2023-10-04

Inter vs Benfica

 Há quanto tempo que não o via Doutor. A coisa vai andando. Sabe Doutor, ELA é uma companheira fiel, mas cobra-me um preço muito elevado. O amor é assim, possessivo, algumas vezes doentio, ciumento quando a entrega é incondicional, intenso em todos os momentos e assim se mantém até se tornar banal e desinteressado, mas por essa altura já não estarei cá para o sentir. Não Doutor, não estou a ser pessimista, muito pelo contrário. Na minha opinião até estou muito optimista. Repare Doutor, em vez de banal e desinteressado o amor poderia tornar-se odioso, ai sim é que a coisa podia dar para o torto. O ódio gerado pelo amor é um ódio sem piedade, rancoroso e vingativo, metódico na sua capacidade de provocar sofrimento. Se ELA assim já é difícil de aturar, imagine-a tomada por um sentimento assim. Em vez do desinteresse e do abandono que me permitiria um esquecimento gradual até ao fim da nossa relação eu teria 24 horas de sofrimento continuo, a respiração forçada, fraldas molhadas, quedas sucessivas, mazelas registando o conflito constante, a comida por um tubo, os orgãos desistindo de mim em gritos de agonia, Deus me livre de tal sorte Doutor!

Doutor, ontem vi o jogo do Benfica. Jogou com quem? Foi a Milão levar porrada do Inter. Sim Doutor, sou do Benfica. A bem dizer não sou de ninguém, porque isto de "ser", tem muito que se lhe diga. Talvez da minha mãe e do meu pai mas, agora que eles já não estão cá, da D... e da M..., fardo herdado, fado cantado, letra barrenta num gemido de guitarra sem cordas, a voz de um destino, cortado pela naifa que repousa no bolso de trás das calças de Deus. Não, não era sobre Deus que eu queria falar. Era sobre tristeza, neste caso a tristeza que eu senti no final do jogo. Sim Doutor, também fiquei triste por o Benfica ter perdido, mas não era dessa tristeza que eu queria falar. A tristeza que eu senti foi por ainda cair na mesma esparrela de sempre. Eu que não alimento o negócio do futebol subscrevendo canais de pontapés na bola, comprando jornais desportivos de arremedos coloridos "à la carte", indo a estádios para partilhar vocabulário vernáculo gritado em uníssono num orgasmo colectivo, adquirindo  o merchandise apropriado como prova de um amor partilhado que justifica a minha existência, eu que não sou sócio de nada (o clube desportivo da empresa onde trabalho não conta), não participo em esperas apoteóticas à porta de hotéis, salivando por uma foto ou um autografo, eu que não faço nada disto, ontem tive uma recaída e ressaquei. De boca seca e com hálito venoso, jardei merdas e mágoas, mágoas de merda que me revoltaram o estômago e me deram a volta aos intestinos. A Bola é como o álcool, se não sabes beber, não vejas. Na prática vi o Benfica ser humilhado e de nada me serviu justificar aquela exibição com um penálti por marcar ou umas cotoveladas no João. Podia ter-me sentado a ler um livro de Nabokov, tentando-me culto, ou ouvir um CD de Coltrane só porque sim e para parecer bem. Mas não, acedi à voragem contagiosa de um hino, do qual não gosto particularmente, e entreguei-me de garfo numa mão e copo de vinho na outra, numa degustação medíocre que me deixou com azia. Se aprendi alguma coisa? Claro que sim! Aprendi que a companhia do meu irmão M... e da minha D.... era muito mais valiosa que aqueles 22 mocinhos correndo pelo prado da glória em arremedos de pop stars. 

Continuo com as seções de fisioterapia. Vou às segundas, quartas e sextas, sempre das 18H00 às 20H00. Se me fazem bem? Não tenho a menor dúvida. Gosto da disciplina que é necessária para fazer os exercícios, gosto de chegar ao fim das seções com a sensação de dever cumprido, gosto do apoio que a D... me dá, gosto da minha fisioterapeuta. Se estou melhor? Essa é a pergunta a que não devo responder.

As duas horas que passo na clínica são redentoras. Atravesso a rampa como se fosse o rio Jordão. Verto águas no WC reservado às pessoas com mobilidade reduzida. A sanita adaptada é a minha pia baptismal, o meu confessionário. 

A minha D... tem sido incansável. Não sei se seria capaz de aguentar com ELA sem ela. 


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