2006-08-16

Em que pensas?


O António vive em frente de uma esquadra da polícia. Conhece bem todos os sons, das sirenes, dos gritos, do chiar dos pneus. Portas que se abrem e fecham, gente que entra e sai agitada. Tudo o que é ilegal e clandestino desagua à noite naquele local. Às vezes senta-se junto da janela, de cigarro na mão, só a olhar, de luzes apagadas.
Num desses dias viu chegar uma mulher embrulhada num casaco. Trazia uma saia curta que lhe deixava a descoberto umas pernas excessivamente brancas e nos pés uns chinelos, à primeira vista dir-se-ia que tinha saído à pressa de casa. Aproximou-se da porta da esquadra e falou com o agente que lá se encontrava. Este, sem tirar a mão direita da metralhadora à tiracolo, indicou-lhe com a mão esquerda uma direcção no interior do edifício. Viu-a hesitar antes de entrar, ajeitou o casaco, compôs o cabelo e decidiu-se. Demorou apenas alguns minutos e saiu...De cabeça baixa...
Distraiu-se naquela figura magra, seguiu-a com o olhar perdido. Num momento deu-se a imaginar o seu drama, a urgência do apelo, que necessidade faria uma mulher vir à polícia às quatro da manhã?
Pela janela vê que ela se sentou nas escadas de um prédio. Baixa a cabeça…E chora?...
Observou-a com a atenção de quem tinha sido seduzido e sentiu pena daquela tristeza, daquele corpo rendido. Assim se deixou estar durante muito tempo. Seriam cinco da manhã? Olhou para o relógio...Cinco e meia...E ela no mesmo sítio. De repente uma ideia passou-lhe pela cabeça. Levantou-se devagar e foi à casa de banho onde jogou água pela cara e lavou os dentes. Pegou nas chaves de casa e antes de sair confirmou a sua presença nas escadas. Não estava frio, as manhãs de Verão embora húmidas são agradáveis. Deliciou-se com a ligeira brisa e acendeu um cigarro. A saída do seu apartamento era oposta à janela, por esse motivo teve de percorrer a rua, atravessar o túnel e virar numa curva apertada antes de a ver. Pensou no que lhe queria dizer, ele que nunca se sentiu à vontade para meter conversa. Dormitava, tinha um olho negro e várias marcas nas pernas. “Quer ajuda?...”, silêncio “Desculpe...Precisa de alguma coisa?...” e nada. Ficou ali de pé um momento, sentinela esperando uma reacção. Estava quase a desistir quando ela deu sinais de despertar...Olhou para ele e assustou-se para logo se acalmar, “Pensava que fosse ele...” desabafou aliviada. “Desculpe...”, “Não faz mal.” Respondeu levantando-se. Agora percebeu que a conhecia, não pessoalmente mas de vista. “Eu conheço-a, você mora na rua do café central!”, “Eu também me lembro de si...”. Convidou-a para tomar o pequeno almoço e ela aceitou desabafando “Desde que ele não veja...”. Fingiu não ouvir e acompanhou-a enquanto esperava que ela rompesse com o silêncio que se havia instalado. Isso só aconteceu depois da barriga cheia. Contou-lhe dos cinco anos de casamento, do filho de três, do marido que lhe batia todos os dias, o choro desaparecera e as palavras saiam sem rancor, apenas mágoa, “Amei-o tanto…”, “Ainda gostas dele?”, “ Acho que tenho pena dele.” E continuou, “A maior parte das vezes são só uns estalos mas ontem abusou, tive de fugir. Ainda fui à polícia...Mas depois de entrar perdi a coragem...”. Ofereceu-se para a levar a casa, ela recusou, “Está lá com uns amigos...E amigas...”. “Queres ir tomar um banho?”, “A tua casa? Estás doido! Se ele soubesse matava-nos aos dois.”, “Não tenho medo!”. O que se passou depois é algo que só a eles diz respeito, a solidão de um abraçou o desespero do outro e amaram-se num diálogo feito de gestos e carícias. Era já tarde quando ela acordou, descansada de tudo enlaçou-lhe o peito com os braços. Ele de barriga para cima olhava para o tecto e chorava silencioso, “Em que pensas?”, “Em ti!...”, “E choras?”, “Sim…Pela mulher que tu és, pelo carinho que me deste…Agora que não estou só tenho medo de te perder.”. Quem se calou foi ela…”E tu que estás pensando?”, “Que quando me for embora deixarei cá o meu sorriso e um pouco do que já fui”.


P.S. Do resto da história não sei, mas gostava que tudo corresse bem para os dois.

2 comentários:

José Leite disse...

Deixar o sorriso? Nunca se deve deixar aquilo que nos faz falta1

P. Guerreiro disse...

Deixar o sorriso para trás foi uma excelente desculpa para voltar…Na minha história faz sentido. Na vida nem sempre é assim, cada caso é um caso, estamos em constante avaliação e deixar de sorrir não é decerto uma boa ideia.