2006-12-27

Urbe III

Acordou sem rebanho, não seguia nenhuma caravana e do deserto só o calor das mantas com que se cobrira. Levantou-se depressa enxotando ideias e profecias. Foi uma manhã normal, de sentido único, na direcção da urbe que o esperava sem especial necessidade. Levou um livro debaixo do braço e ele lá ficou, inerte, sem forças para se abrir. Chegou a horas aonde tinha de chegar e só nesse momento recordou a voz feminina que lhe marcara a noite anterior. Procurou abstrair-se ligando-se à informática bancária, despachou serviço, autómato numa linha de montagem, sem ver, utilizando a rotina memorizada, encharcou-se em números, percentagens, planos disto e daquilo, contas para os outros e de outros que não ele. O relógio de pulso marcava passo, nove e trinta, nove e trinta e cinco, nove e quarenta, nove e quarenta e um, assim não vou longe… A máquina de café tão longe, ele tão longe, tudo tão longe e os números a precisarem da sua atenção, a solicitá-lo exigindo-lhe cálculos de destreza automática…”Osvaldo, queres um café?”, “Não…Sim…Quero sim!”, a voz da Carmem trazendo-o pela mão à rotina da agência, a voz doce da Carmem. Por segundos fecha os olhos e imagina-se longe, com aquela voz. Os segundos são o que são e não são o mesmo para todos, ele viajou, ela não e já lhe trazia um copo de plástico, branco e fumegante. Pegou-lhe com três dedos e deixou que este os aquecesse…Como a areia do deserto, do deserto que ele era, sem areia. Porque será a pele dela tão branca, deliciosamente branca, “Bebe o café senão fica frio!”, “Sim…”, ela já não ouviu o sim, o sim que se diluiu no seu perfume, como nos anúncios de televisão, ele o figurante perdido, a personagem fugaz, o relance humano de sentimentos banais e no entanto profundos. Nove e cinquenta, nove e cinquenta e um, o chefe que o chama e ele sem ouvir, sem ver, olhando sem ver, “Vou já!”. “Preciso que me faças o relatório…” e o relatório que ele aponta distraído num bloco de notas com o logótipo da instituição, lembra-te de quem te paga, lembra-te…E ele lembra-se da voz feminina do outro lado da linha, dez e trinta, dez e…Hoje vou almoçar mais cedo, a quem dirigiu ele esta declaração de intenção, ao chefe, à Carmem que espera pelo namorado, à dona Esmeralda que hoje o estranhou mas não teve coragem para lho dizer, ao irritante Ricardo que tudo faz para agradar, “Queres que te ajude nalguma coisa?”, “Não!”, seco como o deserto que ele deixou, no sofá…Ao longe uma septuagenária discute com o caixa…O senhor André precisa de um empréstimo, crédito fácil…Ao longe a velha mulher tenta fazer entender-se…No ecrã alguém que precisa de um carro novo, o senhor André? Não esse já tem carro novo!
Onze horas e quatro minutos, “Não falte, ficaria bastante desiludida.”, não faltarei, eu quase nunca faltei…Ou faltei?...Onze e quinze…Tira o relógio do pulso e volta a colocá-lo…No pulso…Hoje vou almoçar mais cedo, está decidido, já estava decidido. Lá fora o ruído dos automóveis é apelativo, quase metafórico, liberdade que rola e desaparece…Talvez para o deserto…Merda mais o deserto!
Meio-dia, tanto que demorou o meio-dia, minuto a minuto o meio-dia é muito mais que meio-dia…O trabalho avança sem erros, ele espera que sim, ele precisa que assim seja, as coisas não estão fáceis e ele não deve falhar…O ponto da situação, mais de três horas sem se levantar e o ruído lá fora, por detrás da enorme vitrina que o deixa ver…O ruído lá fora e o relógio a dizer-lhe, meio-dia e trinta…”Acabei o relatório!”, eis a comunicação, eis a chave libertadora, “Hoje preciso de ir mais cedo…Tenho de tratar de uns assuntos…Pessoais…”, como quem diz , não me chateiem, deixem-me em paz e não me peçam explicações…Pega no casaco e sai…São doze horas e quarenta e cinco minutos.
(cont.)

2 comentários:

Isabel disse...

Meu amigo obrigada pela tua mensagem. Fiquei contente e asseguro-te que vou continuar só estou a fazer uma pausa por razões que só tem a ver com excesso de trabalho e de cansaço mas tenho çá um bichinho a roer que vai ter de sair rapidamente.
Até já vi que tenho coisas tuas para ler que que me parece me vão deixar como sempre encantada com a tua escrita.

Muitas, muitas felicidades para ti.
Uma boa entrada em 2007 e para o ano cá estaremos certamente a fazer visitas um ao outro como sempre.

Até breve meu amigo e muito obrigada pela tua lembrança.

Isabel

pb disse...

gostei de te ler, Primo, fico a aguardar a continuação, até lá, deixo-te os votos de um bom ano de 2007. Um abraço