2007-08-23

O Automóvel II

Em Lisboa, tinha ele oito anos, entrou no stand de automóveis. Ia com os pais. Havia dois anos que poupavam dinheiro, dois anos de privações. Decidiram-se prestações, mensalidades de suavidade calculada, a casa na Damaia ainda estava a ser paga. Também venderam o “carocha”.
No stand tudo era novo e limpo. Cheirava a materiais acabados de transformar, aromas acabados de moldar, “Cheira bem.”, disse para si e revelou-o na expressão exibindo um sorriso largo. De olhos bem abertos assimilou o fascínio, o brilho do objecto, o apelo dos panfletos publicitários que haviam convencido os seus pais, que também o tinham convencido. Estacionada no meio, entre dois parentes, quatro portas, duas portas, a station que superava todas as expectativas, mais brilhante, mais cromada, mais negra nos seus estofos, apelativa nos extras, o volante com o símbolo, o conta quilómetros indicando cento e sessenta, quatro velocidades, excelente a subir.
Logo que entraram um homem de meia-idade veio ter com eles, também ele de sorriso aberto. Não se lembra muito bem do homem. Sentou-se na carrinha, no banco de trás, os pais, à frente, simulavam a viagem, o homem incentivava-os, “Veja o cinzeiro, as mudanças, o espaço, o conforto, e ainda não viu o motor!”. Foi a sua primeira viagem na carrinha. Nos olhos cerrados a imagem de uma estrada num espaço aberto, o poster na parede do stand, o carro vermelho, ele ia a conduzir.
O negócio foi demorado, discutiram-se números, dinheiro que faltava, preencheram-se papeis, intermináveis papeis, “Pai, quando é que vamos embora?”, “Vamos já.”, o olhar da mãe, comprovação serena do poder paternal. Nesse dia a carrinha ficou no stand, nesse dia e nos nove dias que o seguiram. Nove noites, nove sonhos, em Janeiro, dias cinzentos, dias que o Zé pintou de amarelo Verão e azul calor. António José viajou por todas as fotografias, todas as imagens, jornais, revistas, televisão.
A televisão a preto e branco, a carrinha cor de vinho atravessando paisagens no telejornal, a carrinha nas imagens do sul de França, na revista da sala de espera do médico da mãe, do médico que disse que a mãe iria morrer alguns anos mais tarde.
Foram buscar a carrinha numa quinta-feira. O tecto que desaparece e dá lugar ao céu, a cara esborrachada no vidro, a respiração presa no movimento da máquina. Percorreram as ruas de Lisboa num estranho momento de sol. A Damaia chegou e havia lugar para arrumar, muitos lugares. Da janela do primeiro andar, depois do jantar, ficaram olhando a carrinha, indiferentes à intensa chuva que caía. Nesse dia não sonhou.
Sexta à noite partiram para a terra, foi a primeira grande viagem da Toyota.

(cont.)

5 comentários:

pb disse...

Haaaaaaaa primo, fizeste-me recuar 35 anos no tempo e recordar o dia e que meu pai me foi buscar de surpresa à escola e sem me dizer nada, fomos ao stand levantar o carro que ele tinha comprado !! Um Sumbeam 1250, castanho, com mudanças em baixo, parece que ainda estou a viver isso, eu a entrar no carro e sentar-me com ar muito importante no lugar do pendura a admirar os interiores e o que mais me espantou, foi que o carro até tinha isqueiro !!! Um abraço

Titá disse...

Regressei hoje de férias e vim deixar cumprimentos. Um beijo e um bom dia para ti.

Titá disse...

Tens um certificado para ti lá no meu blog. Beijos

Suga_Mentes disse...

Olá Guerreiro , tas bem mano ? Como vai a vida ? Não te parece injusto que os dias de férias tenham menos horas que os de trabalho ?
Gostei imenso dos textos , como de costume , bem não te vou dar mais flores , ainda te estrago com mimos , um abraço grande

Elsa Sequeira disse...

oLÁ!!!

gosto muito da forma como escreves!! Dá para sentir o teu sentimento, nas simples palavras!

Hoje convido-te a vires lançar ao mar, a tua mensagem ... na garrafa!

bjts