2006-11-20

Caminheiro (O adeus)

Durante seis meses e até a obra acabar arranjaram sempre maneira de se encontrar a sós. A princípio momentos breves, o desejo era mais forte, depois as confissões, os passeios junto à ribeira, o risco que aumentava.
“Sabes que fui violada quando estudava em Lisboa?”, cabeça baixa, cabeça alta, “Percebes? Tudo me correu mal.”. E ele escutou a história daquela noite, “Ele e os amigos…Os cabrões…Chorei tanto…”, a humilhação, os olhos negros, as escoriações no corpo, “Nunca mais fui a mesma…Tive de abortar, na altura era difícil e fiquei muito mal…Mas mesmo assim sobrevivi e consegui ter um filho do Pedro.”, “Gostas dele?”, “Gostei…Precisava de alguém…”, “Serei eu uma repetição?...”, “Não! Actualmente não estou tão frágil.”, “Talvez estejas mais amargurada…”, “Que sabes tu disso?”, “Estive preso quinze anos…Matei um homem…Por amor ou despeito ou outra coisa qualquer que me tirou o sono até eu lhe acabar com a vida.”, “Mataste um homem por amor?...”, “Por amor a uma mulher…Á minha mulher.”, “Foste…Traído?...Desculpa…”. Neste momento choravam os dois, em silêncio, com a água guardada nos olhos. “Perdi-os quando estava na prisão, primeiro o divórcio, depois o acidente…”, “Não vamos falar mais nisso…Vem cá…”, ele foi e tiveram-se como nunca se tinham tido.
A vida não é feita de felicidade ou infelicidade, a vida é feita de acontecimentos, eventos que nos colocam perante decisões, escolhas, das quais dependem outras que podem ou não interagir com futuros acontecimentos.
Foi este o caso. A principio o Pedro desconfiou, aquela súbita leveza e abnegação, mesmo quando lhe batia e violava, ele que tirava prazer do facto dela sofrer via com surpresa a cara sem expressão da mulher, quase um sorriso, um alheamento insuportável para ele. Mas o ciúme não o deixou dormir, uma dúvida de dentro, uma vontade de saber o que desconfiava e quase tinha a certeza, ele que conheceu tantas mulheres, algumas de outros. Seguiu-a num sábado depois de sair com um grupo de amigos e ter avisado que não vinha jantar. Nesse dia também o filho levou um beijo, não chegou a perceber porquê. Deixou os amigos por volta da hora do jantar, rondou a casa e viu-a partir, leve, ligeiramente apressada, quase saltitante…Apanhou-os, mas não teve coragem de aparecer, o outro era homem de trabalho, com o corpo treinado no desconforto da vida, seco, músculos fortes nas pernas e nos braços, sem serem grandes ou aberrantes intimidaram-no, a ele que tinha muita coragem quando estava bêbado ou acompanhado. Saiu humilhado daquela janela, daquele pequeno monte de uns amigos da Inês, do qual lhe haviam deixado a chave, “Para ver se está tudo bem, nunca se sabe!”. Chegou tarde a casa, depois de ter corrido todos os bares da região. Esteve com mulheres mas não conseguiu ir com nenhuma.
Inês ficou muito mal tratada, chegou a ir ao hospital onde ficou um dia antes de regressar a casa com um braço ao peito e um sem número de negras e vermelhões.
Não saiu durante um mês. Foi lá que soube de tudo o que havia para saber. A obra tinha acabado e aquele moço simpático que estava em casa da Dona Lúcilia tinha partido, o marido morreu uma semana depois, vítima de um acidente automóvel, o carro em que seguia capotou numa ribanceira e pegou fogo deixando irreconhecível o corpo do seu ocupante. Não foi ao funeral para ver os dentes que o identificaram…Deixou-se estar gozando do sossego, da paz e da saudade daquele homem. Centrou-se no filho, tinha finalmente hipótese de corrigir alguns erros…Desta vez não queria falhar…Que pena ele ter-se ido embora…Sem um beijo que fosse…
O nosso homem despediu-se dos comerciantes, aceitou farto farnel e partiu para sul, todo ele horizonte…Por fora…Por dentro a raiva e a determinação do que tinha para fazer. Esperou uma semana antes de agir. Dormiu em valados e terrenos ocultos, o farnel tinha que durar cinco dias pelo menos. Matou-o no parque de estacionamento de um bar. Tudo o resto veio dos anos de prisão, aprende-se muito, aprende-se também a ter paciência e alguns truques de honrosa marginalidade. Não se virou para trás quando deixou o carro a arder…Ainda ouviu a sirene dos bombeiros…
Inês recebeu a carta passados seis meses. Sem remetente exterior lá dentro dizia tudo…”Sou eu, amo-te…Espero que sejas muito feliz! Levo de ti um pouco do teu cheiro…O que um caminheiro pode levar…”.
Meteu a carta no correio no dia em que embarcou numa traineira em direcção à Mauritânia.

FIM!

3 comentários:

naturalissima disse...

Fiquei deslumbrada com este magnifico texto, apresentado em 4 partes. Levei tempo a fazê-lo, pois eles exisgem disponibilidade... fi-lo com muito prazer.
GOSTAVA MUITO QUE ISTO FOSSE EDITADO EM FORMA DE LIVRO!
Comprava-o sem pensar duas vezes.

Amigo, vou lêr novamente... soube-me bem e gostaria que isto não parasse por aqui.

Um beijinho
Daniela

Titá disse...

Mano, Amei.
Fiquei completamente presa a esta história. Li e reli. senti, deixei-me ir nessas imagens, sensações que tu sabes transmitir como ninguém, através de um bailado intenso de palavras tão sinceras.
Por favor....continua. Faz-me esse favor.

Olha, hoje vim no mesmo comboio que o Zé João. Falámos um bocado. Foi bom.
Estão todos bem... o nosso pessoal. MAndou-te um abração.
Senti saudades e liguei para o Kajó. Na mesma. Aquela generosidade e simpatia de sempre.
Também te manda um abração.

E eu, mando-te aquele beijo.

pb disse...

Gostei, apesar de imaginar um final " cor de rosa " ( manias minhas...). Cá por mim, podes ed eves continuar a escever contos destes !! Um abraço