2006-11-07

Caminheiro (A chegada)

As solas batem no cascalho, pequenas pedras que se enterram e empurram, cadência arranhada marcando o andamento. Na orla da seara a silhueta azul do caminhante é um risco harmonioso na imensidão aloirada. Desloca-se lentamente mas com convicção, movimentos decididos dão beleza a este andar. Começou às nove da manhã, como todos os outros dias. Pára por volta do meio-dia, para estudar o terreno e procurar uma sombra. Um sobreiro desnudado convida-o a sentar-se, tem no seu tronco um número pintado, sinal feito por quem o despiu. Ele aceita o convite, pousa a mochila de pano grosso, tem cor de tropa e está atafulhada de coisas, apanha um pouco de pasto e improvisa um assento. Deixa-se levar pela brisa quente do estio e quase que adormece, um ligeiro piscar que teima em ser pausa. De dentro da mochila tira um saco de supermercado, velho amarrotado, letras gastas anunciando uma superfície comercial. No saco um pano enrola duas fatias grandes de pão. Tira uma, corta-a ao meio e guarda o resto com cuidado. Ainda tem um pouco de toucinho, mas também este é dividido pela mesma navalha que cortou o pão. A sua amiga, única companheira de muitas refeições, mas não só. É habilidoso com ela e consegue milagres na madeira, verdadeiros prodígios em miniatura. Homem de mil profissões também passou por carpintarias, embora excelente na arte nunca a considerou como tal. Tem um cantil com meio litro de vinho, presente do taberneiro na última aldeia por onde passou. O trabalho na mesa da cozinha ficou bom e além do vinho e de uma farta refeição ainda ficou com algum dinheiro. Trabalha por onde passa, é assim há cinco anos, desde que…O dia está óptimo e convida a uma sesta, rende-se sem esforço, o trigo esfrega um no outro e embala o seu corpo, a sua cabeça, os seus olhos e por dentro.
Não usa relógio mas nunca adormece mais que duas horas. Desperta com calma, exercita as pálpebras e controla a quantidade de luz na íris, primeiro numa, depois na outra. De uma garrafa de plástico com água retira-lhe dois golos, o último mais demorado. Levanta-se e sacode-se das palhas que lhe serviram de enxerga. Novamente de mochila às costas decide-se por um caminho, um que o leva para o sul. Lembra-se de um comentador de televisão ter afirmado que a maior pobreza se encontrava no hemisfério sul e que o fluxo migratório dos seres humanos teria tendência para ser na direcção oposta. Também se lembra do que comeu, nesse café onde ouviu a notícia. Café familiar, acolhedor, sandes de pão caseiro com presunto, dois copos de vinho e um café. Ainda teve uma longa conversa com os donos antes de partir, chegaram a oferecer-lhe emprego, nada de especial, mas uma coisa limpa e honrada numa loja de ferragens de uns primos.
Vai para três horas de caminho. Há cerca de quinze minutos encontrou uma estrada asfaltada e segue pela sua berma. Pararam duas vezes para lhe oferecer boleia, à segunda aceitou. Chegaram a uma pequena povoação e ele apeou-se agradecendo a gentileza aquele homem do campo que o transportou na carrinha. Abeira-se do único estabelecimento aberto, café, mercearia, mini mercado, tudo junto. Lá dentro a separação é feita por pequenos arcos em alvenaria. Escolheu uma mesa para duas pessoas e sentou-se. Por detrás do balcão está um homem já bem entrado. Pouco cabelo, branco e curto, barriga saliente por debaixo do avental de plástico. Limpa uns copos, tarefa que o ocupa por breves instantes, só depois se dirige ao cliente.
(cont.)

8 comentários:

pb disse...

mais um bonito conto. Olha que ás vezes apetece largar tudo e pegar a estrada, sem rumo...Um abraço

Miguel Baganha disse...

Não há o que desculpar, amigo Guerreiro...eu também tenho andado ausente.
A ausência ás vezes é necessária...ajuda a pôr as ideias em ordem, conforme dizes....

Um grande abraço, espero que te encontres bem.
Uma música:
" UNDER THE TREES OF HOPE "
( Andreas Vollenweider )

Miguel

Titá disse...

Lindo!

Meu irmão deixei-me levar em tuas palavras, vivi por momentos esta sensação, imagem, emoção.
Estou ansiosa pela continuação.
Lembra-me alguém, algo.
Um beijo de saudades.

Isabel disse...

Como tu escreves! parecia que estava a vê-lo esse homem, tenho um amigo realizador de cinema que iria por certo imaginar filma-lo.
Vi esse homem que escreveste acredita e este é o maior elogio que se pode fazer a quem escreve.

Fico esperando continuação.
Lá no meu sitio dei hoje continuação há minha história "começar de novo". Vem ler-me.

Tens sorte tens uma irmã que é uma mulher e tanto, e isso significa tanto, eu sei que tambem tenho um irmão maravilhoso.

Até breve.

Isabel

Anónimo disse...

Também fico esperando a continuação
desta história melancólica. Venho entretanto, sensibilizado, agrade-
cer-lhe os seus comentários e o bom
entendimento que desdobrou quer so-
bra a minha escrita, quer sobre o blog de «visualidades» apoiadas em
texto. Virei visitar a serenidade
visual do seu blog e agora até breve.

pb disse...

Meu amigo, esta cantinho faz parte daqueles que diariamente visito, porque me dá prazer ler-te, porque gosto, porque...para quando o resto do conto ?
aquele abraço

Isabel disse...

Imagino que tenhas andado ocupado ou sem paciencia para estas coisas mas não podia deixar de te deixar um desafio lá no meu sitio.

Se te apetecer e arranjares um tempinho... passa por lá.

Isabel

Sonynha disse...

Gosto de pessoas prolixas e tu és uma deles
Virei sempre
Sonynha
http://damadeourosbr.blogspot.com