2021-03-18

Manual de lembranças I

 Escoa-se em mim o tempo de ser. Levantei-me todos os dias e todos os dias perguntei porque me levantei. Comecei novo e nunca mais parei. Primeiro na mercearia lá na rua, aproveitando a distração do Zé Monge, perdido nos peitos da vizinha. Uma mão no saco de rebuçados, apanhando o que vinha à mão, um olho no Monge e outro nos mamilos que se empertigavam contra a camisola de lã. Trazia de lá com que adoçar a boca e a noite. Nas férias da escola, quando o Liceu estava fechado, o pequeno vidro partido escondido por detrás de uma badana de cimento, simulacro de uma persiana gigante deitada sob o lado esquerdo. Já com doze anos mas ainda cabia por aquela nesga de dentes afiados. Os chocolates na prateleira e os refrigerantes na grade valiam bem a camisola rasgada e o corte no braço. Na papelaria, onde o cheiro a tinta das revistas me deixava sem folgo. A dona Fernanda preocupada com o jornal do Sr. Doutor, num sorriso branco, ligeiramente rosado por causa do baton vermelho, num contraste de branca de neve com a sua pele. Sabia que não podia chegar aos cromos, demasiado distantes e protegidos pelo corpo robusto de dona Fernanda, mas os livros da coleção RTP ficavam desprotegidos, a capa branca e desengonçada, Albert Camus , "A Queda", nº 39 , ecrã azul num debrum televisivo verde alface e azul gaiato. A dona Fernanda tinha seios enormes, mas a cara desagradável que dedicava aos miúdos do bairro estragava qualquer fantasia. A papelaria Nanda, onde eu comprava religiosamente a revista Tintin. Doze e quinhentos de aventuras em continuação, Blueberry, Corto Maltese, Jonathan, heróis de liberdade infinita, liberdade que eu desejei sem nunca alcançar. Nem todos somos talhados para seguir as pegadas dos nossos heróis. Segui outras liberdades na instabilidade dos finais de setenta. Distribuía panfletos do Movimento de Esquerda Socialista porque a sede ficava ao pé de uma pastelaria e porque a malta que lá parava era simpática para os "putos". Os homens do partido tinham a barba e cabelo grande. As mulheres, lindíssimas, tinham o cabelo escorrido e sem maquilhagem e eram pouco mais velhas que eu, talvez uns cinco ou seis anos, o que para os meus catorze significava uma barreira intransponível. Eram Deusas, as primeiras que adorei...

Comecei novo e nunca mais parei...Mas hoje paro por aqui...

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