2012-10-17

As gravações

O começo das gravações iniciou-se em Outubro e durante todo o mês os quatro trabalharam arduamente. Ao fim das duas primeiras semanas tinham catorze faixas acabadas. O país entretanto rolava sobre uma massa escorregadia. Os portugueses vinham para a rua a cada anúncio governativo. Por enquanto as manifestações de desagrado ficavam-se por palavras de ordem. Ouvia-se o nome do primeiro-ministro, do presidente, do ministro das finanças, da troika, do FMI, da Ângela M., de todos aqueles a quem o povo, na sua generalidade, apontava como responsáveis pela situação desesperada em que o país se encontrava. Fechados em estúdio durante o dia os “Não!” iam para a rua durante a noite. Incógnitos e observadores misturavam-se no meio da multidão. Quando finalmente esta dispersava procuravam abrigo nos bares abertos de Lisboa. Nesses dias ensaiavam sem ter dormido, muitas vezes ajudados por presentes que PP trazia sempre consigo.


O Holandês tinha recomeçado a beber. Embora isso não afectasse os ensaios notava-se que o seu corpo não gostava do tratamento. Emagreceu e andava macilento. Tocava sentado e de cabeça baixa, muitas vezes de olhos semicerrados como se a música fosse o único contacto com a realidade. Jó e Duarte já se tinham apercebido desse estado de espírito mas o som que conseguiam através do Pedro era de tal maneira intenso que depressa se esqueciam. PP como sempre era alheio a esses pormenores e andava deliciado com os resultados da banda. Anna ia muitas vezes esperar por ele e nesses dias davam boleia ao Pedro e iam dormir a casa dele. Anna gostava da vida marginal e esta banda de som estranho cujos membros, espécie de adolescentes envelhecidos por uma máquina do tempo, que se comportavam como se tudo o resto não interessasse, era o objecto ideal para dai extrair novas sensações. Apaixonada por fotografia utilizava a máquina amiúde quando se encontrava com eles. Tal como PP, Anna andava um passo à frente da realidade observando-a de um andar superior do qual descia quando precisava de alimentação fosse ela comida ou apenas contacto humano.

Jó continua a viver sozinho. Assim ficou durante todo o mês. Chega a casa e pega na viola acústica. Revisita o que fizeram, imagina-lhe novas sonoridades, outra forma de dizer as palavras, outra forma de as cantar, de as gritar e porque não, de as murmurar. Por duas vezes a Joana foi visitá-lo, para saber como iam as coisas, se estava a gostar do estúdio, das gravações. Jó que sempre teve um ar circunspecto agora tem um brilho diferente nos olhos. Como que se pudéssemos entrar por eles e lá dentro encontrar um mundo diferente, um paraíso escondido, um tesouro por revelar. Esse brilho não é assim tão evidente que possa ser descoberto por quem não conheça o Tristezas. Joana conhece bem o pai, para mais o seu amigo Alberto, dono do estúdio onde gravam os “Não!”, revelara-lhe, aquando de uma curta visita, o empenho com que eles se dedicavam ao trabalho. Joana sente-se feliz e está tentando levar a Catarina ao pai. Era muito importante para ela que a Catarina se reconciliasse com o feitio do pai. De qualquer modo a última visita teve o propósito de avisar Jó que a sua amiga Cátia, a empresária de moda que lhe alugou o quarto, vai voltar para Lisboa por uma temporada. Jó não ligou muito à notícia. Quando ela abalou perguntou-lhe “Preciso arranjar outro quarto?”, “Não pai, não te preocupes. Além disso ela simpatiza contigo, bem que podiam sair juntos um dia, para jantar, conversar, sei lá…”, “Ainda bem, agora não me dava muito jeito sair daqui…”, “Não te preocupes…”, Joana!”, “Sim!”, “Talvez eu a convide para jantar.”. Trocaram um sorriso cúmplice antes de se despedirem.

Duarte está cada vez mais dividido. A banda está a tocar bem e ele está a desfrutar. O problema é a Rita. Foi difícil convence-la a ficar mais uns tempos. Toda a sua estabilidade actual depende daquela mulher. Continua a ir a Sintra tocar, não pode deixar de o fazer e isso tem-lhe tirado todos os minutos de descanso de que precisa. Ela ainda não se foi embora porque ele lhe dá atenção e Sintra faz parte disso. “Duarte, o meu irmão já me telefonou a confirmar. Quando o Casino estiver acabado tens emprego garantido, como músico se quiseres…Ou outra coisa qualquer. Gostava mesmo de voltar para a minha terra.”. Duarte sabe que ela já acabou o curso de Direito. Duarte sabe também que a música para ela é um passatempo e que ela pretende voltar para cuidar dos negócios do pai a meias com o irmão. Se for com ela não terá problemas de dinheiro. E o país está a enjoa-lo tanto…E o raio da banda que está a tocar mesmo bem…Merda!!!....

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