2006-08-28

Um conto em três páginas

1ª página

Tinha trabalhado a noite toda numa enorme tela, encomenda de gente rica, gente que ele não conhecia. O seu antigo professor tinha tratado de tudo, até do dinheiro para as tintas. Havia um ano que vivia de esmolas, de retratos a lápis de cor à porta das zonas turísticas de Lisboa. O quarto era pago pela namorada que o deixou após um ataque de nervos. Depois disso conseguiu que o senhorio aceitasse como pagamento o seu trabalho na pintura da casa, “Se você é pintor deve conseguir pintar paredes?!”. O prazo estava a esgotar-se quando encontrou por acaso o seu professor de desenho, “Ainda és capaz de fazer alguma coisa? Consegues assumir um compromisso?”, respondeu que sim, de cabeça baixa olhando para as calças que não viam água há muito tempo. O que tinha de fazer era relativamente simples. Mensalmente chegaria às suas mãos uma fotografia que teria de reproduzir com total liberdade de estilo. Única restrição, a composição teria de ser mantida, não poderia trocar ou ignorar objectos, fossem eles inanimados ou não.
A primeira fotografia mostrava uma mulher deitada de bruços numa cama de casal. A cama estava coberta com um lençol que também cobria a mulher adivinhando-lhe as formas. Nada mais se via naquele quarto iluminado de vermelho por duas luzes cuja origem não era visível. Desenhou-a a carvão, com traços ambíguos e dispersos tal qual a sua vida, a sua e a dela que parecia tão desprotegida tão sossegada. Abriu os tubos novos de tinta e aplicou-os directamente na tela. Só depois o ambiente surgiu, estavam lá as paredes, a cama, a mulher e os lençóis, um por baixo a tapar o colchão quanto ao outro já lhe fizemos referência. Como achou o vermelho demasiado agressivo substituiu-o por uma luminosidade branca que projectava sombras distintas num soalho de madeira que ele próprio inventara, algo que não se conseguia distinguir na fotografia. Agora que acabara sentia-se bem, liberto de tenções, de conflitos, conseguiu até sorrir à vizinha que o detestava. Na rua dirigiu-se para o café da dona Lara onde costumava tomar o pequeno almoço e onde mantinha uma conta por pagar. “Bom dia dona Lara. Já chegaram os jornais?”, “Estás muito alegre hoje, não me digas que acordaste cedo para ir trabalhar?”, “Não goze dona Lara. Não tenho tido sorte mas as coisas vão virar, vai ver. Para começar vou poder pagar tudo o que lhe devo assim que entregar o que estive fazendo.”, “Um quadro suponho!?!”, “Sim um quadro…E poderão ser mais!”, “Deus queira que sim meu filho.”. A dona Lara adorava aquele moço franzino de cabelo desgrenhado e barba por fazer, adorava acima de tudo aqueles olhos verdes que lhe davam uma expressão tão parecida à do seu Ricardo morto quatro anos antes por uma overdose de heroína.
Sentou-se ao pé da janela e folheou o Correio da Manhã. Leu os assaltos, aos bancos, às velhinhas, aos jovens namorados junto ao rio. Prendeu-se na notícia do desaparecimento de uma menina de 11 anos na cidade de Bragança. Pais pobres, casa pobre e mais cinco para cuidar, “Tragam-me a minha menina!”, na fotografia a imagem de um pai destroçado e de uma mãe que não consegue olhar a objectiva escondendo a cara entre mãos. Mais à frente noticiava-se o aumento da gasolina, por causa do petróleo, por causa do Irão, por causa da energia nuclear, por causa da bomba, por causa….Ficou-se pelas palavras cruzadas enquanto trincava uma tosta só com queijo.
À tarde telefonou ao professor e combinou com ele um encontro. Este convidou-o para jantar, “…Depois logo vamos ver a encomenda.”, “À noite?”, “Achas que preciso da luz do dia?”

4 comentários:

naturalissima disse...

Olá amigo

Levei mais tempo para te escrever, pois estive a ler tudo o que aqui foi editado, durante o periodo em que procurei descansar junto ao mar.

Gosto muito do que escreves e da forma como o fazes. São histórias maravilhosas para um dia juntá-las e fazeres um livro. Porque não? Já pensaste nisso?

Mesmo aquelas que são do teu intimo. São fantasticas para um livro...
Se calhar já o fizeste!!! Ou estás já a preparar uma surpresa para todos nós.

Olha que falo a sério...

Um beijinho
Daniela

lo disse...

Olá meu querido
adoro passar aqui para te ler,eu concordo com a Natu devias eskrever um livro.
passei para te dizer que gosto da tua visita e te deixar o meu
:))))))))))
beijoooooooo

Titá disse...

Intenso, enternecedor, comovente e real. Numa palavra:Tu...genial
Adorei este texto e a ti meu irmão adoro demais e cada dia q passo me sinto mais orgulhosa do nosso laço, do nosso pacto e por mais que nos gritem e nos avisem, eu não acredito que o nosso sangue não corra as mesmas veias. PAra mim tu és o meu irmão masi velho que adoro e de que me orgulho para sempre.

naturalissima disse...

sensibilizou-me o comentário que deixaste no meu espaço.
guardarei para sempre... não o vou esquecer.

Já agora, serás o primeiro a saber, peço-te que dês mais uma espreitadela e diz-me se as fotografias têm outro realce com a nova configuração.
Quero a tua opinião!

Um beijo
Daniela