2021-03-24

Apenas um sonho como tantos outros

 Encontro-me envolto numa substância aquosa. Não me sinto desconfortável. Aparentemente o meu corpo adaptou-se ao meio e com gestos fluídos faz-se deslocar de maneira célere.  Poderia dizer-se que nada, de tal forma a deslocação é eficiente. Tomo agora consciência que a minha deslocação é feita debaixo de água. Forço a apneia e agito pernas e braços de forma harmoniosa. Terei eu um destino pelo qual valha a pena o esforço...penso que sim visto que, apneico, mantenho um rumo direito e objetivo. Sinto-me observado por alguém no exterior. Procuro não me abstrair e foco-me na respiração. Tenho uma respiração controlada, mesmo debaixo de água. Penso, isto não devia acontecer, eu não devia ser capaz de respirar. Os meus pensamentos são abruptamente travados por uma parede, aparentemente, intransponível.

Estou cá fora e o que eu julguei ser um mar não é mais que um grande tanque em cimento no meio de uma seara verde. A seara tem quase a minha altura. Apercebo-me da minha nudez e envergonho-me. Que maçã terei eu mordido...estou só, tudo à minha volta é verde e o tanque desapareceu. Caminho sem destino sentindo nos pés torrões de terra seca e morna. Primeiro devagar, depois cada vez mais depressa. Sinto as espigas fustigarem-me o corpo. Por alguma razão que desconheço tenho uma agradável sensação de calor. Olho para o céu e deslumbro-me com um sol de meio-dia pintado por uma criança de cinco anos, um sol vertical e sem sombras. Descortino ao longe uma casa branca. Imagino-a caiada porque a cal me devolve a mocidade e o meu pai.

Estamos os dois numa clareira de um grande quintal. No centro desse quintal uma figueira distribui os seus ramos repletos de folhas de forma equitativa e uniforme. A sombra que estes projetam assemelha-se à de um alpendre. Junto ao tronco da árvore está um bidon ao qual cortaram o tampo. Lá dentro grandes blocos de cal imitam icebergues num mar branco e revolto. O meu pai segura um bastão de madeira e com ele provoca remoinhos lentos fazendo soltar gases desconhecidos. Sinto o cheiro a figos e a merda de galinha. Já não vejo o meu pai e agora sou eu que seguro o bastão numa pose de imitação disfarçada.

Os meus olhos perdem-se no branco da cal. O branco da cal, a principio difuso, começa a definir  granulados. São granulados familiares, rugosidades conhecidas, que cercam por completo o meu campo de visão. Os granulados revelam-se uma parede, a parede revela-se um quarto e o quarto diz-me que acordei...   

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