2023-07-27

Desculpa D.... amo-te tanto

E o mundo continua a girar. Esta constatação poderá não ser dramática, mas para mim tem um sabor amargo. O FMM arrancou em Porto Novo e chegou quarta-feira a Sines. Sentem-se os aromas no ar, e as conversas dividem-se entre combinações de encontros e projectos de férias. Por momentos o Mar Negro perde importância. As ameaças a navios civis, os bombardeamentos, a falta de alimentos nos países pobres, as alterações climáticas, as taxas de juro, a greve dos médicos, os professores, os desvios na Altice, tudo isto, por breves instantes, deixa de ser assunto. Por momentos o mar é azul e cheira a protetor solar, as refrigerantes e a Gin tónico. Os corpos bronzeados, manipulados em ginásios, disfarçados por roupas criadas para o efeito, tomam conta das ruas. Ái de quem não se converta. As piras de madeira, recentemente cortada, são estrategicamente colocadas nas esplanadas. 

O mundo continua a girar e eu sinto-me traído. Como é possível que ele não dê pelo meu sofrimento? Como é possível que ele não ouça os meus gritos de desespero enquanto tento equilibrar-me para chegar à casa de banho, enquanto tento calçar os meus ténis, enquanto tento cortar um bocado de carne no prato, enquanto tento uma vida o mais normal possível?

Sinto a vertigem do movimento. O mundo gira deixando atrás de si o crepúsculo de pessoas consumidas. O menino bate recordes na sua tentativa de grelhar a humanidade e eu pergunto a mim próprio se devo preocupar-me. Claro que sim. O amor que sinto pela minha filha, pela minha mulher, não me deixaria responder de outra maneira, mas a verdade é que, às vezes, estou-me completamente nas tintas. Quando acordo, depois de um sonho em que controlava o meu corpo, eu deixo-me ficar deitado esperando voltar a adormecer. Ainda hoje aconteceu, que tristeza os meus olhos abertos, as cãibras pelo corpo, a pele enxovalhada, os músculos mirrados, que tristeza eu mesmo a girar com o mundo.

Vendi o meu carro, já não o consigo conduzir. Há dois anos atrás jurava a mim próprio que o havia de levar para a cova, coisa parva para se dizer, mas que era a demonstração verbal do meu amor pelas coisas que me acompanharam na vida. Pela primeira vez consegui chegar aos 200.000km com um veículo. O meu Juke vermelho. 

Um dia, num jantar, ou seria um almoço, bem não interessa, uma dessas refeições em que juntamos uma dezena de pessoas para comemorar uma coisa qualquer, ou a pretexto de qualquer coisa, alguém, numa conversa a respeito de automóveis, comentou que o meu Juke era o carro mais feio que havia, e chamou-lhe Yuke. Senti tanto orgulho nessa fealdade que passei a referir-me ao meu carro como o meu Yuke. Gostava tanto de o conduzir, possivelmente o automóvel de que mais gostei

Não fui capaz de despedir-me do meu Yuke. Sinto-me triste e o mundo continua a girar. Os objectos à minha volta revelam-se inimigos implacáveis quando tento resistir à imobilidade, sempre dispostos a relembrarem as barreiras, o campo minado em que se transformou o mundo que me rodeia.

Preciso de marcar uma consulta com o Dr. Blogue. Desta vez não quero só falar, quero alguma espécie de resposta, uma merda qualquer, nem que seja só para me dizer isso mesmo, que sou uma merda. Ninguém tem coragem para o dizer, coitado do deficiente, não batam mais no ceguinho.

São 19H10 e, alguns anos atrás, estaria a preparar-me para uma noite de concertos. Talvez eu amanhã arranje coragem para aceitar o convite, a exposição mediática do corpo destroçado a quem ninguém liga.

Desculpa D.... amo-to tanto.


 

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