2024-10-03

A Eternidade

Acredito em Deus, mas não acredito na religião.
A religião promete-me a eternidade, mas para ser eterno é necessária uma existência antes do nascimento. Uma eternidade sem passado é uma falsa eternidade, uma eternidade parcial, o que faria do mundo um conjunto infinito de eternidades imperfeitas. Assim sendo, e para que eu possa ser eterno, o meu nascimento não é mais que uma reencarnação. Mas para que a reencarnação seja uma realidade necessitamos de um número constante de entidades reencarnáveis. No início esse número foi criado, é lá que encontramos a primeira reencarnação, possivelmente uma reencarnação quântica, onde, ainda antes de sermos uma coisa feita de coisas, éramos apenas partículas em constante mutação. Esta é a premissa para a unidade divina. Deus está em nós porque nós não existimos sem ele e ele não existe sem nós e nós não somos mais que reproduções reencarnadas dessa unidade. Haverá um fim para esta renovação, um estágio superior onde ela se resolva numa sabedoria Suprema, uma entidade acima de todas as outras? Em teoria não. Qualquer estágio que dependesse deste processo, estaria sempre preso à unidade primordial. Se, porventura, acreditarmos que algo existia antes desse início teremos de considerar, também, a existência de uma reencarnação anterior, proveniente, possivelmente, de um outro início. Onde ficamos então? Presos à eternidade parcial que depende do nosso comportamento desde que nascemos até que assumimos a forma espiritual ou, pelo contrário, assumimo-nos eternamente reencarnados, para sempre passado, presente, e futuro, navegando numa constante mudança de forma numa permuta finita de entidades espirituais. Para cada partícula, seja ela a mais ínfima, haverá sempre espaço para uma reencarnação. 
O que é então a eternidade?
Para quem acredita na vida após a morte não é mais que uma tomada de consciência pelo seu nascimento. Para quem acredita na reencarnação, é a vida em constante renovação numa existência paralela com o universo. Haja quem acredite no Nirvana, uma passagem para um nível superior, mas isso não acrescenta nada ao conceito de eternidade. É apenas um síndroma humano associado à sua necessidade de chegar mais longe que os outros. De que serviria esse Nirvana sem a existência de outros semelhantes para os quais esse estágio ainda era desconhecido. Qualquer que seja a eternidade ela não suporta a solidão na qual ela deixa de ter significado.
No começo deste texto referi a minha crença em Deus, mas devo aqui esclarecer esse crer. Para mim, rezar não é acreditar na sua existência, é apenas uma esperança, quem sabe vã, na sua existência. Na verdade, o niilismo que me ataca faz-me sofrer por me deixar colocar todas as questões, por me deixar destruir todos os dogmas pondo-os constantemente em causa, mesmo que alguns já procure tenham sido dissecados até ao suicídio por filósofos de outros séculos, por me lembrar que tudo me é permitido. Procure eu as respostas sem me satisfazer com nenhuma, e perceberei que essa é a essência e a beleza da vida. Quem sabe se a eternidade não se encontra nessa insatisfação.


2024-07-08

Argumento de “Uma, muito pequena, curta-metragem”

I

Esta noite fui cedo para a cama.
Poderá esta frase resumir o espírito de uma Nação?
Não!
A Nação não foi cedo para a cama!
A Nação acredita no milagre fatalista!
A nação desconhece o futuro que lhe preparam!
A passagem de ano revela-se como mais uma noite de copos.
A passagem de ano revela-se comemorativa,
Como se algo houvesse para comemorar…
Para quem tem fome, a fome perdurará!
Para quem não a tiver, a ausência será constante!
Depois da fome o próximo passo será a guerra!



II

Não sonho esperanças vãs,
Não anseio promessas falsas.
Os começos já os conheço,
Episódios que ciclicamente me repetem.
As luzes da minha rua estão gastas,
Pequenas estrelas humanas,
De duração programada.
É esse o caminho que me leva ao quarto.
As sombras do que lá existe,
Dizem pouco ou pouco têm para dizer.
Afinal de contas,
As sombras não falam,
Balbuciassem elas as palavras necessárias,
E contariam histórias.
Porque é de histórias que eu falo,
Porque de histórias são feitos os meus sonhos.



III

Sou normal,
A corrente eléctrica chega a minha casa por fios,
A minha secretária é de madeira,
De madeira é a lenha que queimo na minha lareira.
E eu que sou normal,
Não me sinto assim.
Olho para o fogo,
E lembro-me do fogo,
Das palavras poéticas,
E do terror da torrefacção.
Dos finais que todos os dias o são,
Dos começos que os acompanham.
Sou normal na minha maneira de o ser,
Sinto que sou o que sou.
Senta-te e escreve a verdade que te ensinam…
…Segue leve….



IV

Escrevo,
E ao escrever ouço-me.
Penso em mim como uma voz,
Um reflexo do que vi,
Do que vejo.
Sou um pedaço orgânico,
Pedaço entre pedaços,
Reflexo orgânico de desejos,
Que não sendo meus também o são,
Reflexo de frustrações,
Que não sendo minhas,
São as minhas confissões.
Reconheço-me enquanto escrevo,
E não preciso sofrer,
Para ver que o que escrevo,
É o colectivo a morrer.



V

Finge-te,
Homem ou coisa,
Algum lugar ou nenhures,
Finge-te a seco.
Não te escondas do que finges.
Finge-te mas não te enganes.
Não te escondas em substâncias.
Abre a janela do quarto,
Não tenhas medo do frio,
Da solidão ou vazio.
Homem que é Homem é isso,
Essa coisa complicada,
Que chora por não ser nada,
Quando é tudo o que precisa.
Finge-te parvo ou incerto,
Mas não finjas que não sentes,
Nem desprezes quem está perto.

2024-03-21

Porque hoje é dia de poesia...

 

Tropeço em imagens de morte



Estou sentado na minha sala de estar.

A televisão está ligada em sintonia com a desgraça.

Uma mulher desapareceu sem deixar rasto.

Um homem morreu após um grave acidente.

Tudo num formato decente,

Largado de forma inocente

Num tom de branda ameaça.

Alguns milhares de crianças ensombram o Natal

Morrendo debaixo de fogo inimigo.

Qual terá sido o pecado para merecer tal castigo?

O homem de fato aprumado

Passa o assunto à mulher que,

Com aspeto asséptico,

Continua com as mortes do dia.

Será o mesmo se eu ligar a telefonia?

Procuro outro canal,

Uma outra informação,

Uma calamidade meteorológica

Que me faça sentir culpado

Da forma negligente como consumo.

Dedilho o jornal digital

Num artefacto chinês.

A maçã que traz no rosto

Não denuncia quem o fez

Mas os mortos são idênticos

E os rostos que os nomeiam

contam sempre a mesma história.

São crónicas de cruzes e estrelas,

Quartos de lua sumidos.

São deveres assumidos

Pelos pais de nobres nações.

É o direto de matar porque sim

É o direito de morrer porque não.

Afinal quem tem razão?

É sempre quem tem a arma na mão.

Tropeço nas trincheiras da guerra

No século de todas as esperanças.

Marte lá longe à nossa espera

E todo esse conhecimento que recebemos.

Dados incalculáveis

Computáveis,

E, no entanto,

Tão vulneráveis.

Estou sentado no meu sofá,

 junto à árvore de Natal

E tropeço nos mortos que enchem o meu ecrã.

Não sei quantas polegadas de horrores

Que, de tão distantes,

Reconfortam do frio.

A sala fica mais quente,

Tudo pior do que dantes,

Mas a alma mais dormente

E o meu corpo mais ausente.

Agora um tiroteio num restaurante,

Uma facada junto ao rio,

Um atropelamento casual

De um velho navegante.

Uma criança abusada,

Um bebé desmembrado

Por um pai atarefado

Que só a queria calada.

Tudo muito composto,

Tudo muito bem arrumado,

Durante hora de jantar.

O famoso horário nobre.

A morte servida entre quinze minutos de vendas.

Vem cá que eu não te aleijo meu bombom de chocolate.

Com uma corda ao pescoço davas um enfeite de Natal,

Amarrado pela cintura, um arranjo floral.

Tudo tão simples.

Os mortos lá longe e eu quentinho na cama.

Com um novo pijama e

Uma lareira ecológica.

Como desafiar esta lógica?

Tudo tão comedido

Tudo sempre no mesmo sentido.

Seis décadas que só me fazem tropeçar

Em imagens de morte.

E o homem fardado a dizer

Que não irá parar

Que enquanto alguém respirar

Enquanto houver alguém para morrer

A bomba irá explodir,

A granada irá detonar,

Haverá metralha no ar

E razões para sorrir.

E o Natal que virá

Será apenas mais um

Para fazer acreditar

Que na mesa comum

Uns comem até fartar

E outros fazem jejum.