Num dia de despedida o choro convulsivo é desnecessário.
Pretende-se alguma espécie de sentimento, algo que revele emoções, o trejeito
facial, a tremura nas mãos, o incomodo na tensão femoral, uma ligeira gota de
suor que teime em formar-se a partir do interior, o rubor que nos aquece e nos deixa
incomodados. Sim, espera-se alguma coisa, mas o choro convulsivo é
desnecessário. Arruma-se a secretária, o armário, entrega-se a roupa usada,
faz-se o espólio de uma parte da vida, enchem-se sacos de memórias, de guerras
e de amores, amizades e desavenças, vitórias e derrotas e deixa-se aos outros a
obrigação da lembrança para nos manter vivos.
Não consigo chorar numa despedida. O líder que se despede, e
em pranto eu esqueço-me, alzheimer de duas décadas, como se ajudasse eu não
saber ler nem escrever, como se ajudasse ser uma pessoa melhor, não fazer aos
outros o que não gostava para mim, esses princípios morais, essas vitórias
morais que nos fazem de bem com os outros e de mal comigo. Sim Sérgio, que
força é essa?
Não nasci Cristo, só o álcool me faz chorar numa despedida,
só a ressaca me fará chorar porque chorei, a ressaca e a vergonha e o silêncio
calado porque nem silêncio pode ser, porque se for só silêncio incomoda. Nada como
um silêncio ruidoso, um silêncio de ruídos e de sorrisos embevecidos, de
lágrimas complacentes e autoflagelação gratuita. Que não me doam mais as chagas
que acumulei, hoje curei-as com o sal das minhas lágrimas. As minhas lágrimas
não têm cloreto de sódio, as minhas lágrimas são feitas de hidrogénio e de
oxigénio na devida proporção, dois para um, apenas e só dois para um, água pura,
desmineralizada, lavada de iões por resinas fantásticas. As minhas lágrimas são
vertidas de um esguicho, material de laboratório que eu muito prezo, um
esguicho de ponta fina, desses que faz as lágrimas bonitas, arredondadas à frente
e afuniladas na cauda e que deixam um bonito lastro aquoso.
São os bolos ou apenas a impressão que são bolos, o chamariz
para a mesa, a garrafa de Porto e os sumos, a Fanta e a Coca-Cola, o resistente
Sumol de ananás e gente, muita gente, todos numa oval evangélica. O ritual
repete-se conforme os anos passam, uns passam à disponibilidade, outros apenas
mudam de sítio. A rotina que se quebra porque falta um e porque só falta um a
rotina mantém-se e por isso é rotina. Mas quando falta um líder seriam
expectáveis rotinas novas, novos desafios, esperanças renovadas ou medos incontornáveis.
Deixo a rotina seguir os seus passos, a rotina que como um rio procura os novos
caminhos para desaguar num mar de rotinas e voltar à rotina. Não tenho boas
lembranças e faltam-me alguns anos para deixar de me lembrar. Ave-Líder, aqueles
que tu mataste te saúdam. No logro, na mentira e no despeito, em todas essas
virtudes profícuas, se revela a tua grandeza!
Sim, num dia de despedida o choro convulsivo é
desnecessário, e a raiva também. O que não é desnecessário é a reflexão. Passarão
dias até que volte a ler (se alguma vez o fizer) este texto magoado, passarão dias e
anos e talvez venha a chorar, porventura lágrimas legítimas, lágrimas de
sentimento sentido, sentido de sentir, de quem não receie o arrepio de gostar,
de relembrar com alegria tempos passados, os camaradas, os companheiros do dia-a-dia.
Um dia também esse poderá ser o meu dia, o dia do espólio, de arrumar bagagens
e viver outras rotinas.
No entanto hoje não é dia de chorar. Se lutar, talvez as
lágrimas se transformem em sangue, e da cor do sangue se pinte a paisagem do
nosso futuro.
Adeus companheiros de luta, companheiros da minha
trincheira, o meu choro é a luta diária, a assunção sincera da nossa fraternidade.
O meu adeus é seletivo, arbitrário, consonante comigo que sou imperfeito. Não
finjo mais do que posso e o que posso é muito pouco…
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