2023-08-09

Eu não sou Cristo, não tenho nenhuma mensagem para deixar...

 Está calor. Está muito calor. É de noite e está muito calor. É de noite, está muito calor e o termómetro marca 24ºC depois de uns sufocantes 39ºC durante a tarde. Tenho dificuldade em mexer-me na cama. Os lençóis queimam e a ventoinha de plástico não consegue diminuir a grossura das veias nas minhas mãos. Ontem arrastei-me até à casa de banho onde mergulhei as mãos em água fria e molhei o peito, as costas e a  nuca. Quando voltei para a cama já estava seco. Hoje a D. deixou-me uma garrafa spray com água de uma marca conhecida. Borrifo-me várias vezes mas não consigo estabilizar a temperatura do meu corpo. 

Olho para o relógio que me deram, uma preciosidade da tecnologia que me permite monitorizar, entre outras coisas, a percentagem de oxigénio no meu sangue. Consideram-se valores bons qualquer coisa entre os 95%  e os 100%. Valores abaixo de 90% são maus. Olho para a porcaria do relógio todas as manhãs apenas para descobrir que os meus níveis de oxigénio no sangue descem durante a noite e estacionam teimosamente nos 88%. Haverá espaço para colocar uma garrafa de oxigénio junto à mesa de cabeceira? Já houve tempo em que outras garrafas velaram o meu sono.

A D. diz-me que eu devo escolher os livros a peso. Expliquei-lhe que gosto da companhia de um bom livro por mais de um mês. Geralmente escolho-os para ler na cama. São trinta e tal dias de companhia, à qual me habituo ao fim de uma semana, e da qual sinto saudades quando acaba. Pelo meio, na sala, leio amigos mais pequenos. Já pensei comprar um suporte de leitura...para me ir habituando. Quem primeiro me sugeriu a ideia foi o Dr. V.J. Penso que não resolve o problema para todos os livros porque alguns teimem em fechar-se mal se libertam da pressão dos meus dedos. Força-los seria ferir-lhes a lombada, deixar a a minha marca no seu lombo, mostrar que os domestiquei.

Acabaram as jornadas, duram os incêndios e começa o futebol. Entre os recordes de temperatura, Marcelo e Costa tiram proveito do sucesso da missão JMJ. Francisco foi igual a si próprio, uma lufada de ar fresco perdida na hipocrisia de uma Igreja que se tenta actualizar mas há temas que continuam a doer. A morte assistida é um deles. Perguntam sempre a opinião às pessoas erradas...

Assumo a minha fé cristã. Mais do que em Deus eu acredito no Cristo-Homem, Cristo-Revoltado, um Cristo-Social que nos inventou iguais para nos apresentar ao seu Pai. Também ele teve uma morte assistida quando se deixou crucificar. Podia ter evitado a cruz, mas não o fez. Decidiu-se pelo sacrifício e inventou-lhe um significado. Foi esse o seu testemunho e por esse motivo adoramos a cruz. Eu não sou Cristo, não tenho nenhuma mensagem para deixar e gostaria de morrer sem sofrimento mas com dignidade.

O relógio da cozinha está a precisar de pilhas outra vez. Já pensei em deixar que os seus ponteiro se imobilizem para sempre numa ilusão de imortalidade, apenas desfeita duas vezes por dia, mas a ideia não agradou à D. e eu tive de concordar com ela. Afinal ainda precisamos do relógio da cozinha, nem que seja para constatar, todos os dias da semana, que estamos atrasados para o trabalho, ainda por cima eu não posso correr...

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