2014-05-31

Num dia de despedida o choro convulsivo é desnecessário

Num dia de despedida o choro convulsivo é desnecessário. Pretende-se alguma espécie de sentimento, algo que revele emoções, o trejeito facial, a tremura nas mãos, o incomodo na tensão femoral, uma ligeira gota de suor que teime em formar-se a partir do interior, o rubor que nos aquece e nos deixa incomodados. Sim, espera-se alguma coisa, mas o choro convulsivo é desnecessário. Arruma-se a secretária, o armário, entrega-se a roupa usada, faz-se o espólio de uma parte da vida, enchem-se sacos de memórias, de guerras e de amores, amizades e desavenças, vitórias e derrotas e deixa-se aos outros a obrigação da lembrança para nos manter vivos.
Não consigo chorar numa despedida. O líder que se despede, e em pranto eu esqueço-me, alzheimer de duas décadas, como se ajudasse eu não saber ler nem escrever, como se ajudasse ser uma pessoa melhor, não fazer aos outros o que não gostava para mim, esses princípios morais, essas vitórias morais que nos fazem de bem com os outros e de mal comigo. Sim Sérgio, que força é essa?
Não nasci Cristo, só o álcool me faz chorar numa despedida, só a ressaca me fará chorar porque chorei, a ressaca e a vergonha e o silêncio calado porque nem silêncio pode ser, porque se for só silêncio incomoda. Nada como um silêncio ruidoso, um silêncio de ruídos e de sorrisos embevecidos, de lágrimas complacentes e autoflagelação gratuita. Que não me doam mais as chagas que acumulei, hoje curei-as com o sal das minhas lágrimas. As minhas lágrimas não têm cloreto de sódio, as minhas lágrimas são feitas de hidrogénio e de oxigénio na devida proporção, dois para um, apenas e só dois para um, água pura, desmineralizada, lavada de iões por resinas fantásticas. As minhas lágrimas são vertidas de um esguicho, material de laboratório que eu muito prezo, um esguicho de ponta fina, desses que faz as lágrimas bonitas, arredondadas à frente e afuniladas na cauda e que deixam um bonito lastro aquoso.
São os bolos ou apenas a impressão que são bolos, o chamariz para a mesa, a garrafa de Porto e os sumos, a Fanta e a Coca-Cola, o resistente Sumol de ananás e gente, muita gente, todos numa oval evangélica. O ritual repete-se conforme os anos passam, uns passam à disponibilidade, outros apenas mudam de sítio. A rotina que se quebra porque falta um e porque só falta um a rotina mantém-se e por isso é rotina. Mas quando falta um líder seriam expectáveis rotinas novas, novos desafios, esperanças renovadas ou medos incontornáveis. Deixo a rotina seguir os seus passos, a rotina que como um rio procura os novos caminhos para desaguar num mar de rotinas e voltar à rotina. Não tenho boas lembranças e faltam-me alguns anos para deixar de me lembrar. Ave-Líder, aqueles que tu mataste te saúdam. No logro, na mentira e no despeito, em todas essas virtudes profícuas, se revela a tua grandeza!
Sim, num dia de despedida o choro convulsivo é desnecessário, e a raiva também. O que não é desnecessário é a reflexão. Passarão dias até que volte a ler (se alguma vez o fizer) este texto magoado, passarão dias e anos e talvez venha a chorar, porventura lágrimas legítimas, lágrimas de sentimento sentido, sentido de sentir, de quem não receie o arrepio de gostar, de relembrar com alegria tempos passados, os camaradas, os companheiros do dia-a-dia. Um dia também esse poderá ser o meu dia, o dia do espólio, de arrumar bagagens e viver outras rotinas.
No entanto hoje não é dia de chorar. Se lutar, talvez as lágrimas se transformem em sangue, e da cor do sangue se pinte a paisagem do nosso futuro.
Adeus companheiros de luta, companheiros da minha trincheira, o meu choro é a luta diária, a assunção sincera da nossa fraternidade. O meu adeus é seletivo, arbitrário, consonante comigo que sou imperfeito. Não finjo mais do que posso e o que posso é muito pouco…

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