2007-10-09

O Automóvel V

Cheirava a medicamentos, a desinfectantes vários. Mexeu primeiro os dedos das mãos e dos pés. Apercebendo-se deitado abriu os olhos. O tecto branco cegou-o e fechou-os novamente. Imaginou-se numa enfermaria e teve receio de mover o corpo. O medo de que alguma coisa estivesse mal, a ânsia de saber o quê. Lentamente o medo recua, a ânsia avança destrutiva e num gesto reflexo tenta levantar-se. Sente uma dor aguda que lhe começa nas costas e acaba na perna esquerda. O braço esquerdo também lhe dói e cedeu ao esforço fazendo-o desequilibrar-se. Vencido deixa-se cair. O impacto desamparado da cabeça no chão deixa-o novamente sem sentidos.
Agora o cheiro a medicamentos recorda-o da queda, tem os pulsos presos.
Alguém que se aproxima, ele pressente o movimento, os pés que calçam sapatos sem salto, sola de borracha no guincho com o pavimento polido. O movimento é leve, dir-se-ia gracioso. Neste momento algo respira por cima dele, uma voz desabafa, Ia jurar que o vi mexer. Manteve-se imóvel, deixou que a respiração se afastasse. Não se afastou muito, o barulho de uma cadeira ali perto assim o indicou, novamente a voz, Se ele não acordar vou-me embora. A voz, a voz que o conduzia num Jeep, a voz que lhe gritou, Não faça isso!
Está acordado mas mantém os olhos fechados. Irá decidir abri-los, revelar através deles que recuperou a consciência.
Abriu a porta e saiu, o pânico assim determinou, a carrinha que não estava onde devia estar, a sua imagem num relance, mais abaixo, virada ao contrário num declive abrupto. Abriu a porta e saiu, a voz, Não faça isso!
Ele lá fora, a queda, o vazio, o momento do impacto, a dor e de seguida novamente o vazio, desta vez escuro, intemporal.
É este o momento, decidido está a enfrentar a realidade, o que aconteceu à sua carrinha, onde está a sua carrinha?
Novo movimento reflexo, desta vez com a força que a convicção grava nas nossas decisões, sentado de uma só vez, apoiado nos braços como se estes fossem suporte de um baloiço.
Xana arregalou os olhos, o movimento demasiado rápido surpreendeu-a, já não era a primeira vez.
Olha quem acordou! Já estava para me ir embora.
O Zé ouviu a voz ao longe e quis responder, enrolou a língua nos dentes e grunhiu algo parecido com, Onde está o meu automóvel?
O seu automóvel? Não me faça rir.
Até ele sentiu vontade de rir, por momentos sentiu vontade de rir e sentiu-se ridículo, Onde está a minha carrinha?
Não seria melhor saber onde estás?
Xana está irritada, o Zé está desorientado, melhor o silêncio que vai ficar entre os dois nos minutos que se seguiram.


(Cont.)


P.S. Obrigado a todos os que me comentam por me fazerem continuar. A todos vós um abraço.
Até que tudo o que é a vida nos separe.

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