2012-04-20

De burro...

De burro, porque de burro tudo é lento, assim viaja quem tem paciência. A sela, toda ela mantas e pó, tem o conforto de quem gosta do lombo de animais magros. Nos alforges guarda-se, num pano enrolado, um bocado de pão e o luxo de um pequeno peixe frito no dia anterior. A jornada será longa, de quilómetros desconhecidos para além da freguesia. Protegida por cerros inundados de medronheiros o caminho serpenteia no fundo do vale. A Primavera vai avançada e a vegetação rasteira começa a mostrar sinais de cansaço ao misturar verdes secos com amarelos pálidos a roçar o branco.
De burro, porque de burro tudo é lento, assim viajam dois moços, pouco mais de treze anos, mas que de longe facilmente seriam confundidos com homens já feitos. As roupas são únicas, roupas que duram semanas, meses, o tempo que for necessário até ser impossível terem esse nome. Um deles tem botas, é esse que caminha ao lado do burro. Leva na mão uma varinha feita de um ramo de oliveira que uma navalha ganha ao chinquilho trabalhou com figuras facilmente confundidas com animais domésticos. As botas têm um tamanho improvável para os pés do rapaz, possivelmente herdadas de um adulto farto das suas aberturas laterais. A sola mostra um desgaste acentuado que apenas se vislumbra quando o passo é mais acelerado. De quando em quando o Carqueja para. Assim é a alcunha, mais forte que nome, pela qual o moço é conhecido e que faz dele representante e continuador da linhagem familiar pelo lado paterno. Dizia eu que o Carqueja para e nesse seu acto leva a intenção de sacudir os pés, ou melhor, os sapatos, na tentativa de retirar pedras e pedrinhas do seu interior. O pó, esse há muito se tornou lama e faz parte da pele. O António vai em cima do burro e sabe que dali a pouco será a sua vez de ir pé. Quando o momento chegar serão suas as botas e o Carqueja será o cavaleiro de tão cobiçado burro, dedos dos pés ao léu refrescando-se da cozedura.
De burro, porque de burro é a melhor opção, assim viajam os dois moços. Decidiram ver o mar, querem saber para onde vai aquele rio do qual só conhecem um pedaço, querem saber o destino daquelas águas frescas e transparentes onde aprenderam a nadar, a pescar, a descansar, fugidos do trabalho que aperta, do açoite de quem os sabe mandriões. É domingo e não sabem quando irão encontrar o destino da sua viagem. Talvez por isso se levantaram tão cedo. Levavam já umas horas de caminho quando ouviram os primeiros cantos daqueles que são os anunciadores de madrugadas. Disseram-lhes que o mar faz almarear, que se perde o norte de tão grande que ele é. O Carqueja acredita mas o António dúvida. Se ele olha todas as noites para o céu e adormece olhando o negro e no negro apenas pequenas luzes que lhe disseram ser estrelas, como pode ser o mar tão grande que almareie? O Carqueja diz-lhe que não é só o tamanho mas também o cheiro, e o balanço…O balanço? Que balanço? O balanço das ondas…Ondas? Aquele lambe- lambe da água nas margens do rio? Não! Uma coisa maior, mais alta que tu, mais alta do que a estação do caminho-de-ferro…És mesmo parvalhão, acreditas em tudo o te dizem. Estou a dizer-te qu’é verdade…Tá bem, a gente logo tira as teimas.
Já o sol começava a perder a embalagem quando começaram a ouvi-lo. Mesmo antes do ouvir tinham-lhe sentido o cheiro e sem saber o que era achavam que cheirava mal. Cheira a quê? Sei lá, cheira mal!
Depois de o ouvir calaram-se. O ruido era surdo vindo do horizonte, uma nevoa que não se percebia. Aceleraram o passo. O primeiro a vê-lo foi o Carqueja. Primeiro parou depois correu pala areia dando pequenos saltos para fugir da água que teimava em procura-lo numa cadência de ondas. Ria e gritava como uma criança que era mas que lhe tinham dito já não ser. Olha António! Olha como é bonito!
O António tinha conseguido chegar à areia mas depois sentiu um enjoo que foi aumentando na ondulação, no ruido do vai e vem da água, no sufocar da maresia e de repente a areia desapareceu e tudo ficou negro.
Quando o António abriu os olhos viu o Carqueja ao pé dele sorrindo de alívio. Tava a ver que não acordavas tive que dar-te umas bofetadas.
Afinal era verdade Carqueja…Afinal era verdade…

Sem comentários: