2006-11-13

Caminheiro (Decisões)

Sete e meia, talvez um pouco mais, um ou dois minutos. A indicação é fornecida por dois ponteiros num relógio de propaganda. A voz é amável, um pouco rouca, “Boa tarde!”, “Boa tarde!”, não sabe o que pedir, espera um pouco, o homem de avental espera também, “Vai beber alguma coisa?”, “…Sim…Uma cerveja.”. Não escolheu a marca, nem o outro o quis incomodar. Por detrás do balcão, como num passo de magia, aparece uma garrafa gelada, de caminho pega num copo. Faz a entrega e deixa o caminheiro em paz. Fez estes últimos quilómetros numa ânsia conhecida, paro, não paro, fico, não fico, distraiu-se com os pássaros, com o céu azul paraíso, azul imenso, sem fim, vai ser difícil decidir…Bebe a cerveja e ainda não sabe o que fazer. Junto à porta o dono do estabelecimento aprecia o entardecer. Na mercearia a mulher atende duas vizinhas. A mais nova observou com atenção aquele estranho. Ele apercebeu-se e sorriu sem direcção. Ela corou, acabou bruscamente a conversa, pagou e abalou apressada num aceno de urgência. Antes de sair olhou-o mais uma vez. Desta vez ele fingiu que não viu. Lembrou-se da mulher que amou, do filho que teria vinte anos se fosse vivo, mortes trágicas. Estava preso ia para cinco anos quando o padre o mandou chamar e lhe deu a notícia. Acidente brutal, corpos desfeitos, a fotografia veio no jornal, bombeiros, polícia. O jornalista falava de excessos, de velocidade, de álcool, “Segundo testemunhas a viatura em que seguiam as quatro vítimas mortais deu várias cambalhotas antes de se imobilizar e pegar fogo…”. Tinha-o deixado logo no primeiro ano de cativeiro…Desde ai nunca mais os viu…A sua família…
Quase oito, “Que fome…”. Pediu uma sopa, pediu carne e pão, meteu conversa e perguntou por trabalho, um quarto barato onde ficar um mês. Teve sorte com a comida e com o quarto, quanto a trabalho amanhã logo se veria. O casal, embora pouco falador, era simpático e deixava espaço para respirar, não o atropelou com questões profundas libertando-o numas águas furtadas por cima do café. O local tinha sido arranjado para poder ser alugado. Era asseado, simples, cama, mesa de cabeceira, cadeira, armário, um espelho de meio corpo. Pediu que o acordassem cedo, “A gente levanta-se às seis…”, “Pode ser…Obrigado e boa noite”, “Boa noite, durma bem!”, o desejo foi da mulher que o olhou com ternura, uma ternura materna de quem vê um filho cansado. Talvez a fizesse recordar algo.
Dormiu mal, não por culpa do quarto, mas por culpa da cabeça. Falaram-lhe numas obras da câmara, imaginou-se a rebocar, a fazer massa…Só um mês…Só para descansar.
O sol ainda não se via quando a mulher lhe bateu à porta, “Vou fazer o pequeno almoço, se quiser pode comer connosco, tem é de se despachar.”. Para ele a manhã era a melhor parte do dia, aquela em que se sentia melhor, com mais energia, recebia a luz matinal como uma bênção, aliviado da escuridão que o oprimia. Tomou um banho numa casa de banho que ficava no quintal, nas traseiras do edifício. Sentou-se à mesa depois de convidado, esperou que lhe oferecessem uma caneca de café com leite e duas torradas com manteiga caseira, comeram em silêncio. No fim da refeição o homem prontificou-se a levá-lo ao estaleiro. Ele agradeceu e aceitou o convite. A aldeia era pequena, casas brancas e térreas de ambos os lados da estrada principal ao longo de três quilómetros. Uma rua secundária, paralela, desembocava numa praceta onde iria ficar situado o posto da GNR, eram essas as obras. A apresentação foi breve, o capataz era amigo do comerciante e o contracto foi logo celebrado, “Começa hoje, amanhã tratamos dos papéis.”, Aceitou, agradava-lhe trabalhar, suar, parar de pensar. O trabalho não era muito pesado, o ritmo lento não cansava quem estivesse calejado de outros andamentos, talvez por esse motivo não parou de pensar. Recordou a imagem esguia daquela mulher de meia idade que tanto o tinha observado, coincidência ou não ali estava ela passando devagar, do outro lado da rua, com uma criança pela mão.
(cont)

4 comentários:

Titá disse...

Sinto-me um caminheiro, caminhando lado a lado com esta personagem que tanto me traz de familiar.
Há algo neste homem que reconheço..ou será a minha vontade de também partir?

Escreves divinamente.Adoro ler-te.
Beijinho e boa semana

muguele disse...

Eh lá!
Escreves bem, pá!

Sonynha disse...

Gosto de pessoas prolixae e és uma delas!
Parebéns pelo teu Blog
Sonynha

Isabel disse...

Gosto deste teu caminheiro, gosto desta tua forma de escrever que tambem tem algo semelhante a uma caminhada,(tua,interior, é o que eu sinto, posso estar enganada, claro!)
Gosto de caminheiros.
Gosto de caminhar.
Gosto da forma como caminhas na escrita.
E gosto do caminhar da tua irmã.
Sinto falta de quando caminhas para me visitar.

Parabens, é uma história e tanto!

Isabel