2012-10-08

Um encontro a quatro

Os encontros, assim como os desencontros, são, em determinadas situações, momentos de ruptura, de decisão, de confirmação ou negação perante destinos gastos. O encontro que juntou estes quatro homens teve um pouco de tudo isso. Ruptura e tensão entre as urgências de uns e as incertezas de outros, decisões mais prometidas que confirmadas, destinos, todos eles gastos pelo uso continuado.


Juntos mediram-se, avaliaram-se de intenções, gesto mecânico e instintivo que a idade apura em detrimento da aptidão física. Fizeram-no num ambiente de incredulidade, talvez tomando consciência que este tipo de reuniões ainda os estimula e surpreendendo-se por esse motivo.

Jó falou a maior parte do tempo, o projecto era dele, era ele o vendedor. Que motivação faria os outros mexerem-se?

O Duarte preocupava-o. Mulher bonita que queria voltar para Angola, parceira musical com voz de anjo negro e corpo de deusa africana, a desvantagem estava do seu lado.

Contrariando as espectativas iniciais Pedro estava disponível, mas também estava desgastado. Não era só o aspecto físico. Mentalmente encontrava-se perturbadoramente distante. Continuava, no entanto, a ser um excelente guitarrista.

“PP” era um caso diferente. Esse ia a todas, nem que fosse só para ver. O único problema era o tempo. As decisões não se poderiam arrastar, “PP” não era homem de grandes paciências. “PP” era instável mas de grande intensidade, assim aguentasse o corpo. Para já não teria de preocupar-se com ele.

A batalha com Duarte estava meio ganha. Este garantira adiar meio ano a sua partida para Angola. “E a miúda?”, “Ela fica comigo…por mim.”, “E se o projecto arrancar, o que é que fazes?”, “É um risco que corres. Pode ser que ela se entusiasme pela ideia e deixe de ser um risco.”, “Tu sabes que não há lugar para ela na banda, não sabes?!”, “Nem ela quereria entrar num projecto assim.”, “Eh pá! Eu não tenho nada contra a miúda.”, “Eu sei, mas continua a ser verdade o que te disse.”. Havia um pouco de rispidez nas palavras que nunca soaram a ironia. Entre Duarte e Jó as palavras nunca tiveram mais que um significado, era assim que os dois funcionavam e isso não iria mudar. Foi por esse motivo que Jó rematou a conversa com um conclusivo “Fico a contar contigo até Abril.”.

Motivos diferentes uniam aqueles quatro homens já na casa dos cinquenta. Jó acabara por ter sorte pois a probabilidade das suas primeiras escolhas terem aceitado o convite, presente envenenado e que precisava de algum desapego material, era reduzida.

Verdade seja dita que Jó já tinha tudo organizado. Estúdio disponível, emprestado sem custos por um amigo de Joana que entre vários negócios se entregara à produção de bandas de Pop Rock como forma de ocupar algum do seu tempo livre. Os instrumentos estavam incluídos para quem gostasse do que havia disponível na loja do amigo de Joana. Só o Duarte irá, por questões logísticas, precisar de utilizar o material do estúdio.

Para cima de trinta versões acústicas para trabalhar e desconstruir, mais de cinquenta poemas para encaixar num puzzle que se pretendia anárquico e subversivo sem a cosmética e o apelo da juventude. Aparentemente um projecto condenado a morrer, num país também ele a morrer.

Da próxima vez que se encontrarem será em estúdio.

A voz grave de Jó sobressai entre o baixo de “PP” e a bateria de Duarte. Secção rítmica forte e em sintonia que deixa a guitarra, numa distorção murmurada, fazer de coro.

“Tudo é cinzento,

Se não contarmos com o vermelho dos telhados.

O branco das paredes perturba, mas é branco,

Sem mácula, sem nada que insinue imperfeição,

Eu hoje fui à manifestação!”



“Vou esperando, gerúndio de algemas guinchadas,

Nos meus pulsos de pele branca e polida,

Esperando porque é esse o verbo,

Sofrer será realidade hoje,

Para outra um pouco mais tarde…”



Gravarão esta música à terceira tentativa e chamar-lhe-ão

“Vício de sofrer”

(cont.)

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