2023-10-31

Verborreia ou incontinência oral?

 De bata branca. De bata imaculadamente branca apresentei-me na Escola Básica Nº 1 da Amadora. De que me serve relembrar essa criança de sete anos, asmática e frágil, de pequeno porte, como se diz dos poneys. A fotografia existe e foi digitalizada hà alguns anos por um gajo que se chama Paulo Saboga. Já não o vejo hà algum tempo. Descobri a fotografia por acaso. Bem, nem por isso. Procurava outra pessoa, outro local, uma recordação que não era minha mas que que eu conhecia como se fosse. Cabo Ruivo a preto e branco, um homem de fato e gravata parecido comigo, bancadas com intrumentos analíticos fora de moda, telefones pretos que faziam Trrriimmm quando queriam o conforto de uma orelha, um beijo no bocal, o bafo quente e humido que se infiltrava pelo emissor radiofónico, e folhas, muitas folhas, e papel químico, e canetas, esferas gráficas que rolavam, modernas, pelos boletins impressos, gritando BIIIQUEEE (BIC). Hoje gritam-se outras coisas nos teclados. Fala baixo Paulo, vê lá se alguém te ouve nesse teu matraquear furtivo; o sujeito pára de escrever e olha desconfiado à sua volta. Não, não está ninguém a ver...de bata branca, de bata imaculadamente branca apresentei-me no gabinete do Engenheiro. Penso que foi o Guerreiro que lá foi. Primeiro bateu à porta, uma porta sempre fechada, uma porta que guardava a segunda sala no primeiro andar, do lado esquerdo...seria a segunda ou a terceira? Que interessa isso agora? Quem poderá confirmar essa tua realidade, repetida até à exaustão durante anos. Lembras-te dos sapatos? Talvez botas, ou ténis...e das calças? Calças de ganga no verão, bombazine no inverno, talvez nem fosse eu. Bem, o cabelo comprido, a barba grande e mal aparada, tinha tudo para ser eu, mas podia não ser, já foi hà tanto tempo, dezoito? Já não me lembro quantas farpas estavam cravadas no bolo...sim, pareciam velas e estavam acesas, se calhar eram só duas, por uma questão de economia. Com esta conversa a bata branca já não está à porta. Deve ter batido suavemente, devem-lhe ter dado ordem para entrar, daquelas ordens de quem manda uma coisa que não quer, deve ter entrado e pedido autorização para se sentar e deve ter-se sentado. Agora um grande plano nas mãos que procuram refugio nos bolsos da bata mas...algo se passa nesses bolsos, pois elas recuam para repousar uma em cada perna. 

Não Doutor, esta conversa das mãos agarrou-se de tal maneira à minha pele que quase lhe sinto o cheiro. Ah, o Doutor não sabia que as conversas têm cheiro? Não Dr., não estou a ser irónico. Tenho cheiros de conversas que nunca mais esqueci, talvez seja o meu lado animal, ou outra coisa qualquer. Nos dias que estava com alergia, ou constipado, os cheiros deixavam de ter significado e as conversas perdiam a importancia. Quer voltar às batas brancas? Quais Dr.? Tenho tantas batas brancas na minha vida.

Peço desculpa Dr. mas tive de ir jantar. Iamos aonde? Nas batas brancas? Nem sempre foram batas e nem sempre foram brancas. O branco aleija sabe, no papel obriga-me a escrever, não descanso enquanto não o cubro de simbolos, porventura palavras, frases que brotam sem que as possa estancar. Muitas vezes, quando as revisito, descobro nelas sentidos que não fazem parte da sua genese. O meu mal é querer dar-lhe sentido, importância. Vou falando, escrevendo, sem que consiga parar. Talvez seja da chuva, do frio, das noticias que teimam em querer dividir, és a favor ou és contra? Não sei, deixa-me pensar. Vá lá, depressa, tens dúvidas? Não me digas que não entendes, que não sabes como as coisas são. Vá lá, A ou B, preto ou branco, sim ou não...não sei... deixa-me dormir...

Dr., acho que a conversa já vai longa e o jantar deixou-me mole. Sim, é melhor deixar para outra vez. Da próxima, prometo contar-lhe histórias das esplanadas nos cafés da Amadora. Já as revi tantas vezes que, para não fartar, as vesti de diversas maneiras. Possivelmente aconteceram com todas essas roupas, adereços inventados  e figurinos avulso. Porque é que as continuo a contar? Ao fim de todos estes anos continuo a ser um miúdo da reboleira. 

Hoje a bata branca fica nas costas da cadeira. Está lá para me lembrar do que fui. às vezes imagino que sou eu que estou lá sentado. Por vezes tento descobrir-me, preso que estou entre os dois ecrãs ligados ao processador. 

Até amanhã Dr., já são quase dez horas e acabei por não dizer nada do que queria falar. Sim Dr. , voçê sabe ao que é que me estou a referir. Ok Dr., então até amanhã.

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