dos resistentes que são poucos mas bons. Esse lugar comum aplicava-se perfeitamente àquele reduzido número de pessoas que ali estavam. PP tinha trazido cocaína e um saco de erva. Numa pequena cabine improvisada com panos, que lhes permitia alguma privacidade, todos cheiraram umas linhas e fumaram uns charros. Duarte e Jó abriram uma garrafa de tinto, Paulo e o Holandês bebiam whiskey em copos de plástico. Vestiam de vermelho e preto a pedido de Jó que cedera a uma sugestão de Cátia, ela própria lhes emprestaria a roupa. Sim, Jó acabara por convidá-la para jantar e a conversa que tiveram nessa noite converteu-se numa relação.

Começaram a tocar com meia hora de atraso na expectativa de chegar mais gente, entretanto a chuva acalmara um pouco e conseguia-se distinguir o som de sirenes e o barulho de água a correr pelas caleiras. Tinham preparado dezasseis músicas e tocaram como programado até à sexta, altura em que o segundo fenómeno, o geológico, se manifestou. A terra começou a tremer mesmo depois de Jó ter apelado á luta armada, à irmandade dos povos trabalhadores da Europa, agora desempregados e a passar fome. A terra tremeu uns longos sessenta segundos. Durante todo esse tempo, e logo após o apelo de Jó, Pedro tinha arrancado um solo de guitarra cuja destorção foi ampliada pelo terramoto. Por detrás do solo o baixo de PP manifestou-se imponente marcando numa perfeição épica a bateria de Duarte, mais propriamente o trabalho de pés no bombo. Muitas vezes a simplicidade produz estes momentos mágicos. Ainda se ouviam gritos e aplausos quando a luz acabou para não voltar mais a acender-se. O primeiro e único concerto dos “Não!” acabou nesse instante.

No dia seguinte souberam que o terramoto tinha provocado vários danos na cidade. Os danos não eram só materiais pois devido ao desabamento dos edifícios mais antigos morreram cerca de cinquenta pessoas e houve cerca de oitocentos feridos. A zona de Lisboa tinha sido a mais atingida e chegou-se a recear um tsunami pois o epicentro do terramoto estava a pouco mais de duzentos quilómetros da costa. Os seis na escala de Richter eram enganadores. A chuva tinha ajudado ao caos e manteve-se durante mais dois dias. Foi decretado luto nacional e de repente o excerto da última canção dos “Não!” passava na televisão como testemunho vivo e musical da tragédia. Este havia sido colocado no Youtube juntamente com todas as outras cinco músicas do reportório que haviam conseguido tocar. Por causa desta divulgação todas as outras músicas tiveram enorme popularidade na net. O país de rastos limpava as feridas e o governo jazia inerte de soluções. Pedia-se a tropa na rua e o apelo à luta armada do Jó começou a aparecer em cartazes e publicações marginais, em papel e na rede.

Mas os “Não!” estavam condenados. Pedro que não havia recuperado do princípio de overdose no dia do concerto acabou por morrer duas semanas depois de ataque cardíaco. Pedro tinha ficado nas mãos de PP que estava eufórico. A adrenalina provocada pelo terramoto e pela tempestade, e potenciada pela cocaína, levaram-no a correr a cidade de automóvel com a sua companheira Anne. Com eles ficara Pedro que consumiu mais do que o seu corpo já frágil conseguia aguentar. Eram nove da manhã quando deu entrada no hospital do Barreiro. De olhos alucinados e junto da sua maca onde Pedro jazia meio inconsciente, PP gritava que tinha sido o maior concerto da sua vida.

Jó foi chamado às autoridades e detido por instigar à violência armada. Durante dias e até ele ser libertado houve desacatos e escaramuças junto ao Governo Civil. Quando saiu soube da morte de Pedro e fechou-se em casa sem falar com ninguém. Cátia, que entretanto tivera de passar uma semana em Londres, avisou Catarina do sucedido. Foi esta que levou o Jó até ao avião e o embarcou. Foram ambos para o sul de Inglaterra, para uma casa com vista para o canal da Mancha. A Cátia tinha lá uma casa de férias e logo após ter terminado uma série de reuniões de trabalho juntou-se a Jó permitindo a Catarina regressar a Portugal.

Com a morte de Pedro e o desaparecimento de Jó, Duarte não aguentou a pressão da comunicação social que não o largava. As palavras dos “Não!” Estavam neste momento ligadas a facções de extremistas que potenciados pelos acontecimentos começaram a provocar distúrbios que iam desde incêndios a explosões de pequenas bombas artesanais em tudo o que eram instituições do estado. Não foi de admirar a sua partida precipitada para Angola. A sua companheira sempre conseguira o que queria.

Quanto a PP desapareceu de Portugal outra vez, diz-se que para a Alemanha. Levou consigo uma cópia dos originais dos “Não!”. “Uma banda do caralho!”, foram as últimas palavras que se lhe ouviram em território nacional antes de atravessar a fronteira em Vilar Formoso. Junto dele a Anne conduzia o BMW.

Por cá tudo a piorar numa europa em queda livre e com conflitos garantidos. Nada como saber que a velha senhora se mantém fiel aos seus princípios…

De Portugal para o mundo a contribuição dos “Não!” a banda de punk pós-punk que gritou a revolução!

Foda-se a democracia dos burgueses!

Foda-se o medo e os votos que não servem!

A decisão vê-se nas urnas?

A decisão ou o cadáver?

Eu sou Português!

Eu não sou um menino bem comportado!

(Primeira estrofe do poema “Eu não sou um menino bem comportado”, da música dos “Não!” “Bem comportado”)



FIM

2012-10-17

As gravações

O começo das gravações iniciou-se em Outubro e durante todo o mês os quatro trabalharam arduamente. Ao fim das duas primeiras semanas tinham catorze faixas acabadas. O país entretanto rolava sobre uma massa escorregadia. Os portugueses vinham para a rua a cada anúncio governativo. Por enquanto as manifestações de desagrado ficavam-se por palavras de ordem. Ouvia-se o nome do primeiro-ministro, do presidente, do ministro das finanças, da troika, do FMI, da Ângela M., de todos aqueles a quem o povo, na sua generalidade, apontava como responsáveis pela situação desesperada em que o país se encontrava. Fechados em estúdio durante o dia os “Não!” iam para a rua durante a noite. Incógnitos e observadores misturavam-se no meio da multidão. Quando finalmente esta dispersava procuravam abrigo nos bares abertos de Lisboa. Nesses dias ensaiavam sem ter dormido, muitas vezes ajudados por presentes que PP trazia sempre consigo.


O Holandês tinha recomeçado a beber. Embora isso não afectasse os ensaios notava-se que o seu corpo não gostava do tratamento. Emagreceu e andava macilento. Tocava sentado e de cabeça baixa, muitas vezes de olhos semicerrados como se a música fosse o único contacto com a realidade. Jó e Duarte já se tinham apercebido desse estado de espírito mas o som que conseguiam através do Pedro era de tal maneira intenso que depressa se esqueciam. PP como sempre era alheio a esses pormenores e andava deliciado com os resultados da banda. Anna ia muitas vezes esperar por ele e nesses dias davam boleia ao Pedro e iam dormir a casa dele. Anna gostava da vida marginal e esta banda de som estranho cujos membros, espécie de adolescentes envelhecidos por uma máquina do tempo, que se comportavam como se tudo o resto não interessasse, era o objecto ideal para dai extrair novas sensações. Apaixonada por fotografia utilizava a máquina amiúde quando se encontrava com eles. Tal como PP, Anna andava um passo à frente da realidade observando-a de um andar superior do qual descia quando precisava de alimentação fosse ela comida ou apenas contacto humano.

Jó continua a viver sozinho. Assim ficou durante todo o mês. Chega a casa e pega na viola acústica. Revisita o que fizeram, imagina-lhe novas sonoridades, outra forma de dizer as palavras, outra forma de as cantar, de as gritar e porque não, de as murmurar. Por duas vezes a Joana foi visitá-lo, para saber como iam as coisas, se estava a gostar do estúdio, das gravações. Jó que sempre teve um ar circunspecto agora tem um brilho diferente nos olhos. Como que se pudéssemos entrar por eles e lá dentro encontrar um mundo diferente, um paraíso escondido, um tesouro por revelar. Esse brilho não é assim tão evidente que possa ser descoberto por quem não conheça o Tristezas. Joana conhece bem o pai, para mais o seu amigo Alberto, dono do estúdio onde gravam os “Não!”, revelara-lhe, aquando de uma curta visita, o empenho com que eles se dedicavam ao trabalho. Joana sente-se feliz e está tentando levar a Catarina ao pai. Era muito importante para ela que a Catarina se reconciliasse com o feitio do pai. De qualquer modo a última visita teve o propósito de avisar Jó que a sua amiga Cátia, a empresária de moda que lhe alugou o quarto, vai voltar para Lisboa por uma temporada. Jó não ligou muito à notícia. Quando ela abalou perguntou-lhe “Preciso arranjar outro quarto?”, “Não pai, não te preocupes. Além disso ela simpatiza contigo, bem que podiam sair juntos um dia, para jantar, conversar, sei lá…”, “Ainda bem, agora não me dava muito jeito sair daqui…”, “Não te preocupes…”, Joana!”, “Sim!”, “Talvez eu a convide para jantar.”. Trocaram um sorriso cúmplice antes de se despedirem.

Duarte está cada vez mais dividido. A banda está a tocar bem e ele está a desfrutar. O problema é a Rita. Foi difícil convence-la a ficar mais uns tempos. Toda a sua estabilidade actual depende daquela mulher. Continua a ir a Sintra tocar, não pode deixar de o fazer e isso tem-lhe tirado todos os minutos de descanso de que precisa. Ela ainda não se foi embora porque ele lhe dá atenção e Sintra faz parte disso. “Duarte, o meu irmão já me telefonou a confirmar. Quando o Casino estiver acabado tens emprego garantido, como músico se quiseres…Ou outra coisa qualquer. Gostava mesmo de voltar para a minha terra.”. Duarte sabe que ela já acabou o curso de Direito. Duarte sabe também que a música para ela é um passatempo e que ela pretende voltar para cuidar dos negócios do pai a meias com o irmão. Se for com ela não terá problemas de dinheiro. E o país está a enjoa-lo tanto…E o raio da banda que está a tocar mesmo bem…Merda!!!....

2012-10-08

Um encontro a quatro

Os encontros, assim como os desencontros, são, em determinadas situações, momentos de ruptura, de decisão, de confirmação ou negação perante destinos gastos. O encontro que juntou estes quatro homens teve um pouco de tudo isso. Ruptura e tensão entre as urgências de uns e as incertezas de outros, decisões mais prometidas que confirmadas, destinos, todos eles gastos pelo uso continuado.


Juntos mediram-se, avaliaram-se de intenções, gesto mecânico e instintivo que a idade apura em detrimento da aptidão física. Fizeram-no num ambiente de incredulidade, talvez tomando consciência que este tipo de reuniões ainda os estimula e surpreendendo-se por esse motivo.

Jó falou a maior parte do tempo, o projecto era dele, era ele o vendedor. Que motivação faria os outros mexerem-se?

O Duarte preocupava-o. Mulher bonita que queria voltar para Angola, parceira musical com voz de anjo negro e corpo de deusa africana, a desvantagem estava do seu lado.

Contrariando as espectativas iniciais Pedro estava disponível, mas também estava desgastado. Não era só o aspecto físico. Mentalmente encontrava-se perturbadoramente distante. Continuava, no entanto, a ser um excelente guitarrista.

“PP” era um caso diferente. Esse ia a todas, nem que fosse só para ver. O único problema era o tempo. As decisões não se poderiam arrastar, “PP” não era homem de grandes paciências. “PP” era instável mas de grande intensidade, assim aguentasse o corpo. Para já não teria de preocupar-se com ele.

A batalha com Duarte estava meio ganha. Este garantira adiar meio ano a sua partida para Angola. “E a miúda?”, “Ela fica comigo…por mim.”, “E se o projecto arrancar, o que é que fazes?”, “É um risco que corres. Pode ser que ela se entusiasme pela ideia e deixe de ser um risco.”, “Tu sabes que não há lugar para ela na banda, não sabes?!”, “Nem ela quereria entrar num projecto assim.”, “Eh pá! Eu não tenho nada contra a miúda.”, “Eu sei, mas continua a ser verdade o que te disse.”. Havia um pouco de rispidez nas palavras que nunca soaram a ironia. Entre Duarte e Jó as palavras nunca tiveram mais que um significado, era assim que os dois funcionavam e isso não iria mudar. Foi por esse motivo que Jó rematou a conversa com um conclusivo “Fico a contar contigo até Abril.”.

Motivos diferentes uniam aqueles quatro homens já na casa dos cinquenta. Jó acabara por ter sorte pois a probabilidade das suas primeiras escolhas terem aceitado o convite, presente envenenado e que precisava de algum desapego material, era reduzida.

Verdade seja dita que Jó já tinha tudo organizado. Estúdio disponível, emprestado sem custos por um amigo de Joana que entre vários negócios se entregara à produção de bandas de Pop Rock como forma de ocupar algum do seu tempo livre. Os instrumentos estavam incluídos para quem gostasse do que havia disponível na loja do amigo de Joana. Só o Duarte irá, por questões logísticas, precisar de utilizar o material do estúdio.

Para cima de trinta versões acústicas para trabalhar e desconstruir, mais de cinquenta poemas para encaixar num puzzle que se pretendia anárquico e subversivo sem a cosmética e o apelo da juventude. Aparentemente um projecto condenado a morrer, num país também ele a morrer.

Da próxima vez que se encontrarem será em estúdio.

A voz grave de Jó sobressai entre o baixo de “PP” e a bateria de Duarte. Secção rítmica forte e em sintonia que deixa a guitarra, numa distorção murmurada, fazer de coro.

“Tudo é cinzento,

Se não contarmos com o vermelho dos telhados.

O branco das paredes perturba, mas é branco,

Sem mácula, sem nada que insinue imperfeição,

Eu hoje fui à manifestação!”



“Vou esperando, gerúndio de algemas guinchadas,

Nos meus pulsos de pele branca e polida,

Esperando porque é esse o verbo,

Sofrer será realidade hoje,

Para outra um pouco mais tarde…”



Gravarão esta música à terceira tentativa e chamar-lhe-ão

“Vício de sofrer”

(cont.)

2012-09-29

“Pedro!!!”

O nome, ou o grito, dentro do quarto escuro, talvez nem tanto. Um sussurro amplificado, distorcido pelo álcool, codificado por químicos.


“Pedro! “

O eco do nome ou do grito sussurrado, olhos que procuram ver o que aos ouvidos pertence.

“Pedro! Vá lá, olha para mim.”

A voz que parece familiar, sem idade. Uma voz de mil imagens, desprendida de retratos presos no tempo. A voz circula no escuro do quarto, balança suavemente e perde-se na memória ainda agora presente.

“Pedro?”

Que som é este à volta da tua voz? A pergunta fica retida numa camada espessa que separa o que queremos do que fazemos. A tua voz já tem nome…Espera um pouco…Deixa-me recordar-lhe o ritmo, o tom…

“Paulo?”

PP olhou para Pedro. “Queres ouvir a primeira música da banda?”.

A resposta perdeu-se num pequeno fio de baba, dos olhos abertos pouco se via.

Endireitou-se na cadeira e acomodou a viola baixo por debaixo do braço direito. A voz do Paulo encheu a escuridão acompanhada pela percussão repetitiva de uma nota grave…



…Em nome do Pai, do Não! E da miséria.

Em nome do século que acabou.

Em nome do nada que nos deixaram.

Em nome de quem não tem futuro…



“Paulo?”, “Estás ai Paulo?”, “Em meu nome também…Não te esqueças?”. A nota grave larga o ritmo e procura uma melodia distorcida pela violência do contacto entre as cordas e os dedos. “És tu PP?...Ainda aí estás?”. A nota grave baixa o volume e retoma a percussão repetitiva…



…Em nome da sorte que não é nossa,

Em nome da estrada que não nos leva,

Em nome do destino que não queremos,

Em nome do diabo que nos carrega!



“PP? Estás a ouvir-me PP?”, “Falas do diabo porquê?”, “Paulo, eu estou a vê-lo…Ao diabo…tem tantas Cores…”. “Tem calma Pedro!”. A nota grave e monótona…E a voz…



…Em nome da mãe que perdeu o filho,

Em nome do filho que perdeu a mãe,

Em nome do pai que perdeu os dois,

Em nome de mim que sou um refém.



“Eu perdi a mãe dos meus dois filhos. Eu…de manhã…falei com os meus filhos…”, “PP! Tu tens filhos?”.



…Em nome de coisas, nomes e factos.

Em nome da merda que nos afoga a garganta.

Em nome do silêncio e do medo,

Em nome de quem nos espanca.



A voz eleva-se um pouco mais, ganha também um pouco de rouquidão, assento amargo de inflamação mal curada.



…Em nome do nome que nos querem tirar,

Em nome do nome da luta que ficou por travar,

Em nome do nome da raiva e da vergonha,

Em nome do nome de tudo…



Em nosso nome, Holandês!



O dia amanhecia no quarto de Pedro…Um ano mais velho. O Paulo estava convencido mas Pedro não estava em condições para se aperceber disso.

Um encontro a quatro está para breve…

2012-09-11

Na mesa


Sábado à noite em Sintra. Sintra trazia-lhe boas memórias. Tinha nove anos quando o comboio o transportou pela primeira vez à vila. Sem dinheiro para o bilhete viajara à “pendura” durante os trinta minutos que demorara a fazer o percurso. O comboio, cinzento e de chapa frisada tinha uns olhos tristes e redondos. Os bancos da segunda classe eram forrados com uma napa verde e resistente. Eram bancos para dois e para três passageiros, sem divisão que os separasse. O apoio de braço era metálico e redondo. Todas as carruagens tinham átrios de descarga onde se encontravam as portas que lhe davam acesso. Esses átrios tinham dois varões centrais que permitiam a segurança de quem viajava em pé. Quatro pequenos bancos encontravam-se com os tampos encostados às anteparas do átrio. Jó viajara num desses bancos com um olho no corredor e o outro no botão do ar comprimido, que permitia a abertura manual das portas.
Hoje a jornada é diferente. O comboio é mais elegante, de bancos individuais. Os espaços abertos entre as estações que outrora mostravam os campos desapareceram. Toda a linha de Sintra é hoje um enorme monumento ao cimento. Eis onde se encontra um quarto da população de Portugal.
 Já é noite. Jó preferiu jantar em casa. Derramou uma garrafa de tinto com catorze graus, alentejano, grelhou um bife da vazia na chapa, acompanhou com uma salada de alface e nozes que a filha mais velha lhe ensinara e acabou com duas aguardentes velhas e um café. Um amigo que lhe arranjara um saco de erva permitiu-lhe findar a refeição com o estalar de sementes e um tossir incontrolável que o fez rir.
Apanhou o comboio na estação do oriente. Procurou um lugar junto da janela. Sempre que viaja sozinho o lugar da janela é aquele que lhe permite maior conforto. Acima de tudo permite-lhe descansar os olhos e evitar outros olhares, quanto muito um pequeno soslaio no reflexo do vidro pejado de luzes noturnas. A viajem demora mais que os trinta minutos que demorava quando vivia na Reboleira. Hoje também não atravessa o túnel do Rossio. A viajem é tranquila até chegar a Queluz. Alguns miúdos que entram são ostensivos na linguagem e na provocação. A cultura norte americana dos guetos suburbanos foi importada e é hoje a expressão da revolta de todos aqueles jovens que sem ambições políticas anseiam por uma vida de luxúria fácil. Jó nunca se reviu na delinquência gratuita. Para ele tudo tinha de ter um significado social, um objetivo, nunca a violência poderia ser justificada pela soberba ou gula, mesmo que disfarçadas por pretensiosismos de classe, a maior parte das vezes mais que justificados.
Foi o resto da viagem incomodado. Pressentiu por duas vezes a tentativa de provocação e à segunda esteve perto de responder. Mas o grupo distraiu-se dele quando dois casais de namorados entraram na carruagem. Jó teve pena dos dois rapazes. Mostravam-se incapazes de reagir e um pouco antes de chegar a Sintra foram abordados violentamente. Uns telemóveis, umas carteiras, Jó ainda se levantou, mas apenas para ver uma arma apontada. “Puta que vos pariu!”, gritou. O comboio arrancou e do lado de fora o grupo ria-se e simulava disparos com os dedos da mão. Neste mundo de tubarões são as sardinhas que se devoram.
O comboio parou lentamente. A última paragem sempre lhe parecera um destino final, uma sensação que se perde quando a viagem é feita de automóvel. Quando saiu, os dois casais, com a noite definitivamente estragada, tentavam convencer dois polícias de intervenção a agir. Junto deles, alguns dos passageiros, agora mais corajosos, juntavam a sua indignação ao desespero dos jovens. Fora da estação respirou fundo. Virou á direita em direção à velha vila. O bar não ficava longe e a noite estava agradável. Pelo caminho enrolou um cigarro e acendeu-o. Inspirou profundamente o seu tabaco holandês de eleição. Há anos que fumava aquele blending tradicional que ultrapassara todas as modas, uma espécie de “SG ventil” versão tabaco de enrolar.

Passava um pouco das onze e meia quando Jó chegou à porta do bar. O som de jazz chegava à rua de forma apelativa, em ritmo de blues, numa voz quente e sensual de mulher negra. A formação era tradicional, contrabaixo, bateria e piano, mas a voz da mulher predominava, a começar pela pronúncia africana com que vincava os vocábulos da língua Inglesa.
Deixou-se ficar à porta até que a música acabou e se ouviram ténues aplausos. Dirigiu-se ao porteiro que fez impor o seu físico para o interpelar. Habituado que estava a este tipo de atitudes Jó deixou que o seu ar distante e reservado mostrasse ao segurança que ele não representava nenhum perigo. O jovem encorpado ainda lhe disse que o bar estava cheio mas perante a insistência passiva de Jó deixou-se levar pelo ar de velho lobo.
 
Quando Jó entrou a banda tinha acabado de tocar uma série e preparava-se para uma pausa. Na mesa de Duarte apenas uma bonita mulata estava sentada. Quando Jó se aproximou apercebeu-se que aquela jovem mulher era extremamente bonita e sem querer o seu olhar por lá ficou. Quase instantaneamente reconheceu na jovem a voz que lhe tinha telefonado. Pensou para dentro “O sacana do Duarte é um filho da mãe com sorte.”.
Entretanto o Duarte tinha-se levantado. Apercebendo-se da fixação de Jó largou uma exclamação em tom de provocação, “Já nem me conheces, estou assim tão velho?”. Jó ficou ligeiramente atrapalhado, ao que não ajudou o bonito sorriso da rapariga.
Ficou a saber que era ela a vocalista da banda. Soube também que vivia com Duarte e que pensavam ir para Luanda. Mas Jó era um homem determinado. Tinha lá ido com um objetivo e não iria desistir.

2012-09-05

O aniversário

Pedro faz anos hoje. É domingo e passaram três dias desde que esteve em casa da dona Ana. Não se lembrou do seu aniversário mas lembrou-se do “PP”. Tinha acabado de levantar-se e procurava qualquer coisa no frigorífico. Tinha a boca seca e o estomago fervia-lhe de azias.


Ficara sozinho em casa agarrado à guitarra elétrica. Colocara os headphones na cabeça e uma garrafa de Whiskey na mesa perto da cadeira, meio braço de distância, e junto da garrafa um copo sem gelo. Exercitou os dedos em escalas de blues durante um quarto da garrafa. Os olhos fechados libertaram a cabeça e as escalas começaram a entrelaçar-se com acordes dedilhados e ritmos de velhas canções conhecidas. Foi assim que o resto da garrafa desapareceu.

Pedro não gosta de fazer anos. Tem poucos amigos e nenhum deles é escolhido em dia de aniversário. Guarda-se para os seus dois filhos, homens já feitos como se costuma dizer. Aparecem sozinhos e juntos escolhem um restaurante para almoçar. O mais novo deixa-os sempre mais cedo. Fica com o mais velho e janta em casa deste com os netos. À noite volta para casa.

Hoje não deverá ser diferente. O telefone deverá tocar por volta das onze. É sempre o Rodrigo que telefona primeiro, o mais velho. Alberto, o mais novo, avisará da sua chegada quando vem já a caminho. A rotina deste dia não será corrompida, pelo menos por enquanto.

Tomam um aperitivo em casa do Pedro. Trocam-se banalidades. Rodrigo repara que o pai está mais magro e macilento, Pedro comenta o aspeto efeminado de Alberto, Alberto diz que está tudo na mesma.

Vão almoçar à Costa da Caparica. Escolhem o “Barbas” por ficar mesmo junto ao mar. Em Março tudo é mais calmo e as praias estão praticamente desertas. O Rodrigo conduz, ao seu lado Pedro olha distraído para a paisagem. Lá atrás, Alberto, escondido por detrás dos óculos escuros, procura recuperar do seu trabalho noturno. “Vais jantar lá a casa Pai?”, “Ainda não sei.”, “Tens alguma coisa combinada?”, “Não…Não sei…”, “Está tudo bem contigo? Acho-te cansado.”, “Ontem dormi mal e bebi muito.”, “Tens de ter cuidado.”, “Sim…”, “Os teus netos iam gostar de te ver hoje.”, “E ela também?”, “Não sejas assim, tu sabes que ela gosta de ti.”, “Talvez por isso acabamos sempre a discutir…”, “Não é uma questão de gostos, é uma questão de feitios…vocês são teimosos como à merda!”, “ Ela consegue tirar-me a paciência, principalmente quando fala de política. Não sei como a consegues aturar.”, “Talvez porque gosto dela.”, “Mesmo assim, a gaja é uma reacionário do caraças.”, “A gaja é minha mulher Pai!”, “Eu sei…Desculpa…Não estou nos meus dias.”, “Já tinha reparado!”.

O silêncio volta ao carro. “Queres ouvir alguma coisa?”, “Tens alguma coisa de jeito?”, “O que tenho está em MP3, vais ter de procurar, entendes-te com isso?”, “O teu carro é muito complicado, procura tu qualquer coisa, acústico se tiveres.”, “Eric Clapton unplugged?”, “Serve!”, “Ouves sempre a mesma merda!”. Este último comentário foi de Alberto.

Comeram arroz de tamboril que acompanharam com duas garrafas de branco. Pedro não comeu sobremesa mas bebeu dois balões de “Black label”. Sentia-se entorpecido. O corpo não lhe pesava e os olhos repousavam no mar. Rodrigo pagou e saíram. A caminho do carro rodrigo voltou a insistir, “Sempre vais lá a casa esta noite?”, “Não sei…estou a ser honesto contigo, não sei.”, “Mas eu preciso de saber, sabes como é a Madalena.”, “Sim eu sei. O melhor é não contares comigo.”, “Custa-me deixar-te sozinho.”, “Não te preocupes que eu estou bem.”, “Estás?”, “Estou!”.

Alberto não se mete na conversa do irmão com o Pai. É travesti num bar noturno de Lisboa e esta conversa aborrece-o profundamente. Do pouco que gostaria de dizer ao Pai este não gostaria de ouvir. Talvez gostasse de o convidar para ir a sua casa, jantar com ele e com o seu companheiro, mas isso estava fora de questão.

Despediram-se à porta do apartamento em Almada. Um abraço ao Rodrigo, um beijo disfarçado na face de Alberto. Entrou em casa e sentou-se. Levantou-se outra vez e foi abrir uma “Red Label”, a última. Tinha acabado de encher o copo quando o telefone tocou. “Quem é?”, “Ei Brother, é o PP”. Pedro sorriu pela primeira vez desde que tinha acordado. Afinal o dia não estava perdido.

(Continua)

2012-09-02

Sou eu mãe!

Três da manhã. O automóvel segue a alta velocidade na autoestrada. Os olhos do Paulo devoram o tracejado numa cadência hipnótica. Não é ele o condutor. O volante está entregue a uma bela mulher que desfruta da condução com um prazer erótico. A torção das rodas dianteiras é seguida milimetricamente pelo corpo vibrante. A blusa justa que lhe cobre o corpo revela-lhe a excitação nos mamilos proeminentes. Nas colunas, o som de Stone Roses “Breaking into heaven”. As palavras roucas dizem-lhe:


“I've been casing your joint for the best years of my life

Like the look of your stuff, outta sight

When I'm hungry and when I'm cold

When I'm having it rough

Or just getting old”

Paulo adivinha as formas de Anne através dos segmentos brancos que desaparecem entre os faróis do BMW de alta cilindrada:

“Better man the barricades

I'm coming in tonight

Had a line of my dust, outta sight

When I wander and when I roam

I'll find a soul I can trust

I'm coming home”

O solo de guitarra aponta para um lugar escuro, algures para lá do limite dos faróis:

“I'm, I'm gonna break right into heaven

I can't wait anymore”

E do limite surgem luzes que anunciam uma empresa de combustíveis. E os cavalos do potente motor refreiam-se violentamente na ansia da sede por hidrocarbonetos. Um ligeiro chiar de pneus e as violentas reduções na caixa de velocidades. O corpo preso pelo cinto projeta-se no vidro e retorna. O veículo entra na área de abastecimento e estaca junto a uma bomba. “Quero beber um café!”. Olhou para ela e sorriu. Saíram ambos do carro, ela para satisfazer a sede do motor, ele para lhe satisfazer a sede, qual delas a mais árida.

Depois do café Anne insinuou, “Vou à casa de banho!”, “Eu vou contigo…”. Pelo caminho um pequeno involucro transparente com pó branco trocou de mãos. Minutos mais tarde o BMW voltava á estrada sedento do tracejado. “The Fall”, Mark E. Smith cospe as palavras de encontro ao asfalto e Paulo perde a noção do tempo. Anne, a alemã que lhe dá boleia e o traz de volta a Portugal, não lhe percebe a abstração. Anne ainda não tem trinta anos. Anne é viciada em adrenalina. O pai de Anne é um executivo de uma empresa alemã e está temporariamente em Portugal. Anne costuma rir-se quando Paulo lhe diz que o pai dela é um vampiro. Anne gosta da irreverência do Paulo. O Paulo gosta de todas as Annes.

O BMW atravessa o rio Tejo pela ponte do Vasco. A velocidade reduziu-se mas continua elevada. “Hoje vou dormir a casa da minha mãe…”, Anne sorriu, “Sim?...”, ” levas-me a casa?...”, “Não sei.”, “Não sabes?...”, “Onde é que mora a tua mãe?”, O Paulo sorriu, “Segue sempre em frente.”.

Estacionaram junto a um velho edifício de três andares. “É aqui?”, “Sim!”, “Fico contigo?”, “Se quiseres…”, “E a tua mãe?...”, “Vai ficar contente de me ver…”.

Mesmo sendo um ato repetido, a sensação de voltar a casa da mãe rejuvenesce-o. O sol estás prestes a nascer quando ele toca a campainha. Espera um momento e volta a tocar. Anne espreguiça-se, “Não é melhor voltares mais tarde?”, ele insiste na campainha, ela ajeita o cabelo e procura a sua imagem no reflexo do vidro da porta de entrada, “Vamos comer…estou com fome.”, a campainha volta a tocar…Uma voz estremunhada responde no intercomunicador “Quem é?”. “Sou eu mãe!”.

2012-08-28

Um encontro a dois

Jó vive num quarto alugado. Foi a filha mais velha quem tratou de tudo, é ela que paga a renda. O quarto é pequeno e privado de comodidades desnecessárias, assim ele o desejou. Tem uma cama de casal e duas mesas-de-cabeceira. Aos pés da cama uma secretária e uma cadeira compõem o mobiliário. Na secretária um portátil, uma pequena aparelhagem compacta e uns headphones. Livros só na mesa-de-cabeceira do lado direito, o lado ocupado da cama. Desde que se encontrou com Pedro ainda não conseguiu dormir duas horas seguidas, deixa-se estar na cama de olhos fechadas esperando vencer o corpo pelo cansaço. A imagem de um Pedro velho e abatido, rendido, mais que convencido, às suas ideias, deixaram-no de rastos. “Eu sabia que devia ter falado primeiro com o Duarte”. Não acreditava que fosse o Pedro que ele tinha visto a convencer o “PP”. “E o raio do Duarte que não me atende o telefone, será que o contacto que me deram está certo.”, São estes os pensamentos de Jó naquela manhã, depois de mais uma noite mal dormida. Fossem outros os tempos e a insónia teria degenerado em bebedeira. Passou a noite a escrever e revê os papéis rabiscados à mão quando o telemóvel toca. Teve que estranhar o som até se aperceber do telefonema. “ A minha filha? A estas horas? Raio da miúda está mesmo preocupada comigo.”. Levantou-se da cama e dirigiu-se à secretária onde o aparelho continuava a vibrar, aborrecido pelo desprendimento do dono. O número não lhe era conhecido, mas para Jó todos os números eram desconhecidos. Ainda ficou parado uns instantes até se lembrar do Duarte. “E se fosse ele?”. Este pensamento fê-lo levar o telemóvel de forma violenta ao ouvido e gritar, “És tu Duarte?”. Não era o Duarte, mas sim uma amiga do Duarte. Ele fez-lhe prometer que lhe daria um recado. Parece que a miúda tinha ficado desconfiada pelo facto do Duarte não atender o telemóvel e agora que o apanhava distraído tentava tirar umas dúvidas. Ele não estava em casa, chegaria por volta da hora de almoço e ela jurara entregar-lhe o recado. Teria de esperar. Pelo menos uma coisa era certa, o número não estava errado.


Tomou um banho, fez a barba e decidiu sair. Ainda era cedo e se ia esperar pelo telefonema do Duarte o melhor era fazê-lo na rua. O apartamento onde morava pertencia a uma amiga da filha, uma empresária de moda que passava o tempo fora mas que queria ter um lugar para voltar sempre que regressava a Lisboa. Isso não o preocupava pois estava convencido que a situação seria temporária, também por isso a amiga da filha lhe tinha alugado o quarto. O apartamento ficava junto ao rio na zona da Expo. O facto de ter o rio por perto tinha-o convencido. Costumava fazer o percurso a pé até entrar em Moscavide onde tinha escolhido um pequeno café, que também servia refeições, para almoçar e jantar. O café era acolhedor, gerido por um casal de transmontanos cinquentões que o tratavam como família embora só o conhecessem há pouco tempo.

Hoje não foi diferente e ainda estava a acabar uma meia dose de cozido á portuguesa quando o telemóvel voltou a tocar. Controlou a ansiedade e atendeu de forma natural, “Quem é?”, “Sou eu, o Duarte. És tu Joaquim?”. Duarte sempre o tratara por Joaquim, era o único dos amigos que o tratava assim e o único a quem Jó o permitiria. “Sim sou eu.”. Houve um silêncio, “já há muito tempo que não te ouvia.”, “Tenho tentado falar contigo.”, “Eu sei, a minha amiga disse-me.”, outro silêncio, “Posso encontrar-me contigo?”, “Sim.”, “Pode ser hoje?”, “Pode. Está tudo bem contigo?”, “Está.”, silêncio, “Olha eu vou tocar esta noite num bar em Sintra. Queres aparecer por lá?”, “Pode ser…”, “O nome do bar é o Retiro de Jazz, não fica longe da estação.”, “Tudo bem…”, “Queres que eu te vá buscar?”, “Não…Não é preciso.”, “Então está combinado, aparece por volta das onze. Eles têm sempre uma pequena mesa para nós, ficas a conhecer a banda.”, “Por mim está tudo bem…Obrigado Duarte!”, “Qual é a tua Joaquim? Vá, um abraço e até logo”.

Jó desligou o telemóvel. Não se tinha enganado. Só o Duarte poderia fazer deste lapso de anos, uma breve ausência.

2012-08-24

Viola baixo e vozes: Paulo “PP”

O Paulo tem andado desaparecido. Volta de vez em quando à casa da sua mãe na Amadora. Paulo foi o homem dos excessos, de todos os excessos. Tudo o que fazia era levado às últimas consequências. Bebeu álcool como se mais nada houvesse para beber, tomou LSD até ficar quase louco, apaixonou-se por cocaína e injetou-a sem limites, deixou-se levar pela heroína, dormia pouco, comia pouco, vivia nos bares por detrás de uns pequenos óculos escuros que raramente tirava.


Conhecem-lhe várias desintoxicações. Para ele esses períodos serviam de manutenção. Logo que voltava à rua o ritmo recomeçava. As relações afetivas eram consumidas como doses de droga, não descansava enquanto não as acabava. De estatura média, tinha cara de menino mal comportado o que fazia com que as mulheres gostassem do apaparicar. Mesmo queimado por dentro manteve esse ar de eterno rebelde, com cabelo farto e desalinhado que teimava em manter-se preto furtando-se às cãs.

Nunca conheceu o pai, desaparecido no final dos anos cinquenta numa prisão do antigo regime. Desde essa altura o corpo da mãe nunca mais voltou a conhecer outro homem. Sempre viveu em casa da mãe. Quando isso não acontecia procurava refúgio em quartos avulso. Vivia de expedientes e de uma habilidade excecional para o desenho. Foi músico por rebeldia e a viola baixo nas suas mãos mais parecia uma arma de guerra. As bandas onde tocou são inumeráveis, tudo bandas sem futuro onde o seu futuro também não perdurava. Desacatos nos concertos, atrasos inexplicáveis, dissertações violentas no meio das músicas. Tudo isso que lhe dava prazer era razão para a sua expulsão.

Como bom sobrevivente Paulo mantém o estilo de vida, muito por conta dos contactos no mundo dos narcóticos. Também alguns amigos no mundo do espetáculo o acarinham. Sabem que da mão dele pode sempre sair um doce, qualquer coisa que dê mais sentido à vida.

Pedro foi a casa da mãe do Paulo e ficou a saber da sua ausência, “Já lá vão dois meses que ele não me diz nada, tu sabes como ele é!”, “Pois sei Dona Ana.”, “ Já nem me dou ao trabalho de me preocupar. Aquele malandro nasceu com as mãos de um anjo por baixo daquele corpo.”, “Pois nasceu Dona Ana.”, “Mas eu já vou ficando velha para isto. Quando eu me for o que é que aquele pirata vai fazer?”, “Não sei Dona Ana.”, “Olha lá Pedro, tu não estás nos teus dias, pois não?”, “Não dona Ana.”, “Entra e senta-te um bocadinho que eu arranjo-te qualquer coisa para comer.”, “Obrigado Dona Ana, fica para outra altura…faça-me um favor, se tiver notícias diga-lhe que preciso muito falar com ele.”, “Passa-se alguma coisa?”, “Não Dona Ana, fique descansada, são uns assuntos de música.”, “Vocês já não têm idade para isso”, “É verdade Dona Ana.”.

Despediu-se ainda a pensar na última frase de Dona Ana, ”, “Vocês já não têm idade para isso”, Será? De qualquer maneira quem não vai ficar muito contente é o Jó. Que se lixe, depois logo lhe telefono. Entrou num café e bebeu dois Whiskeys de penalti. Já há muito tempo que não o fazia antes do almoço.

2012-08-22

Guitarra solo e vozes: Pedro “Holandês”

Jó ficou dececionado com as várias tentativas para falar com o Duarte. Sentia que depois de falar com ele tudo seria mais fácil. Escolhera-o para ser o primeiro a saber das suas ideias, para ser âncora e impulso do seu projeto. Tinha a certeza que Duarte o iria ouvir e que lhe daria pelo menos uma chance. Tinha os contactos num papel. Na lista o próximo era o Holandês. Iria seguir o esquema mas preferia ter falado com o Duarte primeiro, estava convencido que o teria posto a falar com o Holandês o que lhe facilitaria a tarefa.


Dos quatro, Holandês era o melhor executante. Dotado de uma técnica excelente e de uma memória fulminante conseguia integrar-se em quase todos os estilos. Talvez por isso dividisse a ocupação de angariador de trabalhadores ocasionais, para uma empresa de construção, com aulas particulares a meninos de bem, para os quais não lhes chegava a guitarra clássica.

Dos quatro o Holandês era o mais difícil de convencer. Sempre mantivera contacto com o Duarte mas com o Pedro era diferente. A relação sempre fora conflituosa e da última vez que se viram quase chegaram a vias de facto. Jó ainda se lembrava desse dia com amargura. A pretexto do funeral de uma amiga comum juntaram-se num bar na rua do Coliseu de Lisboa. O desprendimento dele afetou o Pedro, a quem essa amiga deixara profundas recordações. As recordações de Pedro eram doces e amargas e o álcool não deixou de fazer os seus estragos. Uma noite na esquadra evitou que se tivessem esventrado. Tanto o Jó como o Pedro levavam as coisas muito a sério.

Seja como for a guitarra do Holandês era imprescindível para o som que Jó tinha imaginado, além disso era o único que mantinha contacto fiável com o último elo da banda. Para estes homens já não havia ternuras ou falsas esperanças. Tinham chegado a um ponto de não retorno e a única coisa que tinham certo era o dia da despedida. Também por isso a conversa que ambos tiveram num café de Queluz, terreno neutro a ambos, não trouxe os problemas que Jó esperava. Pedro disse-lhe quando se despediram “Fala com o Duarte que eu trato do Paulo”, “Está tudo bem contigo?”, “Não te preocupes comigo. Talvez seja o momento para fazer o que dizes, a última oportunidade.”, “Achas mesmo?”, “Não! Mas também não custa nada tentar.”, “Estás assim tão desesperado?”, “Não! Apenas farto de ser fodido.”. Deram um aperto de mão, algo pouco usual entre eles. Ele há apertos de mão que valem por mil palavras, este valeu por anos de afastamento.

Pedro vive numa casa alugado em Almada. Pedro também tem dois filhos, como o Jó. Pedro não vive com a mãe dos seus filhos. Actualmente os seus filhos costumam visita-lo no seu aniversário.

A mãe dos seus filhos morreu há pouco tempo. As lesões de uma vida cheia de tudo fizeram-na capitular numa última batalha contra a síndroma de insuficiência. Pedro não chorou a morte de Isabel. Apenas no dia em que tomou conhecimento do facto, duas semanas mais tarde através da irmã de Isabel, algumas lágrimas se soltaram. Nunca tinha amado ninguém como amou a Isabel. Na altura em que ela o deixou, com dois miúdos pequenos em casa, decidiu enterrar a guitarra elétrica mas foi incapaz de o fazer, perder dois amores de uma só vez seria demais. Durante dez anos foi a mãe de Pedro que cuidou dos miúdos. Durante dez anos tocou na Holanda em bares de má fama e também na rua. Voltou destruído e jurou nunca mais querer ouvir o nome de Isabel. Nos dez anos seguintes preocupou-se em recuperar para si os seus filhos.

Hoje, enquanto se dirige para a estação de caminho-de-ferro, vem-lhe à memória a Isabel, a Isabel para quem ele sempre tocava. Do palco os seus olhos só descansavam quando a viam e depressa se inquietavam, quando perto dela, alguém a cativava. Sempre foi o ciúme que o tornou infiel. Sempre as outras mulheres lhe souberam a Isabel.

Nos jornais continua a falar-se em recessão. Antes de adormecer no banco do comboio pensou “Merda para isto tudo! Amanhã vou tentar encontrar o Paulo.”.

2012-08-20

Bateria, percussões e vozes: Duarte Lemos

Duarte é um homem calmo. Baixo, forte e calmo...até pegar nas baquetas. Duarte transforma-se quando se encontra por detrás de uma bateria. Pelo menos é essa a ideia que Jó guardou do baterista da sua primeira banda, o homem que aguentava todo o projeto com uma marcação rítmica impiedosa. Efetivamente Duarte não mudou muito. Calmo, baixo e forte. É certo que perdeu quase todo o cabelo e por esse motivo decidiu desde há alguns anos andar de cabeça rapada, mas isso não lhe retirou o charme quase incompreensível com que continua a conquistar o coração das incontáveis mulheres da sua vida. Há quem diga que são os seus olhos grandes de bom gigante, de um azul-bebé desconcertante, os responsáveis por tão profícuo desempenho. Outros dizem que o seu desempenho está mais relacionado com outro tipo de órgão que não propriamente o da visão. Seja como for Duarte nunca se viu só, mesmo quando as más-línguas dizem, com inveja mal disfarçada, que ele é uma segunda escolha crónica. Certo é que ele está no sítio certo à hora certa, com as palavras e a atenção que nos momentos de fragilidade convencem uma mulher.

Duarte é um homem dos sete instrumentos no que isso pode significar em termos profissionais. Andou lá por fora na construção civil, serviu às mesas no algarve, foi taxista em lisboa, transportou mulheres por bares de alterne em terras transmontanas, trabalhou como padeiro nos subúrbios de Paris, foi segurança em centros comerciais, serviu em bares de hotel e traficou o que tinha de traficar para poder consumir quando o vício foi grande mas nunca deixou de tocar bateria.

É um homem simples, talvez por isso, sem medos. Não o afetam as notícias de catástrofes, guerras, epidemias, crises, desemprego ou qualquer outra fobia desencorajadora. Acredita no dia à dia, basta-lhe acordar para encontrar o seu ritmo. Também na música ele é assim. Marca certo, forte, sem falhas ou invenções desnecessárias e dura as horas que forem necessárias. Quem toca com ele aprecia-lhe a fiabilidade e a batida viril. Da sua parte não existem surpresas mas consegue acompanhar e manter a magia dos outros. Não é herói ou vedeta nem nunca teve pretensões a tal mas a sua presença no palco e a forma como bate nas peles não deixam ninguém indiferente. É difícil não gostar dele. Sabe ouvir, não importa o que lhe contem nem a hora a que o façam. O seu olhar compreensivo sem ser condescendente convida-nos à confissão. Duarte faz bem a quem está mal.

Quando o telemóvel tocou Duarte estava ocupado. Nos seus braços uma mulher jovem de pele escura tentava convencê-lo a ir para Angola. Ouviu ao longe o apelo do toque e não ficou indiferente. A mulher, que enroscada no seu corpo lhe sussurrava junto aos lábios, não se apercebeu dessa ligeira inquietação. O telemóvel calou-se e ele agarrou-a com força, ela impou com o aperto mas deixou-se virar. Antes de entrar nela e enquanto lhe mordiscava o lóbulo da orelha disse-lhe “A tua proposta é muito tentadora…A ti, rainha das africas, eu entrego o meu corpo escravo”. O riso dela terminou num gemido agitado.

Não será hoje que o Tristezas vai falar com o Duarte.

2012-08-17

“NÃO!” A BANDA:

Vocalista e guitarra ritmo: Jó “Tristezas”


A paixão é algo avassalador tenha ela o que tiver como objecto da sua existência. Existem os que se consomem em sentimentos amorosos, os que só sentem a vida quando são livres, os que entregam toda a sua atenção a objectos, sejam eles carros, casas, ou simples adornos corporais, os que levam as suas ocupações preferidas a um estágio superior de amor e ódio.

Seja como for a paixão é capaz de provocar dor e sofrimento sem limites assim como também é capaz de proporcionar momentos de intenso deleite, torpor paradisíaco em que se imagina ficar eternamente num estado de graça, orgasmo continuado, parado para sempre no momento em que se atinge o auge. Para quem a sente não existem limites, tudo é permitido desde que se obtenha o objecto apaixonado. Não se escandalizem quando falo em “objecto”porque para o apaixonado tudo se torna “objecto”, o próprio “objecto” só existe porque ele o deseja.

Não fosse a paixão tão destrutiva e eu diria que o Jó “Tristezas” era um apaixonado sem cura. O Jó “Tristezas” já era entrado de idades, já lá iam os cinquenta e os sessenta não andavam longe. Não se lhe conheceram amores, nem femininos nem masculinos, amizades, muitas mas nenhuma definitiva.

Mas nem só os amores produzem filhos. Jó tem duas filhas. A Joana, a mais velha, tem trinta e dois anos. A Joana venera o pai. Tudo nela é antagonismo em relação ao progenitor. Ele não estudou, ela acabou a faculdade, ele não casou, ela casou e não tem filhos, ele despreza a autoridade e ela nunca a contrariou. Catarina, a segunda filha de Jó, não partilha a mãe com Joana. Catarina é parecida com o pai e talvez por esse facto não suporte a sua presença. Catarina tem vinte e quatro anos, tem dois filhos e é solteira. Catarina é atriz e é incapaz de se calar.

A única paixão de Jó é o Rock. Por ele deixou mulheres sem as conseguir amar. Por ele deixou empregos e segundas opções de vida.

Jó é magro. Tem um metro e oitenta de altura que sustentam setenta quilos de músculos e ossos. Não se lhe conhecem gorduras. Os olhos são negros e o cabelo grisalho sempre lhe cobriu os ombros. Os lábios são finos numa boca demasiado grande para o rosto alongado. O nariz é demasiado pequeno num rosto moreno de contornos vincados.

Jó cortou o cabelo e deixou-o com um centímetro de altura. Jó parece um homem acabado de sair do presídio após trinta anos de reclusão. As calças de ganga estão-lhe largas e a T-shirt também.

Jó começou a escrever…

“Quem não trabalha não tem pátria,

Isso não me podem roubar.

Quem trabalha está a prazo

Num país por acabar.”

Jó vai telefonar ao Duarte, o homem das percussões.

(continua)

2012-08-16

Ensaio sobre a música rock no processo auto destrutivo do Portugal pós 2008

Introdução


Nestes anos de crise tudo se confunde. Misturam-se ilusões com desespero, esperanças com agonias, a verdade com a mentira. Vota-se por defeito, opção “default” num qualquer sistema operativo digno desse nome, protesta-se por defeito, vive-se por defeito, também o amor aparece por defeito.

Portugal consome-se na míngua imposta. Para o comum dos portugueses tudo depende da “Troika” que nos ajuda com uma dieta sem calorias, anemia a prazo e a esperança de que os mercados irão investir no nosso sangue aguado.

Neste processo tudo é digerido, constituição, direitos, empregos, pessoas, futuro. O que diz a música rock sobre tudo isso?

Portugal nunca teve uma música rock interventiva ou manipuladora que chegasse a um público generalizado, exceção feita aos “Mão Morta” que se tornaram banda de culto para um número restrito de admiradores do pensamento livre, seja ele qual for.

A nossa raiva esquerdista ainda transborda nas canções do Zeca ou do Sérgio. O apelo à droga, ao sexo e ao rock n´Roll deixou de ser revolucionário. A democracia parlamentar composta por sessenta por cento de advogados deixou-nos sem leis credíveis. O Rap/Hip Hop urbano fez-nos atravessar o atlântico e mergulhar no apelo afro dos americanos.

O que diz o Rock Português perante tantos desafios. Como desafiar o poder quando se está tão dependente do dinheiro. Como convencer quem nos ouve que não somos apenas um grupo de palhaços bêbados a querer curtir. Foi esse o desafio que Jó “Tristezas” tentou vencer.

Jó “tristezas” viveu do sonho rock, quis formar uma banda e acabou sozinho. Agora, sem futuro e depois de ouvir vezes sem conta o punk operário Inglês do final dos anos sessenta, decide-se a recuperar o sonho.

Este é o momento para Jó recuperar os seus contactos. Horas e horas de redes sociais a que não foi alheio o apoio da sua filha mais velha, a Joana, fizeram-no virtualmente conhecido.

Esta é a história de Jó “Tristezas” e da sua banda punk depois do pos- punk “NÃO!”.

(continua)

2012-08-14

Do sofrimento

Do sofrimento e da angústia sei o quanto basta a quem vive. Aprendi a dor com a doença, a saúde que me traiu quando quis ser criança, a asma que me tirou o ar, que me roubou o folgo para corridas na rua e me abriu portas nos hospitais para refeições de oxigénio.

Quando da dor já sabia e treinado estava para acalmar o peito, aprendi a inquietação. No peito o coração mostrava-se, comandava os sentidos. Esse primeiro amor, tantas vezes escrito, recordado para sempre com a saudade do que é primeiro, foi a inquietação, também desilusão. Com ele aprendi a cobardia de quem não se revela, a rejeição assumida. Aprendi que com falta de coragem não se sabem as respostas.

Da insónia tive conhecimento mais tarde. Não dormir. A noite apresentou-me o medo, medo de mim, medo de estar sozinho, medo de não me bastar. Ficou esse medo registado em palavras angustiadas, insuficientes, porque poucas sabia para representá-lo.

Da escola outras aprendizagens. E quando a escola acabou, ou quando eu decidi acabar com ela, o sofrimento e a angústia não eram mais que pequenos objetos pairando no meu universo de sonhos.

A morte. A morte de um ente querido, progenitor ventral. A morte fez-se sofrimento em mim e esse sofrimento foi crescimento, maturação de personalidade. Fiz-me no desgosto e renasci dele.

Sempre vivi de incertezas, sempre as tentei combater. Hoje sei que viver é uma incerteza, a mais bela de todas.

Hoje penso que não me foi dado o verdadeiro conhecimento do sofrimento. Há quem diga que não sei sofrer, sentir a dor invadir o meu espírito, entregar-me aos delírios do desespero, chorar a raiva do que não tenho, roer-me de inveja do que imagino ser a boa vida dos outros, sentir as dores lancinantes amplificadas dos meus pequenos ardores. Há quem me ache insensível, imune ao dia à dia de misérias, escondido na minha boa disposição que alguns consideram exagerada e outros, uma extravagância parva e sem sentido. A isto chamo eu envelhecer. Não sou o que fui nem serei o que sou. Afirmá-lo seria negar o futuro. Não estou preso a coerências estéticas. Existe um fio condutor, sim existe um fio de onde saem outros fios com nós na ponta.

Vivemos tempos difíceis em Portugal. No Mundo sempre se viveram tempos difíceis. Hoje, mais uma vez, chegou-nos o fado, o destino que não comandamos. Parte desse destino tem nome mas não ousamos pronunciá-lo.

Ao sofrimento vou-o medindo, temperando com doses de felicidade, com doses de coragem aprendida. O meu verdadeiro sofrimento será a minha desistência, acreditar que nada do que fiz valia a pena.

Este texto é uma mensagem pessoal mas, acima de tudo, uma mensagem de esperança na minha garrafa virtual.

P. Guerreiro, Vila Nova de santo André, Portugal

2012-05-05

Naufrago

 

E eis-me despido. Despido porque nu, isento de camuflagens, vazio de disfarces, defesas que pensava mas não eram, o Carnaval da minha vida mas também das outras. Olho nu para o ecrã branco que já foi caderno, folha sem pretensões, papel de jornal já lido, guardanapo de papel, pedaço de qualquer coisa, fragmento passível de inscrição, olho e não vejo. Leio do cancro das mulheres dos outros e sinto de maneira especial a escrita do autor, o amor de quem sabe que amar não chega para salvar, as palavras que procuram redenção, mesmo quando a ignoram ou pretendem afrontar. Sento-me à mesa e alimento-me do que está no prato, poderia ter sido eu a escolher e até fui, mesmo sem saber. Sento-me à mesa e leio, leio porque assim tem de ser, estou nu e preciso vestir-me. Procuro cobrir-me de prosas, das prosas dos outros, eles que me vistam, disfarcem de mim o que não devo mostrar. Descobri que a minha nudez também é interior. De tanto falar repeti-me e como um papagaio não sei o que digo, ou o que digo não me tem significado. Eu digo e outros que ouvem fazem que sim ou que não e eu observo. De fora vejo o que digo, por dentro ouço o que vejo. Surdo de tanto falar sou cego do que ouço e no entanto ainda me julgo, como se ter opinião me bastasse. O Ricardo que fale por mim, faça-me ele rir todas as manhãs e o meu combate está feito. Bem feito! E estas palavras são como testemunhos numa garrafa virtual, o mar todo à minha volta e este blogue garrafa, esta forma tão moderna e impessoal de lançar mensagens. Estou nu e não sei o que hei-de vestir. Reservo para mim esta indecisão e assim vou ficar até me decidir...

2012-04-20

De burro...

De burro, porque de burro tudo é lento, assim viaja quem tem paciência. A sela, toda ela mantas e pó, tem o conforto de quem gosta do lombo de animais magros. Nos alforges guarda-se, num pano enrolado, um bocado de pão e o luxo de um pequeno peixe frito no dia anterior. A jornada será longa, de quilómetros desconhecidos para além da freguesia. Protegida por cerros inundados de medronheiros o caminho serpenteia no fundo do vale. A Primavera vai avançada e a vegetação rasteira começa a mostrar sinais de cansaço ao misturar verdes secos com amarelos pálidos a roçar o branco.
De burro, porque de burro tudo é lento, assim viajam dois moços, pouco mais de treze anos, mas que de longe facilmente seriam confundidos com homens já feitos. As roupas são únicas, roupas que duram semanas, meses, o tempo que for necessário até ser impossível terem esse nome. Um deles tem botas, é esse que caminha ao lado do burro. Leva na mão uma varinha feita de um ramo de oliveira que uma navalha ganha ao chinquilho trabalhou com figuras facilmente confundidas com animais domésticos. As botas têm um tamanho improvável para os pés do rapaz, possivelmente herdadas de um adulto farto das suas aberturas laterais. A sola mostra um desgaste acentuado que apenas se vislumbra quando o passo é mais acelerado. De quando em quando o Carqueja para. Assim é a alcunha, mais forte que nome, pela qual o moço é conhecido e que faz dele representante e continuador da linhagem familiar pelo lado paterno. Dizia eu que o Carqueja para e nesse seu acto leva a intenção de sacudir os pés, ou melhor, os sapatos, na tentativa de retirar pedras e pedrinhas do seu interior. O pó, esse há muito se tornou lama e faz parte da pele. O António vai em cima do burro e sabe que dali a pouco será a sua vez de ir pé. Quando o momento chegar serão suas as botas e o Carqueja será o cavaleiro de tão cobiçado burro, dedos dos pés ao léu refrescando-se da cozedura.
De burro, porque de burro é a melhor opção, assim viajam os dois moços. Decidiram ver o mar, querem saber para onde vai aquele rio do qual só conhecem um pedaço, querem saber o destino daquelas águas frescas e transparentes onde aprenderam a nadar, a pescar, a descansar, fugidos do trabalho que aperta, do açoite de quem os sabe mandriões. É domingo e não sabem quando irão encontrar o destino da sua viagem. Talvez por isso se levantaram tão cedo. Levavam já umas horas de caminho quando ouviram os primeiros cantos daqueles que são os anunciadores de madrugadas. Disseram-lhes que o mar faz almarear, que se perde o norte de tão grande que ele é. O Carqueja acredita mas o António dúvida. Se ele olha todas as noites para o céu e adormece olhando o negro e no negro apenas pequenas luzes que lhe disseram ser estrelas, como pode ser o mar tão grande que almareie? O Carqueja diz-lhe que não é só o tamanho mas também o cheiro, e o balanço…O balanço? Que balanço? O balanço das ondas…Ondas? Aquele lambe- lambe da água nas margens do rio? Não! Uma coisa maior, mais alta que tu, mais alta do que a estação do caminho-de-ferro…És mesmo parvalhão, acreditas em tudo o te dizem. Estou a dizer-te qu’é verdade…Tá bem, a gente logo tira as teimas.
Já o sol começava a perder a embalagem quando começaram a ouvi-lo. Mesmo antes do ouvir tinham-lhe sentido o cheiro e sem saber o que era achavam que cheirava mal. Cheira a quê? Sei lá, cheira mal!
Depois de o ouvir calaram-se. O ruido era surdo vindo do horizonte, uma nevoa que não se percebia. Aceleraram o passo. O primeiro a vê-lo foi o Carqueja. Primeiro parou depois correu pala areia dando pequenos saltos para fugir da água que teimava em procura-lo numa cadência de ondas. Ria e gritava como uma criança que era mas que lhe tinham dito já não ser. Olha António! Olha como é bonito!
O António tinha conseguido chegar à areia mas depois sentiu um enjoo que foi aumentando na ondulação, no ruido do vai e vem da água, no sufocar da maresia e de repente a areia desapareceu e tudo ficou negro.
Quando o António abriu os olhos viu o Carqueja ao pé dele sorrindo de alívio. Tava a ver que não acordavas tive que dar-te umas bofetadas.
Afinal era verdade Carqueja…Afinal era verdade…

2012-04-07

A Decisão

Estacionou o carro. Olhou para o relógio, nove horas da manhã. Ainda se ouve o rádio, o motor ainda se mantém a trabalhar, ainda se ouve o gasóleo a circular, a queimar, o som de barítono rouco numa vocalização subaquática.
Sabe que vai esperar e essa certeza impede-lhe os movimentos. O corpo recusa-se a obedecer consciente das horas de torpor que lhe estão destinadas. Ele olha para a matéria que o suporta e diz-lhe “Sou eu que mando. Levanta-te corpo e cumpre a tua missão! Leva a consciência que te comanda de modo a que ela te possa alimentar e, quem sabe, talvez matar.”.
Esta ligeira disfunção é momentânea, dura o tempo das notícias, são nove horas e sete minutos e talvez não fosse o corpo que estivesse a fazer ronha. Seja como for o binómio orgânico precisa reagir. Desliga o rádio, roda a chave da ignição, faz calar esse motor rouco que te adormece, sai do carro e fecha a porta, esquece o calor do ar condicionado, deixa o bafo quente encontrar o ar frio da manhã, deixa que eles se entrelacem numa nuvem de vapor, deixa como se isso importasse.
O caminho até á porta do edifício é curto, não mais que cinquenta metros, talvez nem tanto, mas ele não tem fita métrica e hoje parece-lhe mais longo. As escadas só têm quatro degraus, talvez cinco, mas esse número multiplicou-se por um factor de grandeza igual à sua frustração à raiva que não consegue evitar.
Tem hora marcada para as nove e meia, deve estar presente quando o pensarem ausente. Leva um livro debaixo do braço, pequeno almoço reforçado, alguns cigarros e isqueiro. Também leva o telemóvel porque é necessário manter-se comunicável, de telemóvel ligado ele existe.
São onze horas da manhã e ainda não o receberam. As entrevistas atrasaram-se, a necessidade não é igual de ambas as partes. Lembra-se da última nota gasta em combustível, do café com leite, das carcaças com manteiga e fiambre, dos filhos em casa, da mulher longe, da mulher em casa, dos filhos longe…do último dia em que se sentiu útil e lembra-se de uma frase num livro “Ser optimista é pensar que vivemos no melhor sistema possível. Ser pessimista é acreditar que isso é verdade.”.
Chegou a sua vez. Entra devagar num trejeito que poderia ser confundido com timidez. Procura um lugar para poisar o livro. De modo algum o livro deverá ser abandonado como um objecto inútil. “Sente-se!”. O pedido é mais uma ordem, a última que vai receber.
Ele senta-se. “Sabe que vai ser difícil…”. A frase é cortada pela violência do impacto com que o pisa papéis embateu na cabeça do funcionário. O golpe foi fulminante, o corpo tombou sobre a secretária escorrendo sangue abundantemente.
Somente o silêncio. Esperou ainda alguns minutos até decidir levantar-se. Afinal não foi assim tão difícil. Sentiu-se aliviado. Pegou cuidadosamente no livro e saiu do gabinete. “Já está despachado?”. Ouviu a pergunta e sorriu. Virou-se para a mulher e como que segredando respondeu-lhe, “Sim! O assunto não era complicado. O Doutor pediu-me um favor…”, “o que é que o Doutor lhe pediu?...”, “Que você lhe levasse um comprimido para as dores de cabeça.”.
A rapariga, cuidadosamente vestida ficou olhando para ele vendo-o afastar-se. Já cá fora o ar deixara de ser frio. Percebeu pelos gritos que a secretária do senhor Doutor tinha entrado no gabinete, imaginou-lhe o corpo esbelto cingido pelo negro do vestido, sentiu-lhe o espanto e as tremuras.
O corpo agora obedecia-lhe melhor. A chave rodou na ignição, o gasóleo começou a circular provocando um ronronar manso.
Dai a pouco o carro circulava pelas ruas da cidade…

2012-03-21

Amanhã

Amanhã eu vou ser grilo,
Vou cantar até morrer.
Vou ser vida proibida,
E teimar-me em nascer.
Vou ser luz, vou ser calor,
Um quadro de cores tentadoras.
Serei esperança e coragem,
Um assomo de liberdade,
Ou apenas a sua imagem.

Vou ser a flor que não é
E o verde que devia ser.
Vou ser a força que não tenho,
E a que poderia ter.
Vou ser palavras amigas,
E o outro com ouvidos.
Vou ser dois braços amigos,
O que sinto e os teus sentidos.

Amanhã eu vou lembra-me,
Fingir tudo sem fingir,
Ser o poeta que não sou,
Poetastro de mau vinho.
Vou esconder os meus rancores,
E deixar de ouvir o mar,
Resmungar palavras tolas
E brindar à Vera Prima.

2012-02-03

Biblioteca

A biblioteca da Amadora esteve em tempos sediada na rua da “Nau”. A poucos metros da minha casa assediava-me sempre que me dirigia para aquela cervejaria. Com a sua grande montra virada para a rua deixava os seus frequentadores em posição inferior provocando nos transeuntes a sensação de verem estranhos seres subterrâneos debruçados sobre mesas. Não tenho a certeza mas penso que terá sido essa a razão que me fez lá entrar pela primeira vez. Do lado de dentro as pessoas cá fora eram só pés e pernas. Para que tal não acontecesse era necessário levantar a cabeça e nesse gesto pouco usual procurar nas alturas as feições de quem passava. Sim, eu passei algumas horas lá dentro. Sim, era um acto individual provocado por necessidades estranhas de silêncio acompanhado.

Actualmente, quando quero saber do meu pai e tenho o telemóvel sem bateria vou procurá-lo na biblioteca de Santo André. Penso que ele sente essa mesma necessidade. Nunca discutimos o assunto mas percebe-se o conforto silencioso da biblioteca. Muitas vezes chego e dou-lhe um beijo, também ele silencioso e deixo-me ficar a seu lado vendo-o transcrever palavras de um velho manual de Inglês. Nunca procurei a biblioteca de Santo André por vontade própria, talvez porque encontre no sossego de minha casa a paz para ler e escrever.

Mas a vida prega-nos partidas…Hoje levei a Deolinda ao médico a Santiago do Cacém. Santiago do Cacém também tem uma biblioteca e esta fica precisamente em frente da clínica onde eu ia deixar a Deolinda. Levava debaixo do braço um caderno, uma caneta e o jornal. Dentro do bolso o meu inseparável MP4. Escrevi algumas folhas e cansado de escrever fui procurar um livro. Fixei-me num pequeno livro já usado e sem apelos gráficos desmedidos. O livro “O Spleen de Paris” continha pequenos poemas em prosa de Charles Baudelaire.

Poderia falar do imenso prazer que me deu ler estas prosas poéticas, do facto de as ter lido a ouvir Keith Jarrett, “The Koln Concert”, de estar junto a uma janela virado para o castelo de Santiago, do calor do sol, ampliado pelas vidraças, me ter feito esquecer as notícias do frio. Sim poderia falar disso tudo…
Ficou-me este excerto do VII poema/prosa “ O Louco e a Vénus”:

Que dia admirável! O vasto parque sob os olhares flamejantes do Sol, tal como a juventude sob o domínio do amor.
O êxtase universal das coisas não se exprime por nenhum ruído; as próprias águas estão como adormecidas. Bem diferente das festas humanas, a orgia aqui é silenciosa.


Bom fim de semana!

2012-01-24

Que seca!




Que seca! Olho para o outro lado da rua e vejo o jornaleiro que já não existe, a banca que desapareceu e os jornais que já não tentam desprender-se dos elásticos ausentes.
Que seca! O velho café fechou e o novo que lá abriu, LCD na parede, cadeiras com ergonomia assegurada, visualmente moderno, pop, ou lá o que seja, deixa-me um sabor estranho nos olhos, talvez o perfume que me arranha a pele.
Que seca! Diz a minha filha quando lhe infernizo o juízo e perante uma qualquer justificação parva exclama, LOL! E eu sem mais digo-lhe, SOS! O quê pai? SOS! Tu estás bem pai? Que seca tentar estar actualizado, perceber o que há-de ser sempre igual com vocábulos diferentes, vocábulos inventados na fobia juvenil de tudo codificar, de tudo diferenciar. E eu que tanto diferenciei sinto-me perdido por tudo me parecer igual. Fogo pai não percebes nada! Sim filha, eu também gosto de ti. Um sorriso teu que vale por mil, um ligeiro beijo…Pai tu picas! Eu sei, amanhã eu corto-a!
Que seca! O olhar provocador do cão enquanto me mija o pneu do carro. ÃO! ÃO! Este carro pode ser teu mas entre aquela curva da estrada e este sinal de passadeira tudo tem de cheirar a mim. Eu não me importo que me mijes a roda do carro, o que eu não gosto mesmo é essa perna alçada, esses tomates à mostra, do género, “Olha o que eu tenho para ti!”.
Que seca! Estou sentado e tento concentrar-me, as letras fogem-me e eu teimo em não usar os óculos para ver ao perto, para ler, para os detalhes…estou-me nas tintas para os detalhes! Olá Paulo! Posso sentar-me? Claro, meu irmão, estava mesmo farto de tentar ler o jornal. Nem sei porque é que ainda compras essa treta.
Que seca! Há obras por todo o lado! Agora que me dizem não haver dinheiro só vejo é máquinas de asfaltar, “Estradas da Planície”, que imaginação! P…Que os Pariu! Já nem dinheiro têm para fazer o resto até Beja! Que seca!
Este verão irão aparecer cartazes apelativos, “Sinta as pedras a bater no seu pára-brisas, sinta os fantasmas das árvores abatidas, sinta as camadas de asfalto fazerem-lhe cócegas nos pés, tudo isto que fazemos fazemo-lo para si, visite-nos, estacione a sua caravana junto das dezenas de outras que bordejam a praias, muro de casas sobre rodas em nome da mobilidade, da liberdade…” P…Que Pariu a liberdade! Que seca!
Que seca! Escrevo estas palavras como um desabafo…Sou um falso…Não digo o que me vai na alma, apenas o que me incomoda, o que perturba a minha epiderme sensorial. Que seca, o copo está vazio, são vinte e três horas e apetece-me fumar um cigarro.
Este Inverno falta-me um pouco de chuva…Que seca!

2012-01-16

Um conto

Jonas é um homem já feito. Feito porque foi feito, feito porque assim se mantém. Poder-se-ia dizer que depois de feito só lhe bastava crescer. Jonas tornou-se “Jonas” porque João não lhe bastava, nem aos amigos que assim o baptizaram.
Jonas nasceu numa família pequena, numa casa pequena, numa terra pequena, num país pequeno, Jonas também é pequeno, mas só de tamanho, mas disso não tem culpa assim como de tudo o resto.
Jonas andou na escola mas não estudou, teve empregos mas não trabalhou, mas quando sonhou partiu. Esteve em África quando todos se vieram embora, foi para o Brasil quando o Brasil era favela e fez-se pescador quando voltou a Portugal.
Jonas teve um barco pequeno, pequeno foi o barco mas grande foi o amor que teve por ele. Jonas que é um homem já feito disse que tinha sido feito para o mar. Foi o mar que lhe levou o barco e por pouco também a vida. Maldito dia em que um barco maior não o viu e numa madrugada enevoada o entornou para a água.
Benditos os braços de Jonas que lhe despiram a roupa, lhe tiraram as botas e lhe remaram o corpo para terra.
Jonas, homem já feito, tornou-se mendigo, habitou-se a pedir, trocou o mar pela terra e vagueou sem destino à espera de outro sonho, Jonas queria ser poeta.
Mas Jonas não sabia escrever, ou já não se lembrava, sabia no entanto as palavras que descreviam a vida do homem que era. Jonas recordava da mesma maneira que os poetas inventam.
Jonas comia pouco e bebia o que podia. Jonas tinha uma tenda por detrás do pinhal.
Jonas trocava poemas por sandes, frases por cigarros, filosofias por um copo.
Hoje Jonas partiu…Não morreu! Partiu apenas. Deixou a tenda e o sonho da poesia. Diz quem sabe que o viu a caminho do Algarve, a pé, pela estrada que sai do Cercal.
Jonas, homem já feito, não para de sonhar…

2012-01-04

Argumento de “Uma, muito pequena, curta-metragem”

I

Esta noite fui cedo para a cama.
Poderá esta frase resumir o espírito de uma Nação?
Não!
A Nação não foi cedo para a cama!
A Nação acredita no milagre fatalista!
A nação desconhece o futuro que lhe preparam!
A passagem de ano revela-se como mais uma noite de copos.
A passagem de ano revela-se comemorativa,
Como se algo houvesse para comemorar…
Para quem tem fome, a fome perdurará!
Para quem não a tiver, a ausência será constante!
Depois da fome o próximo passo será a guerra!



II

Não sonho esperanças vãs,
Não anseio promessas falsas.
Os começos já os conheço,
Episódios que ciclicamente me repetem.
As luzes da minha rua estão gastas,
Pequenas estrelas humanas,
De duração programada.
É esse o caminho que me leva ao quarto.
As sombras do que lá existe,
Dizem pouco ou pouco têm para dizer.
Afinal de contas,
As sombras não falam,
Balbuciassem elas as palavras necessárias,
E contariam histórias.
Porque é de histórias que eu falo,
Porque de histórias são feitos os meus sonhos.



III

Sou normal,
A corrente eléctrica chega a minha casa por fios,
A minha secretária é de madeira,
De madeira é a lenha que queimo na minha lareira.
E eu que sou normal,
Não me sinto assim.
Olho para o fogo,
E lembro-me do fogo,
Das palavras poéticas,
E do terror da torrefacção.
Dos finais que todos os dias o são,
Dos começos que os acompanham.
Sou normal na minha maneira de o ser,
Sinto que sou o que sou.
Senta-te e escreve a verdade que te ensinam…
…Segue leve….



IV

Escrevo,
E ao escrever ouço-me.
Penso em mim como uma voz,
Um reflexo do que vi,
Do que vejo.
Sou um pedaço orgânico,
Pedaço entre pedaços,
Reflexo orgânico de desejos,
Que não sendo meus também o são,
Reflexo de frustrações,
Que não sendo minhas,
São as minhas confissões.
Reconheço-me enquanto escrevo,
E não preciso sofrer,
Para ver que o que escrevo,
É o colectivo a morrer.



V

Finge-te,
Homem ou coisa,
Algum lugar ou nenhures,
Finge-te a seco.
Não te escondas do que finges.
Finge-te mas não te enganes.
Não te escondas em substâncias.
Abre a janela do quarto,
Não tenhas medo do frio,
Da solidão ou vazio.
Homem que é Homem é isso,
Essa coisa complicada,
Que chora por não ser nada,
Quando é tudo o que precisa.
Finge-te parvo ou incerto,
Mas não finjas que não sentes,
Nem desprezes quem está perto.

Os dias estão bonitos!

Os dias estão bonitos. Talvez por estarem tão bonitos deixaram-me mais atento. Que melhor desculpa poderia eu ter para ouvir diálogos alheios?
À portaria da fábrica, por volta das oito horas, juntam-se uniformes de trabalho num mesclado cinzento. São os “empreiteiros”, pessoal que veio de longe, de perto, de qualquer lugar onde falte emprego, a construção da nova unidade assim o exige. Os quartos da região estão todos ocupados, os andares arrendados, a espanhóis, a imigrantes do leste, a brasileiros, aos africanos de nascença ou de descendência, a portugueses vindos do norte, a gente de sul que deixou de poder trabalhar em Espanha, na Holanda, em qualquer outro lugar, onde o dinheiro ganho de forma sazonal, ia dando para a despesa.
Formam-se grupos, esperam-se os encarregados, os responsáveis pela segurança, aguardam-se chamamentos que permitam a entrada ordenada pelo torniquete. No meio desde burburinho tento entrar despercebido, sigo um atalho de corpos, espero a minha vez e sigo atrás de um pequeno grupo. O passeio construído em “I’s” de cimento é ladeado por vários metros de relvado durante os duzentos metros que separam a portaria da rede das fábricas. Não costumo seguir, ordeiro, na corrente que se forma até à segunda entrada, geralmente entretenho-me a fazer gincanas.
Mas os dias estão bonitos, frios mas bonitos e convidam-me a passos lentos. Sigo aquele pequeno grupo, quatro homens, uma mulher, a responsável pela segurança, mulher nova com menos de trinta anos. Um dos homens, moço novo com pouco mais de vinte anos, queixa-se com o frio do quarto, “F…tu tinhas dito que ias comprar a m… dum aquecedor”, o mais velho, moço de trinta e poucos, responde-lhe à letra “Porque que não o compras tu c…? Sais á noite para mamar mas para comprar o c… do aquecedor tá quieto!”. O outro tentou responder qualquer coisa que o vento abafou e o mais velho continuou, “Eu se tivesse guita também andava nos copos, mas f…., se vou para o quarto já não saio! E tu não precisas de aquecedor meu cabrão, tu cagas-te como ò c….!”. Riram-se todos, eu também me ri...por dentro…
Houve troca de acusações até que o mais velho fez valer a experiência “Meu, eu na paragem dois mil só havia um dia que não vinha bêbado e era à sexta feira!”. Virei para o lado direito, pressenti-os e lancei-lhes um último olhar…Cabo Ruivo 1983!....o que a memória vai buscar…
F… os dias estão mesmo bonitos!