2007-03-05

A Lagoa VI

Também sei que o Pedro e a Alice não vão ser chamados, ocupados que estão no apoio à divisão de trânsito e à fiscalização económica. Vai ser dia de feira porque é quarta feira, uma das quartas feiras do mês em que isso é permitido na cidade, cidade pequena mas que do nome não se livra, não do de baptismo, esse é Vila Nova, do outro, do administrativo. Adiante com o que interessa. São vasculhadas as carrinhas dos feirantes, gente cigana na sua maioria, e mesmo os que não o são por etnia são-no por modo de vida. Estes e estas, condutores e viaturas, procuram passar por todo o lado.
Foi por uma das picadas do pinhal que se meteu a carrinha do Aurício, cigano, casado e pai de cinco filhos. Foi ele que se perdeu e desembocou no meio da fiscalização policial. Teve azar e perdeu a carga, na sua totalidade material contrafeito. Vinha com a mulher e três dos seus filhos, uma bebé, menina de mama, um varão de seis anos e uma rapariga espigada e de olhar vivo, dir-se-ia matreiro se não fosse a seriedade do semblante.
Decidiu abalar daquele lugar para nunca mais voltar no mesmo momento em que pôs a carrinha a funcionar. Decisão apressada e que não iria ter as consequências pretendidas, como veremos brevemente. Seria o barco a opção para atravessar o Sado. Para chegar mais depressa, não, apenas para ver a foz do rio, porque lhe apeteceu. O destino é como é e prega-nos partidas utilizando meios insuspeitos como seja a nossa memória. Foi o que aconteceu a Aurício com a sua, dele, memória. Veio-lhe a esta imagens da sua, dele, juventude, de quando era o filho mais novo de um rebanho de doze, de quando a família era maior e mais unida e se passavam noites no campo a olhar para o céu, durante semanas de acampamento junto de povoações amigáveis. Tudo isto quando se preparava para abandonar o perímetro da Lagoa que ficava do seu lado esquerdo, todas estas imagens que o fizeram olhar com atenção para a berma da estrada e reconhecer um caminho, uma casa velha ali perto, talvez oitocentos metros, erva alta e mato bravio, sem regra nem dono. A decisão que não precisa de permissão para ser mudada visto nunca ter sido comunicada, porque nestas coisas o homem manda, cada coisa no seu lugar. A viragem quase brusca provocou um cair de caixas vazias que os guardas haviam deixado…Quase no gozo…Cabrões da merda…Era preferível andar praí a matar…Filhos da puta…A carrinha que se meteu pelo caminho arenoso em direcção à água em direcção à memória passada, povo das estrelas, antigo de três mil anos antes de Cristo, Norte da Índia, quem sabe, a quem lhe interessa, a memória de Aurício não vai tão longe nem a carrinha consegue tal prodígio, pedra filosofal de qualquer historiador que se preze, o recuo na memória da história…Das histórias…
Parou junto a uma casa velha, em ruínas, metade telhado, metade paredes, metades de portas e janelas por onde passaram vidas inteiras. Conhecera os donos, um casal com dois filhos que sempre o trataram bem, sempre os trataram bem, ao seu pai, à sua mãe, à família. Ficavam ao fundo do terreno que tinha extrema junto à água, suficientemente perto para ouvir o seu restolhar manso no silêncio da noite. Também o mar ficava perto, por detrás da lagoa, também ele marcara presença na memória de Aurício.
O dia estava cinzento, cinzento húmido mas calmo, calmo da chuva que não ficou mais grada e acabou por desaparecer, calmo do vento que se escondeu no horizonte. Desceu sozinho, sem palavras que solicitassem o mesmo destino aos seus acompanhantes, um descer mecânico, movimento incontrolado que o fez tirar o chapéu preto e respirar fundo, tão fundo quanto os seus pulmões, gastos do alcatrão dos cigarros, permitiam. Não foi logo que o viu, nem eu tenho a certeza de ter sido ele o primeiro. O gaiato, o Manelito, também descera, impaciência da idade, apelo da natureza à sua volta, correu a molhar as mãos. Aurício olhava-o distraído quando o viu parar e virar a cabeça. Será que ouviu o grito do filho, certamente, a julgar pelo impulso que o levou para perto dele. Agora estão juntos e olham para a beira de água, para a mulher deitada de cabelos lambidos pelo líquido milagroso, bênção de Santo, nome de lagoa. A mulher está morta, do pescoço cortado um fio de sangue seco indica o local do corte, ferida feia e comprida, boca aberta na carótida.

3 comentários:

pb disse...

ai primo, que já me estás a deixar em pulgas sobre quem anda a matar essa gente toda na lagoa, fico a aguardar a continuação, um abraço

Isabel disse...

Olá Paulo,

Esta tua Lagoa esta cheia de encantos e mistérios.
Muito bom todo o texto, nem poderia ser de outra forma pois tudo o que escreves é muito bom.

Eu sinto uma grande curiosidade pelo povo de etnia cigana, também por aqueles que o são como modo de vida.

Já soube e já aconteceram comigo algumas estórias feias, muitas vezes provocadas pela nossa desconfiança e pelo nosso trato rude que provoca uma reação semelhante (dessas que dão origem à fama que os ciganos adquiriram) mas também já soube e já assisti às outras, às histórias bonitas, inclusive a uma bonita e complicada (pela questão da etnia) história de amor entre um cigano e uma rapariga do meu liceu.

Lembro-me de um dia num autocarro era eu uma miúda, uma adolescente diria, ter ouvido uma cigana falar do marido, dizia com o peito inchado O MEU HOMEM, e cada vez que o dizia batia com a mão no peito com força e orgulho.
Pensei para mim: è assim que um dia quero amar, é assim com este orgulho com esta admiração que um dia quero falar do meu amor, O MEU AMOR, O MEU HOMEM.
Foi uma cigana cheia de amor desmedido que me mostrou como eu queria futuramente amar na vida.
Foi por esse desejo que me fez seguir os caminhos que segui, muitas vezes complicados ou menos bons. Aprendi que um amor assim não se encontra com facilidade... surge um dia sem ninguem esperar...
Não esquecerei essa cigana nunca nem a força que vi nela e que quero ter em mim no amor e em tudo na vida.

Já me estou a alongar eu sei... mas isto é para dizer que ao ler-te imaginei que era ela a cigana morta na lagoa... e me comovi.

Levam-nos a pôr de nós na estória as boas estórias, bem escritas, bem desenhadas como a tua.

E um dom que a tua escrita tem, já to disse mas como os ciganos sou determinada e persistente, não me canso de o dizer.

Até breve.

Isabel

Isabel disse...

Ah esqueci-me,
aconselho uma visita ( se ainda não conheces) ao sítio da minha querida "Estranha pessoa esta" que alem de me ter deixado a babar (inevitável) desde ontem com um post com parte de um texto meu, tem um blog que é dos melhores e mais ricos que ai andam.
Os textos que escolhe, a qualidade surpreendente das fotografias, os seus comentários sensiveis e inteligentes, que deixam perceber a pessoa linda que ela é, valem muitas visitas e garanto que ninguem sai de lá sem vir a pensar no que leu ou viu... enriquecedor e ao mesmo tempo leve...sentes-te bem por lá...

http://paraladomiocardio.blogspot.com/

Passa lá quando puderes que vais adorar... ficas "cliente" estou certa e ela se aqui passar também não deixará de vir.

Até breve,

Isabel