2012-04-07

A Decisão

Estacionou o carro. Olhou para o relógio, nove horas da manhã. Ainda se ouve o rádio, o motor ainda se mantém a trabalhar, ainda se ouve o gasóleo a circular, a queimar, o som de barítono rouco numa vocalização subaquática.
Sabe que vai esperar e essa certeza impede-lhe os movimentos. O corpo recusa-se a obedecer consciente das horas de torpor que lhe estão destinadas. Ele olha para a matéria que o suporta e diz-lhe “Sou eu que mando. Levanta-te corpo e cumpre a tua missão! Leva a consciência que te comanda de modo a que ela te possa alimentar e, quem sabe, talvez matar.”.
Esta ligeira disfunção é momentânea, dura o tempo das notícias, são nove horas e sete minutos e talvez não fosse o corpo que estivesse a fazer ronha. Seja como for o binómio orgânico precisa reagir. Desliga o rádio, roda a chave da ignição, faz calar esse motor rouco que te adormece, sai do carro e fecha a porta, esquece o calor do ar condicionado, deixa o bafo quente encontrar o ar frio da manhã, deixa que eles se entrelacem numa nuvem de vapor, deixa como se isso importasse.
O caminho até á porta do edifício é curto, não mais que cinquenta metros, talvez nem tanto, mas ele não tem fita métrica e hoje parece-lhe mais longo. As escadas só têm quatro degraus, talvez cinco, mas esse número multiplicou-se por um factor de grandeza igual à sua frustração à raiva que não consegue evitar.
Tem hora marcada para as nove e meia, deve estar presente quando o pensarem ausente. Leva um livro debaixo do braço, pequeno almoço reforçado, alguns cigarros e isqueiro. Também leva o telemóvel porque é necessário manter-se comunicável, de telemóvel ligado ele existe.
São onze horas da manhã e ainda não o receberam. As entrevistas atrasaram-se, a necessidade não é igual de ambas as partes. Lembra-se da última nota gasta em combustível, do café com leite, das carcaças com manteiga e fiambre, dos filhos em casa, da mulher longe, da mulher em casa, dos filhos longe…do último dia em que se sentiu útil e lembra-se de uma frase num livro “Ser optimista é pensar que vivemos no melhor sistema possível. Ser pessimista é acreditar que isso é verdade.”.
Chegou a sua vez. Entra devagar num trejeito que poderia ser confundido com timidez. Procura um lugar para poisar o livro. De modo algum o livro deverá ser abandonado como um objecto inútil. “Sente-se!”. O pedido é mais uma ordem, a última que vai receber.
Ele senta-se. “Sabe que vai ser difícil…”. A frase é cortada pela violência do impacto com que o pisa papéis embateu na cabeça do funcionário. O golpe foi fulminante, o corpo tombou sobre a secretária escorrendo sangue abundantemente.
Somente o silêncio. Esperou ainda alguns minutos até decidir levantar-se. Afinal não foi assim tão difícil. Sentiu-se aliviado. Pegou cuidadosamente no livro e saiu do gabinete. “Já está despachado?”. Ouviu a pergunta e sorriu. Virou-se para a mulher e como que segredando respondeu-lhe, “Sim! O assunto não era complicado. O Doutor pediu-me um favor…”, “o que é que o Doutor lhe pediu?...”, “Que você lhe levasse um comprimido para as dores de cabeça.”.
A rapariga, cuidadosamente vestida ficou olhando para ele vendo-o afastar-se. Já cá fora o ar deixara de ser frio. Percebeu pelos gritos que a secretária do senhor Doutor tinha entrado no gabinete, imaginou-lhe o corpo esbelto cingido pelo negro do vestido, sentiu-lhe o espanto e as tremuras.
O corpo agora obedecia-lhe melhor. A chave rodou na ignição, o gasóleo começou a circular provocando um ronronar manso.
Dai a pouco o carro circulava pelas ruas da cidade…

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