2012-08-22

Guitarra solo e vozes: Pedro “Holandês”

Jó ficou dececionado com as várias tentativas para falar com o Duarte. Sentia que depois de falar com ele tudo seria mais fácil. Escolhera-o para ser o primeiro a saber das suas ideias, para ser âncora e impulso do seu projeto. Tinha a certeza que Duarte o iria ouvir e que lhe daria pelo menos uma chance. Tinha os contactos num papel. Na lista o próximo era o Holandês. Iria seguir o esquema mas preferia ter falado com o Duarte primeiro, estava convencido que o teria posto a falar com o Holandês o que lhe facilitaria a tarefa.


Dos quatro, Holandês era o melhor executante. Dotado de uma técnica excelente e de uma memória fulminante conseguia integrar-se em quase todos os estilos. Talvez por isso dividisse a ocupação de angariador de trabalhadores ocasionais, para uma empresa de construção, com aulas particulares a meninos de bem, para os quais não lhes chegava a guitarra clássica.

Dos quatro o Holandês era o mais difícil de convencer. Sempre mantivera contacto com o Duarte mas com o Pedro era diferente. A relação sempre fora conflituosa e da última vez que se viram quase chegaram a vias de facto. Jó ainda se lembrava desse dia com amargura. A pretexto do funeral de uma amiga comum juntaram-se num bar na rua do Coliseu de Lisboa. O desprendimento dele afetou o Pedro, a quem essa amiga deixara profundas recordações. As recordações de Pedro eram doces e amargas e o álcool não deixou de fazer os seus estragos. Uma noite na esquadra evitou que se tivessem esventrado. Tanto o Jó como o Pedro levavam as coisas muito a sério.

Seja como for a guitarra do Holandês era imprescindível para o som que Jó tinha imaginado, além disso era o único que mantinha contacto fiável com o último elo da banda. Para estes homens já não havia ternuras ou falsas esperanças. Tinham chegado a um ponto de não retorno e a única coisa que tinham certo era o dia da despedida. Também por isso a conversa que ambos tiveram num café de Queluz, terreno neutro a ambos, não trouxe os problemas que Jó esperava. Pedro disse-lhe quando se despediram “Fala com o Duarte que eu trato do Paulo”, “Está tudo bem contigo?”, “Não te preocupes comigo. Talvez seja o momento para fazer o que dizes, a última oportunidade.”, “Achas mesmo?”, “Não! Mas também não custa nada tentar.”, “Estás assim tão desesperado?”, “Não! Apenas farto de ser fodido.”. Deram um aperto de mão, algo pouco usual entre eles. Ele há apertos de mão que valem por mil palavras, este valeu por anos de afastamento.

Pedro vive numa casa alugado em Almada. Pedro também tem dois filhos, como o Jó. Pedro não vive com a mãe dos seus filhos. Actualmente os seus filhos costumam visita-lo no seu aniversário.

A mãe dos seus filhos morreu há pouco tempo. As lesões de uma vida cheia de tudo fizeram-na capitular numa última batalha contra a síndroma de insuficiência. Pedro não chorou a morte de Isabel. Apenas no dia em que tomou conhecimento do facto, duas semanas mais tarde através da irmã de Isabel, algumas lágrimas se soltaram. Nunca tinha amado ninguém como amou a Isabel. Na altura em que ela o deixou, com dois miúdos pequenos em casa, decidiu enterrar a guitarra elétrica mas foi incapaz de o fazer, perder dois amores de uma só vez seria demais. Durante dez anos foi a mãe de Pedro que cuidou dos miúdos. Durante dez anos tocou na Holanda em bares de má fama e também na rua. Voltou destruído e jurou nunca mais querer ouvir o nome de Isabel. Nos dez anos seguintes preocupou-se em recuperar para si os seus filhos.

Hoje, enquanto se dirige para a estação de caminho-de-ferro, vem-lhe à memória a Isabel, a Isabel para quem ele sempre tocava. Do palco os seus olhos só descansavam quando a viam e depressa se inquietavam, quando perto dela, alguém a cativava. Sempre foi o ciúme que o tornou infiel. Sempre as outras mulheres lhe souberam a Isabel.

Nos jornais continua a falar-se em recessão. Antes de adormecer no banco do comboio pensou “Merda para isto tudo! Amanhã vou tentar encontrar o Paulo.”.

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