2023-07-21

Esmola



Sentado no lugar do passageiro espero por mais uma esmola. Transformei-me num especialista. Faço os pedidos por interpostas pessoas e envio os meus emissários em diversas direções, numa procura incessante por subsídios. Carregam consigo o bastão da deficiência, a palavra chorosa do anormal. Sentado no lugar do passageiro congratulo-me por mais um sucesso. Sinto vontade de bater as palmas das mãos, de aplaudir em pé. Em pé? Ah! Ah! Ah! E seguro-me aonde? Pedes para te agarrarem, no fim de contas, "Pedir", é o teu nome do meio. Saímos de Santiago com a sensação de dever cumprido, mais uma bandeirinha no cume da montanha, amanhã outras haverá para escalar.

Enquanto esperei apaguei um conto do Blogue, assim como o link que dele havia criado no Face. Que diabo, o que era aquilo? Um rapaz, uma mãe, uma árvore, um destino divino, uma porcaria, lixo que inventei porque não quero admitir o que sinto.

O que sinto eu? Talvez um pequeno episódio o possa representar. Ontem acordei tarde, nada de especial para quem está de férias. O problema é que eu tinha de fazer análises, aquela coisa de levar um pequeno recipiente com urina e, em jejum, deixar que alguém faça um pequeno orifício numa das veias do braço para de lá extrair um líquido escuro, possivelmente sangue, se alguém assim o quiser apelidar, e esperar pelo inevitável resultado a confirmar o que muitas vezes já se sabe. Bem, deixemo-nos de divagações e vamos diretos ao assunto. Acordei tarde e, a muito custo, sentei-me na cama. Urinei para onde tinha de urinar sabendo que estava atrasado e que tinha de me despachar. Levantei-me a muito custo e procurei pela bengala, acessório indispensável para o meu equilíbrio. Já em pé, e com uma confiança pouco cautelosa, arrisquei alguns passos. O desequilíbrio foi imediato, dois passos atrás, a tentativa de cair em cima da cama, o resvalar para o chão, a boca dirigindo-se para a gaveta da mesa de cabeceira, a cabeça na parede, e o sabor de sangue na boca. OK, já está! Hoje é assim e isto é só o começo. O que sinto eu? Que isto é só o começo.

O meu futuro tem hoje outra velocidade e eu ainda não acertei na sincronização. As palavras escorrem até aos meus dedos com o sabor de sangue na boca, por esse motivo não consigo brincar com elas, usá-las para usufruir do prazer da criação. Neste momento tudo o que fizer nesse sentido se revelará inócuo, irrelevante e acima de tudo, mal escrito.

Resta-me ser eu mesmo. E o que sou eu, por detrás da máscara que coloco todos os dias? Sou alguém com uma doença degenerativa, Esclerose Lateral Amiotrófica, ELA. ELA já me tirou algumas coisas; tirou-me as pernas, para andar, tirou-me a mão esquerda, para tocar, e vai-me tirando, todos os dias, pedaços de mim. O que me resta então de todos os sonhos que adiei? Acordar e fazer com que o dia valha a pena, retribuir com amor a quem, todos os dia, ainda acredita em mim. Sendo assim, ainda me falta tanto que não lhe vou chamar "resto".

E a escrita? O que fazer com as palavras que continuam a escorrer pelas minhas mãos? A escrita será a minha consulta de psicologia. Finalmente um objectivo concreto para toda esta verborreia. "Um Dia Depois..." será o sofá onde poderei espojar-me, chorar e rir, barafustar e, porque não, gritar até que o diafragma desista de mim.

Leio o que escrevi. Agora sim começo a fazer sentido. Reconheço-me neste palavreado que, de alguma forma, é uma manifestação de auto comiseração. Sim Paulo, não inventes, tu não precisas de inventar nada. Vá, não despejes tudo num só dia, já passou uma hora e não pagaste para mais.

Até à próxima Dr. Blogue



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