2019-12-24

Carta aberta ao Pai Natal


Carta aberta ao Pai Natal

Meu caro Pai Natal nem sei por onde começar. Tive dúvidas no título e hesitei na “carta”. Poderia ter-lhe chamado email ou mensagem ou outra coisa qualquer mas achei que isso não tinha importância, desde que estejas disponível para ler estas sinceras palavras, o nome é apenas um nome e tu não te prendes com tais irrelevâncias.
Também tive dúvidas sobre o conteúdo, essas mais graves e de difícil resolução mas, como sempre tentei ser honesto, vou começar pelo meu comportamento. Sou um filho incompleto e a prestações. Depositei o meu Pai num lugar onde filhos incompletos como eu depositam os seus pais. Faço duas visitas semanais mas sinto-me culpado por não o ver todos os dias. O trabalho, as rotinas, a doença que lhe tomou conta da memória e não o deixa lembra-se de mim, o descanso de que necessito e mais uma mão cheia de outras desculpas servem de justificação para uma tão fraca assiduidade quando na realidade, o que me custa é vê-lo desaparecer lentamente. Sei que quanto a isto não podes fazer nada, a vontade é minha e a vida a Deus pertence, portanto o que te vou pedir é mais à tua medida.
Amanhã, dia de Natal gostava de ver o meu Pai barbeado e limpo, com roupa simples e asseada, sentado numa cadeira nova num quarto a cheirar a detergente onde uma cama em condições poderia fazer sonhar quem nela se deitasse. Gostava também de o ver pouco trôpego e com um sorriso nos lábios para podermos ir passear e ver o mar.
OK, sei que estás muito ocupado e que deves ter passado os últimos meses em centros comerciais e outros estabelecimentos do género de modo a suprir o teu stock de desejos e ambições. Também sei que já não tenho idade para acreditar em ti mas o que é que queres, também já não acredito em quase nada…
Desejo-te um excelente dia de trabalho, sem falhas nas entregas, atrasos ou imprevistos.
Um abraço deste gaiato crescido e cheio de imperfeições que muito te estima.
Até para o Ano


Jorge Saboga

2019-11-22

Verbalização Pictórica

 Abro a janela do meu quarto e respiro fundo. A tela está em branco e a paleta repleta de palavras. Começo pelo céu. Um céu nublado de nuvens gordas em camadas sucessivas, cinzentos que do claro ao escuro lhe conferem dimensão. É um céu que não oprime, antes liberta e seduz. O céu terá um ponto de referência, local onde os olhos procuram sem que tenham sido convocados. O sol nasce mas não se vê. Apercebemo-nos do seu parto. Captamos tonalidades sépias em gradientes radiais enquanto aguardamos o seu corpo, o seu calor, a sua indefinição luminosa que nos induz a noção de esfera apenas porque o desenhamos em círculo. Na contraluz matinal as formas surgem e eu coloco pequenas casas brancas, isoladas, térreas, pequenos sinais de vida adormecidos. Os últimos galos pigarreiam ladainhas de arrogância para galinhas ensonadas. Alguns animais invisíveis deixam nervosos os cães de guarda. Quem sabe se uma raposa atrasada ou uma família de javalis que ainda revolve a terra. Nada disto ficará registado, a invisibilidade e o som apenas poderão ser adivinhados. Depois das casas surge uma fileira de canas. Exército de lanças ao alto, perfilado ao longo de um curso de água. Logo depois um campo lavrado de castanhos escuros e sombras negras. Envolve-o um fino véu de pequenas gotas de água. Irei chamar-lhe névoa para que fique perceptível embora a mim me pareça a transpiração vaporosa de um corpo quente e húmido. Jogo as palavras na tela e de repente surge-me a transparência de uma camisa de dormir. Será aquela terra toda uma mulher adormecida. Sendo assim irei cobri-la com outra fileira de lanças, estas mais perto e porque mais perto, ondulantes. a seu pés percebe-se o correr da água. Tudo isto se passa num plano primeiro onde irei colocar um pássaro negro. Para lhe retirar a pose agressiva verbalizo-o no cimo de uma das lançascanas...oscilante. O pássaro negro, de asas abertas, procura o equilíbrio e com esse gesto perde a inquietante negatividade transformando-se num elemento ao mesmo tempo frágil e cómico. Dou as últimas pinceladas. Procuro corrigir algum erro de gramática, disfarçar alguma tonalidade verbal dissonante, dar coerência ao aleatório da tela. Não sei se consegui...